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O meu bilhete de avião - sem volta - do dia 30 de Agosto de 1974

 

"Há 35 anos inventámos a palavra retornado. Mas eles não retornavam. Eles fugiam. Retornados foi a palavra possível para que outros – os militares, os políticos e Portugal  – pudessem salvaguardar a sua face perante a História. Contudo a eles o nome colou-se-lhes. Ficaram retornados para sempre. Como se estivessem sempre a voltar.

 

Este post da Helena Matos, surge como quase resposta à campanha de promoção de um conjunto de textos coligidos em livre de saison politique que ultimamente tem sido promovido nos santuários do costume. Os dislates do politicamente correcto de alguns, conjugam perfeitamente os interesses que hoje servem os seus mais lídimos herdeiros directos, exactamente os mesmos que hoje acorrem a Moçambique à cata de desinteressados negócios. Há coisas que não mudam.

 

Tudo começou há uns meses, quando uma bastante efémera "ex-residente em Lourenço Marques", decidiu editar a sua experiência pessoal, sendo sem surpresa apoiada pelo carpidismo militante que sempre arranja um espaço reactivo para as suas ilusórias verdades de convenção. Essa também ex-menina e autora, jamais viveu em Lourenço Marques, a Maputo cujas avenidas  o Sr. primeiro-ministro ontem entusiasmadamente percorreu  em mini-maratona de salutar  oxigenação pulmonar.  A dita ficcionista, Isabela de seu nome, limitou-se a vegetalizar-se num buraco-negro de paranóia circunscrito a pouco mais de 400m2. Filha de um tipo de homem a quem local e depreciativamente se designava de maguérre (1), diz ter assistido a um infindo rol de iniquidades caseiras. Por isso mesmo, sendo branca, aparentemente loura e confortavelmente alvenarizada em residência na Matola - uma espécie de melhorado Cacém local - , sentiu como absoluta missão agigantar a pequenina, grotesca e marginal figura paterna, fazendo-a subdividir-se tal como uma amiba, a todo o corpo colonial estabelecido em Moçambique. As lamentáveis aldrabices grasnadas pela ignorância de uma totalmente desconhecida realidade, tornam-se em factos que se compõem uma perfeita ficção de cordel mais própria das sebentas "revolucionárias" e justificativas de outros tempos, estão, no entanto, muito longe da verdade do período final da presença portuguesa em Moçambique. Afinal, tudo se resume a uma questão de facturação, à procura de um suburbano êxito à Harry Potter. A ficção vende bem e se for sob patrocínio alinhado, melhor ainda.

 

Segundo a autora e os seus apressados promotores, os brancos de Moçambique eram todos uns malvados torcionários, sequiosos de divertimentos tão exóticos, como o intencional e impune atropelamento dos negros que cruzavam as ruas da capital. O branco dedicava-se ao espancamento, violação de qualquer tipo de "logicamente negados" direitos e claro está, "vivia enclausurado nas festas sociais, colégios chiques, Clube Naval, de Pesca, no Grémio" e pouco mais.  Enfim, eram uns tantos milhares de ociosos parasitas semi-negreiros.

 

A ignorância intencional dos escribas que se prestaram a corroborar  na ignomínia, chega ao ponto de manifestar o mais risível desconhecimento acerca da própria cidade, designando vagamente o todo extra-Isabela, como Polana. Ou jamais lá estiveram, ou a memória é curta e susceptível de habilidosos esquecimentos. Não tendo a parvoeira limites aceitáveis, imagina-se a Polana como uma espécie de alargada Avenida do Restelo ou uma Quinta da Marinha dos grandes do actual regime, mas transplantada na meseta sobranceira à Baía do Espírito Santo. Numa confusão inextricável, o leitor que jamais caminhou nos largos passeios da Maputo de hoje, ficará para sempre sem saber que a dita Polana não consistia num bairro em sentido restrito. Na verdade, a progressiva extensão da cidade acabou por designar genericamente a parte alta que se situava entre a Ponta Vermelha - a zona do Governo Geral de Moçambique - e toda a vasta área que chegava aos limites do Prédio Buccelatto, como Polana. Aliás, os limites com a Sommerschield - a zona dos muito abastados como os Mascarenhas Gaivão, Carregal Ferreira, os Donato ou os Almeida Santos -- jamais foram explicitamente definidos tal como em Lisboa entendemos as Telheiras e o Campo Grande, por exemplo. Não existia uma zona demarcada.

 

No que diz respeito aos delirados country-clubs e selectos colégios privados evocados pelo oportuno  esquecimento do sr. Pitta, gostaríamos que este nos indicasse mais concretamente o que quer dizer, porque a distorção parece fazer norma: jogos de polo a cavalo - a terem alguma vez existido, talvez fossem bastante esporádicos e sem qualquer tipo de continuidade ou culto enraizado  (2) -, mahjongs que nos remetem para os filmes africanistas dos anos da Segunda Guerra Mundial e os apontados colégios privados, por exemplo. A Pittada vertida em prosa, bem poderia ser mais clara acerca do que quer descrever, pois que se saiba, o único Colégio privado digno desse nome, era o Barroso, destinado a meninas e apenas frequentado por uma camada muitíssimo restrita da comunidade branca. 

 

Esta gente fala daquilo que jamais conheceu porque simplesmente não podia ter vivido uma realidade que deve ser dissecada pela evolução de umas tantas décadas que percorrem gerações!  Estabelecidos em Lourenço Marques desde 1890, os meus trisavós paternos ali fizeram nascer a minha bisavó, tal como esta traria a este mundo a minha avó e as suas irmãs e irmãos. Naturais de Lourenço Marques são o meu pai e o seu irmão, assim como na Zambézia (Ile) nasceria a minha mãe e o meu tio. Gente nascida, criada e conhecedora da terra ao longo de várias gerações, pertenceram sempre a um extracto médio que jamais permitiu o acesso a núcleos muito restritos como aqueles que o sr. Pitta menciona e que se porventura alguma vez os terá frequentado, saberá do diminuto ou quase irrisório micro-cosmos que era indiferente à esmagadora maioria dos laurentinos. Gente esclarecida na melhor tradição monárquico-liberal oitocentista, era avessa a todo o tipo de arrivismo que a autoridade de uma Metrópole bastante despótica, condenava os naturais de Moçambique ao pouco invejável estatuto "de segunda classe". 

 

O tal Grémio e as imaginativas piscinas dos country-clubs (!) - deve unicamente querer aludir ao Clube de Pesca - eram locais tão alheios à maioria dos naturais de Moçambique, como algumas das curibecas regimenteiras da Lisboa ou dos Estoris/Cascais de hoje. Quantas centenas de licenciados, chefes de serviços, directores de organismos do Estado ou pequenos empresários, jamais colocaram os pés - ou quiseram colocá-los -  no dito Grémio? Por regra, os seus frequentadores eram gente olhada com um certo - ou despeitado -  desdém pelos hegemónicos remediados e amplamente considerados como os patetas, parvalhões, pedantes ou páchiças-pretensiosos. Há sempre que contar com a clássica pontinha de inveja. De facto, a maioria destes privilegiados pela Situação - Almeidas Santos e adjacentes incluídos -, foi sempre gente que pouco mais de uma vintena de anos residiu no território, enriquecendo depressa e juntando cabedais calculadamente entesourados na Metrópole. Com  eles convivia um punhado de velhos colonos, mas eram a excepção que confirmava a regra. Existiam alguns nomes que os avatares da fortuna tornaram mais sonantes, como por exemplo, os Santos Gil, entre outros. Deixaram obra que chegou aos nossos dias. A cidade foi vendo o erguer de casarões na sua parte alta, ainda hoje testemunhos de uma garantida grandeza e em muitos casos, do poder do bom gosto. 


Foram  novíssimos colonos, quem aconselhou os demais a ficar para a construção de um novo país, embora tivessem sido os  primeiros a tudo empacotar á pressa e em segredo, retirando-se logo nos meses transactos ao 25 de Abril. Bem pouco lhes interessou a posição da gente do velho reviralho oposicionista à 2ª República, onde o Dr. Neves Anacleto - avô de Francisco Louçã - se indignava contra a caudalosa, vergonhosa e catastrófica debandada teleguiada de Lisboa. Mas isso é outra história.

 

O que se torna insuportável é a escabrosa intencionalidade de enlamear a memória de uma imensa maioria que jamais conheceu o círculo de restritos horrores alegadamente vividos por uma garotinha que abandonou aos 11 anos uma terra que infelizmente jamais pôde conhecer. O ajuste de contas pessoais com um pai ao qual se juntaria facilmente no divã de um qualquer psicanalista, é um acto perfeitamente legítimo de catarse dentro de quatro paredes, ou no tal universo dos 400m2 matoleiros a que assumidamente se limitou. Mas isso não lhe confere qualquer direito em arrastar para inexistentes e impossíveis "pactos de silêncio", aqueles que ainda conhecem de cor os bairros, ruas, avenidas, becos, jardins, escolas públicas, lojas, mercados e bazares, cafés, praias, grupos desportivos populares. Aqueles que saíram com amigos, foram à praia, brincaram no Parque José Cabral e foram por 5$00 ao cinema, ao sábado á tarde, na Sociedade de Estudos.  Nem a menina Isabela e muito menos a Sra. Dª Fernanda Câncio poderão alguma vez ter percorrido á tarde a Praça 7 de Março. Não fazem a mínima ideia da distância que separa a avenida D. Luís,  da Massano de Amorim. Nunca poderão dizer ter perdido as havaianas no derretido asfalto do cruzamento da rua de Nevala com a rua da Cadeia. Jamais poderão ter comprado uma revista Pisca-Pisca na Spanos, passado uma tarde de leitura na livraria da Coop,  na Minerva Central ou na Biblioteca de LM (antigo edifício da Fazenda). Nunca trincaram um prego no Djambo, uma arrufada na Princesa, um rissol de camarão nos Irmãos Unidos, uma sanduíche de carne assada na Fábrica da Cerveja. Não frequentaram as quase gratuitas aulas no Núcleo de Arte ou poderão adivinhar a localização da Associação dos Naturais de Moçambique. Nunca poderão ter lido o velho  Guardian - inicialmente redigido em inglês -, passado a vista pelas crónicas de Manuel Luís Pombal ou de Guilherme de Melo no Notícias.  Sabem por acaso o que foi o jornal O Brado Africano? Folhearam alguma vez as revistas Actualidade ou Tempo? Conhecerão porventura a existência da fabulosa revista Monumenta, ou a Moçambique (história e sociedade moçambicana)? Escutaram a Maria Adalgisa no Rádio Clube de Moçambique, ou A Palavra é de Prata do Manuel Luís Pombal (RCM), a Estação C ou a emissão em landim do RCM? Nunca, nem sabem ou poderão jamais saber do que falo.  Terão tido à mesa de casa homens como Malangatana Valente, os escultores Chissano e Pfumo, os angolanos visitantes  Duo Ouro Negro, ou jornalistas abertamente frelimistas como Areosa Pena?  Foram alguma vez ao velho Varietá - onde no início do século XX actuaram companhias de ópera -, às matinées do  Scala, Gil Vicente e Infante? Claro que não, nem sequer lhes conhecem os nomes, nem um pouco lhes importa.

 

Esta era uma boa parte da vida colonial nos últimos trinta anos da administração portuguesa em Moçambique. Não está em causa qualquer tipo de anacrónica comparação com a actualidade. Estamos já a falar de História.

 

Muito ficará por dizer num outro post, embora tal não tenha qualquer interesse para gente apenas assoberbada pela sua própria agenda político-remuneratória. De Moçambique, talvez conheçam  - pela presença numa qualquer comitiva - o Polana Hotel, o buffet dominical do Hotel da Inhaca ou o resort do Bazaruto. Degustaram uns camarões na Costa do Sol e frango à cafreal no Piri-Piri e terão contemplativamente perorado diante da caída estátua de Mouzinho. Ou bem vistas as coisas, talvez não. Nem sabem onde actualmente se encontra depositada.

 

 

(1) Maguérre:  em dialecto local, um tipo bimbo, rasca, grosseiro, ordinário e brutal. Atribuído pela generalidade dos negros e brancos naturais, a certa gente que nos anos 60 - algum oficialato incluído -, começou a desembarcar na Província.  Fazia o pleno do pequeno racista recém-chegado de uma Metrópole onde fora copiosamente calcado pelo imobilismo social vigente. Em Moçambique julgava-se transportado para o limbo reservado aos entes superiores, menosprezando os pretos e a "maricagem" (como considerava serem os  brancos naturais daquela terra). Sempre de camiseta interior e de transistor junto da orelha aos domingos, lá se deliciava com os relatos do futebol metropolitano, coçando-se enquanto emborcava Laurentina atrás de Laurentina, submissamente servidas pela mulher, eternamente de bata. Isto não o impedia minimamente de proceder a rotineiras surtidas à zona das Lagoas e da Rua Araújo, no sempre prazenteiro momento de barato gozo nos braços de uma rechonchuda mulata ou de uma negrinha tombazana com a mesma idade das filhas. Nisto, assemelhavam-se bastante aos desprezados boers que em tempo de férias chegavam da terra do Apartheid. Típico.

 

(2) De 1959 a 1974, jamais ouvi falar de qualquer actividade semelhante. Confundirá Moçambique com a Índia do Raj britânico? 

publicado às 17:20


26 comentários

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De P.F. a 06.03.2010 às 16:59

"tem o condão de despertar as maiores aleivosias intelectuais
Nunca um comentário foi tão autodescritivo.
Quanto ao mercado livreiro e à publicação , pelos vistos muito satisfatória pra o JPT, não haja dúvida que a ignorância e a aleivosia andam de mão dadas. Em conjunto com erros de raciocínio, típicos, pois a opção editorial nada tem a ver com a censura. Vossa Excelência tem mil livros por onde pode publicar mas apenas viabilidade para cem. Claro que terá de fazer escolhas e exclusões. Claro, que isto para isso é capz de ser demasiado complicado, pois remete pra as leis do mercado.

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