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"República" entre aspas, aspas e mais aspas

por Nuno Castelo-Branco, em 26.09.10

 

"Sim, porque a república fez, em Portugal, toda a gente doutora. Dantes, doutores, a valer, eram só os que tomavam capelo na Universidade de Coimbra. Depois, passaram a ser também doutores os magistrados; em seguida, os médicos; por fim, com a república, tudo são doutores, desde os lentes aos veterinários. Tal qual como no Brasil, segundo refere Eça de Queiroz na Ultima carta de Fradique Mendes, dirigida a Eduardo Prado e publicada nas Ultimas páginas."

 

Este elucidativo texto de Nuno Rezende, vem bem a propósito da exposição que hoje visitei com o meu amigo Jacques Fieschi. A Cordoaria já teve melhores dias, quando os afazeres marítimos deste país, exigiam a existência de edifícios adequados à manutenção de frotas, fossem elas militares ou comerciais. A exibição propagandística da 1ª República, torna-se deveras surpreendente, consistindo num raro e anacrónico passeio por uma certa vaga de moda escolar que pretendeu fazer da História, um mero instrumento ao serviço de uma oligarquia que mesclava uma inteligentsia omnipotente, com despachantes oficiais encartados em comparsas de ministérios e secretarias públicas. É este precisamente, o caso em questão.

 

Entra-se num átrio vermelho Ferrari e somos recebidos por uma risonha e gira garota, que ao género das açafatas de bordo, lá nos vai indicando a necessidade de validação dos bilhetes, como se de uma viagem CP se tratasse. Prosseguindo, avisou-nos acerca das saídas de emergência - bem precisas são! - e o incontornável bar/lanchonete que somado à indispensável loja de souvenirs, dá o necessário enquadramento ao espírito comercial que uma acção de propaganda implica. Afinal de contas, algumas das paredes estavam cobertas de cartazes publicitários de produtos há muito desaparecidos no mercado, fossem eles cremes de beleza, ou pastas dentífricas que por "mero acaso" destas coisas - habituem-se às aspas -, são hoje notoriamente comercializadas pela loja, que no Bairro Alto é propriedade da mana Catarina Portas. Business, as usual.

 

É uma viagem fantástica pela ficção que alterna uma péssima versão dos aspectos mais kitsch - aqui levados ao extremo - do Amarcord, com pretensões revivalistas do suprematismo de Malevich. De facto, os pouco originais textos que poderiam perfeitamente pertencer à cachoeira verbal do Sr. Rosas, devem-se no entanto, segundo se sabe, a um dos seus ersatz de serviço, a doutora Rollo (lê-se Rolo e não "Rolho à espanhola"). É verdadeiramente espantosa, esta aptidão sectorial para a proliferação de colónias que vão erguendo as suas elaboradas construções, onde quer que lhes seja possível. Estando por todo o lado, resta-nos visitar mais uma das suas obras de encomenda. Deve ser o tradicional espírito dos 7% que pertencia ao PRP e a um inglório e burguesíssimo sucedâneo dos nossos tristes dias.

 

Vê-se que a coisa foi cuidadosamente preparada, destinada a fatigar o público alvo, precisamente aquele que jamais abriu um opúsculo sobre o tema em análise. De facto, após a dantesca visão de um infame e rasca mamarracho que pretende ser uma alegórica estátua à República - uma pétrea mastronça disforme, tosca, de perna curta e a apelar a um necessário Viagra para qualquer eventualidade, o percurso inicia-se com a famosa "ditadura de João Franco", estranho consulado que permitia ao republicanos, todo o tipo de reuniões comicieiras, desacatos da ordem constitucional, insultos soezes ao detentor da Coroa e existência de Centros Republicanos  que alastravam como fungos herpéticos em corpo debilitado. Para se proceder a uma breve crítica daquilo que a Cordoaria expõe, poderíamos tudo resumir à palavra aspas. Aspas, porque não existe linha de texto em que as aspas não surjam, desde "povo" até "liberdade", etc, etc e etc e mais um tanto, se possível. As frases surgem carregadas daqueles termos da habitual geringonça da luta de classes e das "contradições" - cá estão umas aspas -, onde a república dos "possidentes" - mais umas aspas -, choca ostensivamente com a rebeldia de um "povo ignorante e obscurantista" - ora tomem lá mais umas quantas -, que logo após o 5 de Outubro, teimava em sair à rua com fome, sem trabalho, descalço e desvairado de paixão "irracional". Enfim, umas bestas que não "compreendiam" uma "revolução" entre aspas. É certo que há sempre uma subliminar atribuição da "culpa" - mais umas aspas - à Igreja e a um torpe "clericalismo" - e mais umas -, que deixou o país exangue, sem rumo. Nem uma linha, um estrebucho de reconhecimento pelo extraordinário período de desenvolvimento legislativo e material que tornou Portugal, num país muito diferente daquele que existira até meados da década de 60 do século XIX: Nada, nem uma obra pública, ou uma menção aos institutos científicos, a abolição da Pena de Morte, o Código Seabra, as novidades literárias, ou o movimento diplomático que garantiu o Império ao qual a república puxaria pelos grilhões do indigenato, por exemplo. Uma omissão fatal que tem retintos laivos de vergonhosa censura, tão ao gosto concentracionário dos bem pagos copistas de serviço para esta ocasião.

 

Passando rapidamente pelo esgotante percurso, vimos de tudo, desde as óbvias e mal-amanhadas justificações para a infrene violência que devastou a sociedade portuguesa. A hecatombe criou uma maciça onda de verdadeiros refugiados que para sempre deixaram o país para latitudes mais amenas, assim como a miséria que inevitavelmente e tal como hoje bem escutamos telejornal após telejornal, "também se deveu" - cá estão mais aspas - à "conjuntura de crise" internacional, à "guerra", carestia de bens no mercado e claro, está, aos "paivantes" reaccionários e ao "ultramontanismo" que como se sabe, consistiu no mais imediato criacionismo factual republicano. Como sempre, a culpa é do Outro, o infame Outro que tudo impede e estraga.

 

Esta é, definitivamente, uma exposição que mais fala de "possibilidades" e de hipotéticos ou subjacentes "ses", do que um simples, curto e linear narrar de factos. O que se torna absurda e perfeitamente identificável, é a obsessão pela cartilha habitual e que não engana, onde os termos são pertença exclusiva de um certo sector que os tais louvados republicanos de 1910, não teriam hesitado em eliminar  fisicamente, sempre que isso lhes fosse possível. De facto, Rosas, a Sra. Rollo (lê-se Rolo e não Rolho, frise-se bem) e outros, não seriam gente grada aos comparsas dos Formigas, Legionários, Costas e Bernardinos do nosso sofrimento passado e presente.

 

A I Guerra Mundial não obedeceu ao costumeiro "esquema" - mais umas aspinhas - do inacreditavelmente estafado Soldado Milhões, do Carvalho Araújo e então, supreme architecte oblige, lá se mencionaram muito disfarçadamente, a incúria, desleixo, bandalheira organizacional e incompetência, que ditariam vergonhosas, desnecessárias e esmagadoras derrotas na Flandres, em todo o Norte e Centro de Moçambique e num Sul de Angola, desastres estes que fizeram periclitar a soberania portuguesa no Ultramar. Uns aperitivos lúdicos foram servidos para enquadrar a maçada, com umas fotos da pobreza extrema e o contraste bon-vivant dos desportos da época, feitos "épicos" - mais aspas - que levaram vários aviões sucessivamente pilotados pelos mesmos dois "heróis" - mais aspas -, a um Brasil em euforia. E pouco mais.

 

Uma nota de cor e outra de ausência da mesma. Toda a exposição é acompanhada por fundos murais que alternam o "verde com o vermelho bandeira" e após uma esgotante caminhada, qualquer espectador pensará encontrar-se sugado para uma visão mais psicadélica de Vasarelli, estonteando a cabeça e definitivamente distraindo uma atenção já difícil de manter. Apesar de tudo, a comissão "enrolladora", não ousou chegar ao ponto de censurar o "salvador da república" que na derradeira sala, surge sentado ao lado de outros membros do governo da Ditadura Nacional, a tal 2ª República que entre aspas, "jamais existiu". De facto e como dizia uma visitante que após duas horas também estava no ponto certo de fritura mental, Salazar surgia como o fatal e necessário desenlace para todo aquele cubismo exponencial de Pladur pintado e verborreia inconsequente de um país habituado à fábula humanóide que teima em erguer bem perto de qualquer um, o seu montículo, seja ele de térmitas, ou mais concretamente e de forma bem visível, a colossal bolinha do escaravelho que já fede.

 

A sala de descompressão é branca, quase hospitalar, mas riscada por um número inacreditável de palavras de ordem, à guisa de programa jamais cumprido.

 

Saímos por um infindável corredor cinza, ou branco sujo, provável alegoria ao túnel de luz da Morte que liberta espíritos e cansaços terrenos. Um alívio.

 

Como me dizia o inveterado esquerdista que é Jacques Fieschi, dá logo vontade de ir a Belém olhar para o róseo retrato da rainha Amélia de Orleães. Para lavar a vista sem recorrer ao Optrex.

publicado às 18:25


12 comentários

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De Amélia da Foz a 27.09.2010 às 12:47

Gostaria de ler a sua opinião sobre uma prática abjecta, ultrajante, vergonhosa chamada praxe académica e eventos associados: queimas, semanas do caloiro, cortejos, sessões de praxe, etc. Cumprimentos.
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De Amélia da Foz a 27.09.2010 às 12:48

Nota: este comentário é dirigido ao autor do post, Nuno Castelo-Branco.
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De Nuno Castelo-Branco a 27.09.2010 às 14:07

Amélia, quando foi a minha vez, já nos longínquos anos 80, limitei-me a dizer-lhes à porta da Faculdade de Letras: "se me tocas, levas nos cornos!"

Assim mesmo, a seco. NAnos depois, não houve qualquer livro de caricaturas, festas de finalista ou fitinhas. Zero.
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De Nuno Castelo-Branco a 27.09.2010 às 14:08

Dizia, anos depois.
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De Anónimo a 28.09.2010 às 23:40

Eu atirei com o código civil à tromba de um gajo do quinto ano. E no terceiro ano, um pirosito pensando que eu era caloira quis praxar-me, quando ia para uma oral, na entrada da FDL. Nunca na minha vida tinha mandado uma biqueirada mesmo no meio de pernas dum galarote. Soube-me bem.

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