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Na comunidade muçulmana, a Guerra Santa é um dever religioso, devido ao universalismo da missão islâmica e à obrigação de converter todos ao Islão, pela persuasão ou pela força. Os outros grupos religiosos não têm missão universal e a Guerra Santa não é, para eles, um dever religioso, a não ser para fins defensivos.

Ibn Kaldhun

 

A cultura europeia é intrinsecamente materialista e já só conserva o Cristianismo como uma relíquia de família. […] É nosso dever estabelecer a soberania em todo o mundo e converter a humanidade aos sábios preceitos do Islão e seus ensinamentos, sem os quais o homem não pode aspirar à felicidade. 

Hassan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana 

 

Em Agosto de 2008, uma provocação por parte do então presidente georgiano Mikhail Saakashvili viria a precipitar a invasão da Geórgia ordenada por Vladimir Putin e Dmitry Medvedev. O Ocidente assistiu impávido e paralisado a esta invasão, em especial porque Putin utilizou a retórica de defesa dos valores ocidentais para a justificar, argumentando que a sua acção se destinava a proteger os direitos humanos dos cidadãos russos residentes nos territórios da Abkhazia e da Ossétia do Sul. 

 

Em Agosto de 2016, após a proibição de utilização do burkini em alguns municípios franceses, o Conselho de Estado francês suspendeu esta proibição em resposta a um requerimento apresentado pela Liga dos Direitos Humanos e pelo Colectivo Contra a Islamofobia em França.

 

O que estes dois exemplos têm em comum é o facto de serem sintomáticos de uma certa perplexidade do Ocidente perante terceiros que utilizam uma retórica característica dos regimes políticos demo-liberais, em que os valores da liberdade, igualdade, tolerância e direitos humanos são traves-mestras, para impor valores contrários a estes. Pior do que esta perplexidade que paralisa ou torna as instituições ocidentais reféns de valores que lhes são estranhos, só a colaboração de muitos ocidentais nestas investidas. 

 

Com efeito, muitos activistas defensores dos direitos humanos, dos direitos das mulheres e dos direitos das pessoas LGBT, bem como aqueles que, em resultado do domínio do discurso político pelo liberalismo e o neo-marxismo que promovem as ideias de universalismo, multiculturalismo e cosmopolitismo, desprezam ou odeiam as noções de pátria, nação e Estado-nação e a sua própria identidade e herança cultural judaico-cristã, são assaz sensíveis e defensores do acolhimento do Outro, em especial dos muçulmanos, ignorando deliberadamente que estes defendem crenças que estão no extremo oposto das suas. Não é propriamente novidade para ninguém que o islão despreza os direitos humanos, submete as mulheres ao jugo e caprichos dos homens e trata-as de formas inadmissíveis e impensáveis no Ocidente e advoga a morte dos homossexuais, dos infiéis e dos apóstatas. Ainda assim, mesmo em face destas evidências, há sempre quem continue refém do relativismo cultural e do multiculturalismo, não hesitando em pedir que se tenha ainda mais tolerância e respeito por aqueles que nos querem subjugar e aniquilar, aparentando sofrer da Síndrome de Estocolmo, como acontece com Pedro Vaz Patto, que passo a citar (negrito meu):

Não pode conceber-se a integração nas sociedades europeias de imigrantes de outras proveniências culturais como um processo forçado, ou como uma forma de aculturação unilateral. Não pode exigir-se dos muçulmanos que deixem de o ser para se integrarem nas sociedades europeias. O preço dessa integração não pode ser a renúncia à sua identidade. O que se lhe deve exigir é que respeitem outras culturas e identidades, como pretendem que as suas sejam respeitadas. Trata-se de um processo bilateral de diálogo intercultural e de enriquecimento recíproco. Se assim não for, a integração estará condenada ao fracasso. Se prevalecer a ideia de que a integração dos muçulmanos nas sociedades europeias implica alguma forma de renúncia à sua identidade, maior será, neles, a tendência para recusar essa integração, para o ódio ao Ocidente, para o isolamento e para a radicalização.

 

A frase que assinalei a negrito é sintomática de um certo estado mental de quem não conhece ou prefere ignorar deliberadamente o carácter absoluto, totalitário e universalista do islão, que não só não respeita outras culturas como pretende subjugá-las ou aniquilá-las. Enquanto em muitos países muçulmanos os Ocidentais têm obrigatoriamente de se adaptar ao modo de vida e costumes locais - sob pena de poderem cair nas malhas da justiça islâmica -, os muçulmanos em países ocidentais pretendem impor nestes os seus costumes, a sua cultura, a sua religião e as suas leis e têm vindo paulatinamente a consegui-lo. A tolerância é apenas praticada pelos ocidentais, não havendo reciprocidade de tratamento.  

 

Creio ser acertado afirmar que há um desconhecimento, ou uma ignorância deliberada, em relação ao paradoxo da tolerância e ao que Karl Popper escreveu a respeito deste numa das odes contemporâneas ao demo-liberalismo, a sua obra A Sociedade Aberta e os seus Inimigos (tradução e negritos meus): 

 

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Menos conhecido é o paradoxo da tolerância: A tolerância ilimitada tem de levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo àqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra o ataque dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. — Nesta formulação, não quero dizer que, por exemplo, devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; enquanto as possamos contrariar por argumentos racionais e mantê-las sob controlo pela opinião pública, a supressão será certamente insensata. Mas devemos reivindicar o direito de as suprimir, se necessário até pela força; pois pode facilmente dar-se o caso de elas não estarem preparadas para discutir racionalmente connosco, começando por denunciar todos os argumentos; elas podem proibir os seus seguidores de ouvir argumentos racionais, porque são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos utilizando os seus punhos ou pistolas. Devemos, portanto, reinvindicar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante. Devemos afirmar que qualquer movimento que pregue a intolerância se coloca à margem da lei, e devemos considerar o incitamento à intolerância e à perseguição como crime, da mesma forma que devemos considerar como crime o incitamento ao homicídio, ou ao sequestro, ou ao regresso do comércio de escravos.[1]

 

Isto devia ser algo sedimentado nas mentes de muitos ocidentais, mas infelizmente não o é e muitas instituições não se apercebem da armadilha em que caem ao defender a tolerância para com algumas práticas culturais de muçulmanos que vivem no Ocidente, em que, muitas vezes, acabam por defender práticas que se caracterizam pela intolerância e que são contrárias aos valores ocidentais. Esta armadilha é um sinal preocupante de desorientação por parte de muitas instituições. 

 

Perante isto, é particularmente oportuno salientar algumas considerações que Mario Vargas Llosa teceu aquando da proibição do véu islâmico nas escolas públicas francesas (negritos meus):

A imigração, por isso, em vez do íncubo que habita os pesadelos de tantos europeus, deve ser entendida como uma injecção de energia e de força laboral e criativa a que os países ocidentais devem abrir as suas portas de par em par e trabalhar pela integração do imigrante. Mas sem que por isso a mais admirável conquista dos países europeus, que é a cultura democrática, se veja beliscada, mas que, pelo contrário, se renove e enriqueça com a adoção desses novos cidadãos. É óbvio que são estes quem têm de se adaptar às instituições da liberdade e não estas renunciar a si mesmas para se acomodarem a práticas ou tradições incompatíveis com elas. Nisto não pode nem deve haver concessão alguma, em nome das falácias de um comunitarismo ou multiculturalismo pessimamente entendidos. Todas as culturas, crenças e costumes devem ter cabimento numa sociedade aberta, sempre e quando não entrarem em colisão frontal com os direitos humanos e princípios de tolerância e liberdade que constituem a essência da democracia. Os direitos humanos e as liberdades públicas e privadas que uma sociedade democrática garante estabelecem um leque muito amplo de possibilidades de vida que permitem a coexistência no seu seio de todas as religiões e crenças, mas estas, em muitos casos, como aconteceu com o cristianismo, deverão renunciar aos maximalismos da sua doutrina – o monopólio, a exclusão do outro e práticas discriminatórias e lesivas dos direitos humanos – para ganhar o direito de cidadania numa sociedade aberta. Têm razão Alain Finkielkraut, Élisabeth Badinter, Régis Debray, Jean-François Revel e aqueles que estão com eles nesta polémica: o véu islâmico deve ser proibido nas escolas públicas francesas em nome da liberdade.[2]

 

Quem esteja minimamente atento pode facilmente observar que, na Europa, as concessões ao multiculturalismo e ao relativismo cultural têm permitido, a coberto da tolerância, que práticas intolerantes tenham vindo a instalar-se paulatinamente em vários países. Muitos muçulmanos, ao invés de renunciarem aos maximalismos da sua doutrina, têm tentado impô-los.  Não surpreendem, por isso, episódios como os relatados por Gavin Mortimer, em que muçulmanos se sentem à vontade para insultar e agredir não apenas mulheres muçulmanas que não adoptam práticas como a de tapar o corpo na totalidade, mas também mulheres europeias. Como ficou patente a propósito da recente polémica do burkini, muitos europeus ignoram esta realidade. Ignoram, como salienta Mortimer, a extensão do extremismo islâmico em França, onde 100 das 2500 mesquitas são controladas por salafistas, ou seja, pela corrente mais puritana e fundamentalista do islão, que defende que todas as mulheres andem sempre cobertas. O burkini é parte da sua estratégia, sendo um símbolo da pureza islâmica que serve como forma de distinção entre as muçulmanas moralmente boas (as que usam o burkini) e as moralmente más (as que não usam o burkini). Naturalmente, existem muçulmanas que não pretendem envergar o burkini e que sofrem pressões por isso mesmo. No meio desta polémica, a maioria das pessoas, mais preocupada em defender a liberdade de vestir o que se queira, não entendeu ou ignorou isto, mesmo quando Nicolas Sarkozy afirmou o óbvio: trajar o burkini é um acto político e se este não for proibido, corremos o risco de que raparigas muçulmanas que não pretendam usar o véu ou o burkini venham a ser estigmatizadas e sofram pressões sociais. Na realidade, situações deste género já acontecem. Mortimer revela que uma organização muçulmana chamada "Femmes sans voile" (Mulheres sem véu) publicou uma declaração no Dia Internacional Mulher em que afirmou que as mulheres que a compõem se recusam a usar véu por consubstanciar uma violência simbólica visível no espaço público, e que os islamistas estão a formalizar a desigualdade entre os sexos na família e na sociedade em detrimento dos valores fundamentais da república francesa.

 

Aqueles que defendem a suspensão da proibição do burkini, sendo tolerantes com os intolerantes, não percebem que estão a colocar a tolerância em risco; pretendendo promover a liberdade individual, não percebem que estão precisamente a ajudar a reduzi-la; e sendo França o país que tem como mote "Liberté, égalité, fraternité", não deixa de ser irónico que estejam a ajudar a promover a desigualdade. Sustentando as suas decisões em argumentos assentes na liberdade religiosa, não vislumbram os perigosos precedentes que estão a abrir. Importa, por isso, voltar novamente às considerações de Vargas Llosa sobre a proibição do véu islâmico nas escolas públicas francesas, que são igualmente adequadas no caso da proibição do burkini (negritos meus):

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As meninas enviadas pelas suas famílias e comunidades ornamentadas com o véu islâmico para as escolas públicas de França são algo mais do que parece ao simples olhar; isto é, são a avançada de uma campanha empreendida pelos sectores mais militantes do integrismo muçulmano em França, que procuram conquistar uma cabeça de praia não só no sistema educativo como em todas as instituições da sociedade civil francesa. O seu objectivo é que se lhes reconheça o direito à diferença, por outras palavras, a usufruir, naqueles espaços públicos, de uma extraterritorialidade cívica compatível com o que aqueles sectores afirmam ser a sua identidade cultural, sustentada nas suas crenças e práticas religiosas. Este processo cultural e político que se esconde por detrás dos amáveis apelos de comunitarismo ou multiculturalismo com que os seus mentores o defendem, é um dos mais potentes desafios que a cultura da liberdade enfrenta nos nossos dias e, segundo me parece, é essa a batalha que no fundo começou a travar-se em França por detrás das escaramuças e encontrões de aparência superficial e episódica entre partidários e adversários de as meninas muçulmanas poderem ou não usar o véu islâmico nas escolas públicas de França.

(…)

Este argumento [o direito de as meninas muçulmanas assistirem às aulas com véu, por respeito à sua identidade e à sua cultura], levado aos seus extremos, não tem fim. Ou, melhor dizendo, se se aceitar, cria uns precedentes poderosos para aceitar também outros traços e práticas tão ficticiamente «essenciais» à cultura própria como os casamentos das jovens negociados pelos pais, a poligamia e, ao extremo, a ablação feminina. Este obscurantismo disfarça-se com um discurso de alardes progressistas: com que direito é que o etnocentrismo colonialista dos franceses de velho cunho quer impor aos franceses recentíssimos de religião muçulmana costumes e procedimentos que são contrários à sua tradição, à sua moral e à sua religião? Fertilizada por ousadias supostamente pluralistas, a Idade Média poderá assim ressuscitar e instalar um enclave anacrónico, desumano e fanático na sociedade que proclamou, a primeira no mundo, os Direitos do Homem. Este raciocínio aberrante e demagógico deve ser denunciado com energia, como aquilo que é: um perigo gravíssimo para o futuro da liberdade. [3]

 

Aqui chegados, debrucemo-nos agora sobre as questões mais amplas do islão e o fundamentalismo islâmico e as suas relações com o Ocidente. Um dos lugares-comuns mais propagandeados a respeito do islão é o de que este é uma religião de paz. Outro é o de que o fundamentalismo islâmico é uma corrente minoritária do islão que interpreta o Alcorão e os hadith (conjunto de relatos dos ensinamentos e hábitos do profeta Maomé que compõem a jurisprudência e são importantes na interpretação do Alcorão) perversa e erradamente. Ora, a propósito do ataque terrorista a uma discoteca gay em Orlando, um gay muçulmano, Parvez Sharma, escreveu que "Chamar ao islão uma religião de paz é perigoso e redutor. Tal como os outros dois monoteísmos que o precedem, tem sangue nas suas mãos", e assinalou ainda que o cânone islâmico que emergiu após a morte de Maomé sanciona a violência e condena a homossexualidade. A respeito desta última, a sharia é inequívoca. Em Reliance of the Traveller: A Classic Manual of Islamic Sacred Law, encontra-se a seguinte passagem transcrita por Andrew C. Mccarthy:

Sec. p17.0: SODOMY AND LESBIANISM

 

Sec. p17.1: In more than one place in the Holy Koran, Allah recounts to us the story of Lot’s people, and how He destroyed them for their wicked practice. There is consensus among both Muslims and the followers of all other religions that sodomy is an enormity. It is even viler and uglier than adultery [AM: which is punished brutally, including by death].

 

Sec. p17.2: Allah Most High says: “Do you approach the males of humanity, leaving the wives Allah has created for you? But you are a people who transgress” (Koran 26:165-66).

 

Sec. p17.3: The Prophet (Allah bless him and give him peace) said:

 

1. “Kill the one who sodomizes and the one who lets it be done to him.”

 

2. “May Allah curse him who does what Lot’s people did.”

 

3. “Lesbianism by women is adultery between them.”

 

É também na sharia que se estabelece a pena de morte como castigo pela apostasia, a flagelação como pena por crimes como beber álcool ou o adultério no caso de pré-pubescentes, sendo que nos restantes casos de adultério aplica-se a pena de morte por apedrejamento, entre outras penas para outros crimes que, à luz dos valores Ocidentais, não são crime algum. É bastante esclarecedor consultar algumas passagens da sharia neste artigo de Mccarthy. Conforme este sublinha, a sharia não é uma invenção da Al-Qaeda, do Daesh ou de qualquer outro grupo fundamentalista islâmico. A sharia é a lei islâmica.

 

Sobre as ideias de que o islão é uma religião de paz e o fundamentalismo islâmico um desvio que seria, até, anti-islâmico, Jaime Nogueira Pinto escreve o seguinte em Ideologia e Razão de Estado:

Existe também muita controvérsia à volta da natureza do Islão: será uma “religião de paz”, como pretende a maioria dos seus seguidores moderados, que consideram o terrorismo islâmico um desvio e uma deturpação dos ensinamentos do Profeta, ou encerra uma mensagem de proselitismo armado, em que a conversão ou a supressão física é a única alternativa dada aos apóstatas, aos ímpios, aos infiéis, aos não-crentes?

 

Existem nos livros sagrados islâmicos, no Corão (a lei) e nos Hadith (a jurisprudência), passagens, prescrições e disposições que vão num e noutro sentido. Como acontece aliás, com o Antigo Testamento judaico-cristão e até com os Evangelhos. Mas tal como Moisés e ao contrário de Cristo, Maomé foi um profeta armado e tanto o seu estilo guerreiro, épico e violento como a História sangrenta dos primeiros califas e da expansão muçulmana contra Bizâncio e os Persas, da Índia à Península Ibérica, parecem favorecer uma interpretação mais radical do Islão, reforçada pela sua juventude enquanto religião em fase de recuperação do tempo perdido e pelo facto de o uso da força ser recomendado nos próprios textos sagrados. Textos que, na versão ortodoxa, deverão ser interpretados literalmente.

 

Para esta corrente, o próprio Corão não só não impede a via totalitária do Islão como a encoraja: Maomé é um chefe militar sequioso de conquistas, faz da guerra santa e da morte na guerra santa o mais glorioso objectivo do crente, usa de uma linguagem de grande fúria e virulência, não mostra qualquer espécie de tolerância para com os não-crentes e institui uma teocracia absoluta que não estabelece nem admite distinção entre fé e razão. Terá, assim, criado uma religião radical, que pelo seu empenhamento territorial e político, pode justificar um tipo de totalitarismo ideológico, uma espécie de teocracia revivalista e absoluta.

 

(...)


Maioritário ou minoritário no mundo islâmico, legitimado ou não pelos textos do Corão, o islamismo radical é uma realidade materializada num movimento ideológico e activista que desencadeou uma guerra contra os Estados Unidos, Israel e os Estados árabes “heréticos”. Estes últimos fazem parte da “Casa da Guerra" porque os seus governantes são considerados ímpios ou apóstatas.[4]

 

O último parágrafo refere-se à Al-Qaeda, mas é igualmente adequado ao Daesh, sendo apenas de acrescentar que também a Europa se encontra entre os inimigos do islamismo radical. Embora a distinção entre islão e islamismo radical seja útil, a ideia de que o Ocidente não tem problemas com o islão, mas sim com os fundamentalistas islâmicos, é simplista e politicamente correcta, mas não é verdadeira, como assinala Samuel Huntington (tradução e negritos meus):

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Alguns ocidentais, incluindo o Presidente Bill Clinton, têm argumentado que o Ocidente não tem problemas com o islão, mas apenas com extremistas islâmicos violentos. Mil e quatrocentos anos de história demonstram o contrário. As relações entre o Islão e a Cristandade, quer a Ortodoxa, quer a Ocidental, têm sido tempestuosas. Cada um tem sido o Outro do outro. O conflito do século XX entre a democracia liberal e o Marxismo-Leninismo é apenas um fenómeno histórico efémero e superficial em comparação com a continuada e profundamente conflitual relação entre o Islão e a Cristandade. Por vezes, tem prevalecido a coexistência pacífica; mais frequentemente, a relação tem sido de intensa rivalidade e pautada por vários graus de guerra quente. As suas "dinâmicas históricas" comenta John Esposito, "... levaram a que as duas comunidades se encontrassem frequentemente em competição e, por vezes, empenhadas num combate mortal por poder, território e almas." Ao longo dos séculos, as fortunas das duas religiões têm ascendido e caído numa sequência de importantes vagas, pausas e vagas contrárias.[5]

 

Ainda assim, em relação ao islamismo radical, importa também questionar, de acordo com Jaime Nogueira Pinto, se

Estaremos perante um desígnio universal, uma ideologia-religião islâmica que pretende a conversão do mundo aos seus ensinamentos pela palavra e pela força, ou apenas perante um movimento que pretende restaurar a verdadeira fé na área islâmica (o mundo árabe e a Ásia, o Magrebe e a África islamizados), corrigindo e castigando os heréticos e desapossando-os do poder? Se se trata de restabelecer a “casa de Deus” (o verdadeiro Islão), na “Casa da Guerra” (o mundo árabe não ortodoxo) deixando em paz o resto do globo desde que este os deixe em paz, é uma coisa; se se trata de exportar uma religião e converter o resto do mundo, é outra.[6]

 

No seguimento da passagem supracitada, importa sublinhar que o islão efectua uma distinção entre o dar al-islam, o mundo onde se aplica o islão, ou seja, a casa de Deus, e o dar al-harb, o mundo ou casa da guerra, que, segundo José Adelino Maltez, "seria necessário converter, através de um esforço, dito jihad." Embora o significado de jihad seja disputado pelas várias correntes de interpretação do islão, existem três formas de jihad: "a maior, que tem a ver com o combate do crente contra um inimigo interior, contra as paixões e a inclinação para o mal; a menor interior, que ocorre dentro do próprio mundo islâmico, contra os renegados e os apóstatas, justificando a dominação dos rebeldes e dos tiranos pela força; e a menor exterior, que tem a ver com a expansão do Islão em todo o mundo."[7] Se é verdade que, em relação a esta última, o Alcorão e os ensinamentos islâmicos afirmam que deve ser apenas defensiva e impõem determinadas condições para que os muçulmanos possam pegar em armas - têm de sofrer alguma forma de opressão em relação à prática do islão e ameaças às suas vidas, devem ter sido forçados a deixar as suas casas no local onde ocorre a opressão e só se o opressor continuar a oprimi-los no local para onde se mudaram e a ameaçar as suas vidas é que podem pegar em armas -, e estabelecem também condições em relação ao que é permitido na guerra defensiva - como, por exemplo, civis que não lutem contra o islão não devem ser atacados, mulheres, homens e idosos devem permanecer intocáveis e os prisioneiros de guerra devem ser tratados com respeito - também não é menos verdade que a Al-Qaeda veio romper com estes ensinamentos, tendo Bin Laden, de acordo com Jaime Nogueira Pinto, justificado a guerra total em virtude da desproporção dos meios em relação ao inimigo, inscrevendo-se, desta forma, na linha extremista do wahhabismo,[8] que tem uma visão integrista e puritana do islão. E se a Al-Qaeda trouxe esta novidade, o que dizer do Daesh, cuja violência extrema é uma imagem de marca? 

 

Com efeito, o islamismo moderno, nas palavras de Roger Scruton, "é um exemplo daquilo a que Burke chamou, ao descrever os revolucionários franceses, uma "doutrina armada", ou seja, uma ideologia agressiva apostada em erradicar toda e qualquer oposição."[9]  O islamismo promove uma irmandade que "fala secretamente ao coração de todos os muçulmanos, unindo-os contra o infiel,"[10] e levou até a uma confluência entre xiitas e sunitas que esteve na base do chamado ressurgimento islâmico, aparecendo o islão, "pela primeira vez em muitos séculos, (...) - aos olhos de muçulmanos, mas também aos olhos dos infiéis - como um movimento religioso uno e unido em torno de um objectivo comum," o que fica a dever-se, em muito, a dois factores, "a civilização ocidental e o processo de globalização que ela desencadeou."[11] Conforme salienta o filósofo britânico,

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No tempo em que o Oriente era o Oriente e o Ocidente era o Ocidente, os muçulmanos podiam consagrar as suas vidas a deveres piedosos e ignorar o mal que prevalecia no dar al-harb. Mas quando o mal se espalha por toda a terra, propondo alegremente liberdades e direitos em vez dos rígidos deveres de um código religioso, e chega a invadir o dar al-islam, despertam os velhos antagonismos e, com eles, a velha necessidade de recrutar aliados contra o infiel.[12]

 

A própria utilização, com uma pesada conotação pejorativa, do termo infiel (kafir) - embora o cristianismo também tenha utilizado o termo no passado - para designar todos os que não crêem no islão, que devem ser persuadidos a converter-se, pela palavra ou pela força, ou combatidos e mortos, é ilustrativa de como esta religião encara a tolerância e a liberdade religiosa. Segundo Christopher Hitchens,

O islão começou não só por condenar todos os cépticos ao fogo eterno como continua a reivindicar o direito de fazer o mesmo em quase todos os seus domínios e continua a pregar que esses mesmos domínios podem e têm de ser alargados através da guerra. Durante a minha vida, nunca houve uma tentativa de questionar ou sequer investigar as reivindicações do islão que não tenha sido recebida com uma repressão extremamente dura e célere. Assim sendo, temos o direito de concluir provisoriamente que a aparente unidade e confiança da fé são uma máscara para uma insegurança muito profunda e, provavelmente, justificável. Naturalmente, nem será preciso dizer que existiram e existirão sempre feudos sanguinários entre diferentes escolas do islão, resultando em acusações estritamente intermuçulmanas de heresia e profanação e em actos de violência terríveis.[13]

 

Independentemente das discórdias e conflitos entre as várias correntes do islão, os infiéis são um inimigo comum. A este respeito, vejamos o que afirmou o Ayatollah Khomeini em 1984, citado em O Ocidente e o Resto de Scruton:

Se permitirmos que os infiéis continuem a desempenhar a sua missão de corruptores da terra, tanto maior será o seu castigo. Assim, se matarmos os infiéis para pôr termo à sua actividade [corruptora], estaremos na verdade a prestar-lhes um serviço. Pois o seu castigo final será menor. Permitir que os infiéis permaneçam vivos significa autorizá-los a prosseguirem as suas actividades corruptoras. [Matá-los] é uma operação cirúrgica ordenada por Alá, o Criador... Aqueles que respeitam as regras do Corão sabem que devemos aplicar as leis de qissas [retribuição] e que devemos matar... A guerra é uma bênção para o mundo e para todas as nações. É Alá quem ordena aos homens que combatam e matem.[14] 

 

Embora seja possível encontrar passagens no Alcorão para justificar a ideia de que o islão é uma religião de paz, de acordo com Scruton (negritos meus),

o facto é que a interpretação de Khomeini da mensagem do Profeta encontra confirmação no texto e reflecte precisamente a apropriação do político que tem distinguido as revoluções islâmicas no mundo moderno.

 

No entanto, os sentimentos de Khomeini não lhe foram inspirados apenas pela sua leitura do Corão, constituindo igualmente o resultado de um exílio prolongado, primeiro no Iraque e a seguir no Ocidente, onde viveu protegido pelos infiéis que pretendia esconjurar pela aniquilação. E demonstram claramente que as virtudes dos sistemas políticos ocidentais são, para uma determinada mentalidade islâmica, incompreensíveis - ou compreendidas, como foram por Qutb e Atta, como falhas morais imperdoáveis. Mesmo desfrutando da paz, bem-estar e liberdade decorrentes de um estado de direito secular, alguém que encara a charia como o caminho único da salvação pode ver nessas vantagens meros sinais de vazio espiritual ou de corrupção. Para alguém como Khomeini, os direitos humanos e o governo secular denunciam a decadência da civilização ocidental, que não consegue erguer-se contra aqueles que a querem destruir e espera em vez disso conseguir apaziguá-los. Mas para o militante islamista não há compromisso possível e os sistemas que se norteiam pelos princípios do compromisso e da conciliação são meros agentes do Diabo.[15]

 

Aqueles que se encontram reféns da retórica dos direitos humanos e advogam mais tolerância para com práticas muçulmanas que, na verdade, ofendem os direitos humanos, não percebem que estão apenas a sinalizar aos muçulmanos a fraqueza do Ocidente perante os que o querem subjugar. Como Scruton assinalou em 2009, num ensaio intitulado "Islam and the West: Lines of Demarcation", o Ocidente encontra-se num perigoso período de concessão ao islão, em que as legítimas revindicações da nossa própria cultura são ignoradas ou minimizadas como forma de provar as nossas intenções pacíficas. 

 

Que fazer?

 

José Meireles Graça, a propósito da polémica em torno do burkini, escreveu o seguinte:

Finalmente: É uma atitude inteligente o Estado, em vez de fechar as madraças onde se ensine o ódio ao Ocidente, e impedir a construção de mais mesquitas onde se prega o obscurantismo de uma religião à qual os muçulmanos moderados ainda não impuseram o aggiornamento, andar pelas praias a multar mulheres que tiveram a infelicidade de nascer em sociedades medievais?

Há quem diga, com boas razões, que não. Inclino-me a pensar que sim, não porque a verdadeira guerra esteja aí mas porque, para tratar doenças, nos devemos preocupar com as causas, mas sem desprezar o tratamento sintomático.

 

Partilho desta opinião. É verdade que há questões muito mais importantes e prioritárias nas relações com o islão. Mas também é verdade que muitas instituições ocidentais têm feito concessões a práticas que violam os valores do Ocidente e que, no meio da desorientação que nelas grassa, talvez já nem saibam bem o que fazer no que concerne às relações com o islão. Ora, é preciso começar por algum lado, nem que seja por alguns dos sintomas. 

 

Muito se fala, em Teoria das Relações Internacionais, de hard power soft power. É um lugar-comum dizer-se que, frequentemente, o soft power, isto é, a influência, só consegue alcançar os seus objectivos se tiver forma de os alcançar também através do hard powerSoft power sem hard power leva muitas vezes a resultados insatisfatórios. 

 

O mesmo se pode aplicar em relação à forma como as instituições ocidentais devem lidar com as reivindicações do islão nos países ocidentais. Em primeiro lugar, devem abandonar a retórica multiculturalista e perceber a armadilha a que aludi neste post, quando com a intenção de defenderem a tolerância ou a liberdade, acabam por fazer concessões a práticas que colocam estes valores em causa. Em segundo lugar, se as instituições - bem como muitos indivíduos ocidentais - pretendem continuar a pedir tolerância e respeito aos muçulmanos (soft power), têm de estar preparadas para não fazer concessões em tudo o que ofenda os valores ocidentais (hard power), para que os muçulmanos entendam que, no Ocidente, são a cultura e os valores ocidentais que imperam. O Ocidente tem um património cultural e político que tem de ser defendido.

 

Scruton, na parte final do artigo que acima mencionei, recomenda isto mesmo como forma de nos defendermos do islamismo. Após aludir a sete características definidoras do Ocidente e que o distinguem das comunidades islâmicas, o britânico diz-nos que temos de estar preparados para não fazer concessões aos que querem que nós "troquemos a cidadania pela sujeição, a nacionalidade pela conformidade religiosa, a lei secular pela sharia, a herança judaico-cristã pelo islão, a ironia pela solenidade, a auto-crítica pelo dogmatismo, a representação pela submissão e a alegria de beber pela abstinência censória. Devemos tratar com desprezo  todos os que exigem estas mudanças e convidá-los a viver onde a sua forma de ordem política preferida já se encontra em vigor. E devemos responder à sua violência com a força que seja necessária para contê-la."

 

1 - Karl Popper, The Spell of Plato, vol. 1 de The Open Society and Its Enemies (London: Routledge, 2003), 293.

2 - Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo (Lisboa: Quetzal Editores, 2012), 98.

3 - Ibid., 96-97.

4 - Jaime Nogueira Pinto, Ideologia e Razão de Estado (Porto: Civilização Editora, 2013), 906-907.

5 - Samuel P. Huntington, The Clash of Civilizations (Londres: Simon & Schuster, 2002) 209.

6 - Jaime Nogueira Pinto, Ideologia e Razão de Estado, 906.

7 - José Adelino Maltez, Curso de Relações Internacionais (São João do Estoril: Principia, 2002), 93.

8 - Jaime Nogueira Pinto, O Islão e o Ocidente, 4.ª ed. (Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2015), 150-151.

9 - Roger Scruton, O Ocidente e o Resto (Lisboa: Guerra e Paz, 2006), 102.

10 - Ibid., 114.

11 - Ibid., 111.

12 - Ibid., 111-112.

13 - Christopher Hitchens, Deus não é grande, 2.ª ed. (Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2010), 152.

14 - Roger Sruton, O Ocidente e o Resto, 108.

15 - Ibid., 108-109.  

publicado às 14:10

Brexini

por John Wolf, em 27.08.16

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Theresa May não irá esperar por Maio para despoletar o processo conducente à saída do Reino Unido (RU) da União Europeia (UE). A senhora não necessita de treinos unidos para rodar a maçaneta e dar de frosques. Ao contrário da geringonça, que se pautou pelo mais alto teor de expressão democrática parlamentar (para se parir, para se dar à luz,) a primeira-ministro e lider dos Tories avançará para a remoção do RU da UE sem a aprovação parlamentar do artigo 50. Por outras palavras, o artigo 50 segue despido de farda legislativa regular. Trata-se de um Brexini - o uniforme pouco importa. Um Brexit é um Brexit e qualquer pretexto formal não servirá para descarrilar a intenção expressa em referendo. Enquanto os franceses discutem os bons costumes balneares, os britânicos aplicam uma camada de pragmatismo. Aliás, os últimos meses serviram para medir a capacidade de resistência da economia britânica. A queda da libra tem ajudado os exportadores e alternativas ao comércio com parceiros da UE parecem ganhar cada vez mais forma. No entanto, e seguindo este rumo, ninguém poderá negar a bastonada que o Parlamento Britânico leva. Numa Europa cada vez mais à mercê de devaneios de consensos, e equilíbrios desejados, temos aqui a prova de que a unilateralidade decisória está a encontrar o seu poiso, o seu acampamento. Embora não se trate de uma ordem executiva, poderemos afirmar que o RU já não depende de terceiros para domesticar o estado de arte da sua política. Isto é apenas o início de algo. Um ponto de inflexão, se quiserem.

publicado às 16:47

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Uma questão que marca a actualidade e tem alimentado indignações e tomadas de posição um pouco por todo o lado é a proibição da utilização do burkini em França.

 

Como o discurso político nas sociedades ocidentais é, em larga medida, enformado pelas ideias de que é proibido proibir, igualdade e tolerância, não sendo também despiciendo salientar o ódio votado por muitos aos seus próprios países e à matriz cultural onde nasceram e foram socializados, temos vindo a assistir a algo que considero verdadeiramente espantoso por parte dos que criticam a decisão francesa: a comparação com freiras que utilizam os seus hábitos quando vão à praia. 

 

Ora, esta comparação, a coberto da defesa da liberdade de escolha na indumentária, pretende tratar como objectivamente igual aquilo que é desigual e que tem uma natureza simbólica muito diferente. Enquanto o burkini, como a restante indumentária muçulmana feminina, tem um carácter coercivo imposto por uma religião que não só é estranha ao Ocidente, como pretende submetê-lo ao seu jugo, o hábito é um traje cuja utilização resulta de uma escolha voluntária por parte da freira que o enverga. Enquanto a indumentária feminina muçulmana simboliza a submissão de mulheres a quem é retirada qualquer liberdade de escolha, o hábito das freiras simboliza a dedicação voluntária à religião cristã que, gostemos ou não, está na base da matriz cultural ocidental - e, saliente-se, eu sou agnóstico. Aliás, como assinala Mark Vernon em How to be an Agnostic, ser agnóstico só faz sentido no contexto do cristianismo - não será, com certeza, por mero acaso que a apostasia é crime na generalidade dos países muçulmanos, sendo, em alguns, punida com pena de morte. Adaptando um dito atribuído a Franklin D. Roosevelt, diria que "As freiras podem envergar uma indumentária religiosa, mas é a nossa indumentária religiosa." A indumentária feminina muçulmana é estranha ao Ocidente e contém em si a crítica aos valores Ocidentais que enformam os direitos humanos, os direitos da mulher e a liberdade individual. Por tudo isto, a proibição do burkini em França é uma decisão correcta e corajosa, ao passo que a permissão de utilização do hijab nos uniformes policiais no Canadá e na Escócia é mais um contributo para o suicídio cultural ocidental.

 

Não fosse a desorientação que grassa em muitas alminhas ocidentais e provavelmente não assistiríamos a esta comparação reveladora do suicídio cultural ocidental. Para quem ainda não tenha percebido, nós estamos em guerra com outra civilização, a do islão, mesmo que o não queiramos. Continuar a enterrar a cabeça na areia e fingir que somos todos iguais e que é possível a generalidade dos muçulmanos adoptar os valores ocidentais, é apenas adiar encarar o inevitável: o islamismo elegeu-nos como inimigo e temos de o enfrentar em várias frentes.

publicado às 08:54

Ele há juristas e juristas

por Samuel de Paiva Pires, em 24.08.16

Tenho vindo a seguir, nas últimas noites, o acompanhamento do caso da agressão em Ponte de Sor pela SIC Notícias. Há dias, Paulo Saragoça da Matta introduziu, no que à componente jurídica diz respeito, uma grande confusão sobre a questão da imunidade diplomática. Ontem, Dantas Rodrigues parecia estar a alucinar em directo. Hoje, foi a vez de um Paulo Sternberg reclamar uma interpretação actualista da Convenção de Viena Sobre Relações Diplomáticas e sugerir que Portugal rompesse com esta, não respeitasse o instituto da imunidade diplomática e detivesse os filhos do Embaixador do Iraque. Ainda que mal pergunte, onde é que a SIC Notícias desencanta estes juristas?

publicado às 23:01

Após assistir à entrevista que os filhos do Embaixador do Iraque deram à SIC Notícias, e independentemente das diferentes versões sobre os desacatos entre estes e o grupo de cerca de seis jovens de Ponte de Sor, creio que se fica, pelo menos, com a certeza de que os jovens de Ponte de Sor agrediram os jovens iraquianos, que, depois deste desacato, abandonaram o local, retornando mais tarde e encontrando Ruben Cavaco sozinho, tendo-o espancado brutalmente.

 

Tal como salientei no meu post anterior, não se encontram preenchidos os pressupostos da legítima defesa invocada por parte da Embaixada do Iraque, não só pelo manifesto excesso de violência, como também porque o espancamento de Ruben Cavaco não se destinou a repelir uma acção naquele momento - a este respeito, é importante ter em conta o que nos diz o artigo 32.º do Código Penal: "Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro."

 

Por outro lado, toda a celeuma em torno da questão da imunidade diplomática pode esfumar-se, se for verdade que, como noticia o Económico, o Embaixador do Iraque pretende avançar com uma acção judicial. Ora, assim sendo, basta atentar no número 3 do artigo 32.º da Convenção de Viena Sobre Relações Diplomáticas, que nos informa que "Se um agente diplomático ou uma pessoa que goza de imunidade de jurisdição nos termos do artigo 37.º inicia uma acção judicial, não lhe será permitido invocar a imunidade de jurisdição no tocante a uma reconvenção directamente ligada à acção principal", para perceber que caso Ruben Cavaco seja um dos réus da acção proposta pelos iraquianos, se esta for de natureza meramente civil, pode, através de um pedido reconvencional, processar os jovens iraquianos, sendo-lhes, neste caso, vedada a possibilidade de invocação da imunidade diplomática - devendo-se ainda salientar que, se se tratar de uma acção de natureza penal, não está prevista no Código de Processo Penal a possibilidade de reconvenção.

publicado às 14:05

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Não é necessário regressar às Lajes de Durão, Aznar, Bush e Blair para estabelecer uma ligação doida com os eventos de Ponte de Sor. Teria sido uma vendetta aquilo que os filhos do embaixador do Iraque encetaram? Não me parece. Contudo, o governo de inspiração integracionista, o agrupamento alfa do PS, BE e PCP parece temer represálias do Iraque. O caso está a ganhar contornos bizarros. Está na praça pública. Encontra-se nas mãos da opinião pública. Os ódios, alimentados pela violência perpetrada na Síria e Iraque pelo Estado Islâmico, estão a contaminar este caso de um modo preocupante, mas que não deve ser menosprezado. Registamos a apetência para o despoletar de reacções mais extremas se o governo da República Portuguesa não souber gerir o processo de um modo inequívoco. São as águas de bacalhau que têm causado dano a Portugal, que têm minado a sua credibilidade. Onde está Guterres? Não tem opinião sobre a matéria? Poderia ter, mas não é obrigatório que tenha. Grave é o desaparecimento de António Costa (estará a banhos?) e a ausência de comentário de Marcelo Rebelo de Sousa - o presidente com poderes para acreditar e desacreditar embaixadores. Se fosse o filho do embaixador do Canadá a partir a fuça de um cidadão português, até poderia compreender a neutralidade conveniente. Afinal os juros da dívida portuguesa continuam a subir e a agência de rating canadiana DBRS tem nas mãos o futuro de Portugal. Basta mais uma castanhada financeira e lá se vão as ajudinhas do BCE, e Portugal fica a ver estrelas. Como podem constatar, a não ser que o Iraque tenha voto no rating de Portugal, as reverências nacionais não fazem muito sentido. Os filhos do embaixador do Iraque discursam de um modo imaculado, com o polimento de um colégio britânico, e demonstram que são melhores que o governo de Portugal. E isto é inacreditável. Perdoai-os - o governo de Portugal.

publicado às 11:13

Apesar da explicação clara do Embaixador Seixas da Costa, temos vindo, nos últimos dias, a assistir a algumas intervenções e reacções a este caso que indiciam uma certa confusão, alimentada, por exemplo, pelas intervenções de Paulo Saragoça da Matta, no que à componente jurídica diz respeito.

 

Em primeiro lugar, o referido jurista, ainda há pouco, na SIC Notícias, afirmou que “a simples exibição de um passaporte diplomático”, isto é, a invocação da imunidade diplomática, “não leva a parar uma investigação criminal”. Ora, verifica-se aqui uma presunção errada de que a imunidade diplomática poderia ser invocada para impedir uma investigação criminal, o que não é verdade, nem faz parte das componentes da imunidade diplomática tipificadas na Convenção de Viena Sobre Relações Diplomáticas.

 

Em segundo lugar, Saragoça da Matta destacou o artigo 41.º da Convenção de Viena, cujo primeiro parágrafo nos diz que “Sem prejuízo de seus privilégios e imunidades, todas as pessoas que gozem desses privilégios e imunidades deverão respeitar as leis e os regulamentos do Estado acreditador. Têm também o dever de não se imiscuir nos assuntos internos do referido Estado”. Na sequência lógica da sua exposição, o jurista procurou utilizar este artigo para justificar a acção judicial por parte do Estado português (o Estado acreditador) contra os filhos do Embaixador do Iraque. Para tal, referiu que o espírito da Convenção, no que à imunidade diplomática diz respeito, pretendeu criar uma bolha de protecção do diplomata e dos seus familiares contra agressões ou perseguições por parte do Estado acreditador, o que, como salientou o jornalista da SIC Notícias, não aconteceu neste caso, pelo que, prosseguiu o jurista, o Estado português já devia ter feito algo, não no que ao poder executivo diz respeito, mas sim no que é responsabilidade do poder judicial. Dado que os filhos do Embaixador do Iraque, como mostrou o breve trecho da entrevista que a SIC Notícias passará na íntegra amanhã, não invocaram a imunidade diplomática, segundo Saragoça da Matta, nem se coloca a questão de a imunidade diplomática ser levantada, mas concluiu ainda o jurista que, caso a imunidade venha a ser invocada, pode pedir-se ao Iraque (o Estado acreditante) que levante a imunidade diplomática das pessoas em causa, para que possam ser sujeitas à jurisdição penal do Estado acreditador. Por último, revelou ainda o jurista que existem manuais de Direito e Relações Internacionais onde se encontra plasmada a ideia de que, em certas situações – não referiu quais –, pode o Estado acreditador retirar a imunidade diplomática a um agente diplomático que perante ele se encontre acreditado, podendo, a partir desse momento, submetê-lo à sua jurisdição criminal.

 

Não possuindo as referências a que recorre Saragoça da Matta, apenas posso reportar-me à Convenção de Viena, que no seu artigo 31.º nos diz que “O agente goza de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditador”, à obra Direito Internacional Público, de Dinh, Daillier e Pellet, que nos informa que “O agente diplomático goza da imunidade de jurisdição penal. Esta imunidade é absoluta, quer o agente esteja ou não no exercício das suas funções”[1],  e ao Manual Diplomático, de Calvet de Magalhães, onde se afirma que a imunidade de jurisdição é “uma regra absoluta que não refere quaisquer outras restrições a não ser nos casos dos agentes diplomáticos que tenham a nacionalidade do Estado receptor ou nela tenham a sua residência permanente (…). Com a reserva destes casos que são de facto muito raros, pode-se pois dizer que a regra da imunidade de jurisdição penal é absoluta em relação ao agente diplomático em condições normais e não sofre qualquer excepção. Um agente diplomático que incorre numa violação da lei penal do Estado receptor não só não pode ser detido ou interrogado pelas autoridades locais como não poderá ser julgado por um tribunal do Estado receptor. Com efeito, o Estado receptor poderá sempre, (…), declará-lo persona non grata obrigando-o a retirar-se do seu território e o Estado acreditante, por seu lado, independentemente de qualquer acção disciplinar poderá puni-lo de acordo com a sua lei penal conforme previsto no número 4 do artigo 31.º, que esclarece: «A imunidade de jurisdição de um agente diplomático no Estado receptor não o isenta da jurisdição do Estado acreditante.» Por outro lado o Estado acreditante poderá renunciar à sua imunidade (…).”[2]

 

Ficamos, assim, esclarecidos quanto à possibilidade de o Estado português retirar a imunidade diplomática aos filhos do Embaixador do Iraque e sujeitá-los à sua jurisdição penal.

 

Por outro lado, a reacção da Embaixada do Iraque é, no mínimo, de mau gosto e pouco informada. Deixando de lado a questão sobre os alegados insultos de índole racial, o que importa é a sugestão de que os filhos do Embaixador terão agido em legítima defesa. Se, como os jovens em causa já vieram declarar, não pretendem sair de Portugal até que esta situação esteja resolvida – podendo até especular-se sobre a possibilidade de o Estado iraquiano lhes retirar a imunidade e permitir, assim, que sejam julgados nos tribunais portugueses – seria conveniente ao Embaixador do Iraque rodear-se de juristas capazes de lhe explicar a figura da legítima defesa no enquadramento legal português, importando, desde logo, ler o artigo 337.º do Código Civil:

 

“1. Considera-se justificado o acto destinado a afastar qualquer agressão actual e contrária à lei contra a pessoa ou património do agente ou de terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios normais e o prejuízo causado pelo acto não seja manifestamente superior ao que pode resultar da agressão.

2. O acto considera-se igualmente justificado, ainda que haja excesso de legítima defesa, se o excesso for devido a perturbação ou medo não culposo do agente.”

 

Ora, segundo o relato dos vários envolvidos na situação, os jovens iraquianos terão tido um desacato com alguns jovens de Ponte de Sor, afastaram-se do local, retornaram mais tarde e terá sido então que terão encontrado Ruben sozinho, tendo-o espancado brutalmente. Não há, obviamente, qualquer legítima defesa, pelo que, sublinho novamente, o comunicado da Embaixada do Iraque é, no mínimo, de mau gosto e não é, de todo, particularmente útil para o apaziguar desta tensão.

 

Para finalizar, resta concluir que o que se pode fazer é prosseguir com a investigação judicial, solicitar ao Iraque, se necessário (em função dos resultados da investigação judicial), o levantamento da imunidade diplomática dos jovens iraquianos e, caso este pedido não seja aceite, ou esperar que o Iraque repatrie os jovens e os julgue de acordo com as leis iraquianas, ou declarar o Embaixador e os seus filhos personae non grata e obrigá-los a sair de Portugal, com o consequente possível esfriamento das relações entre Portugal e o Iraque. Qualquer outro resultado que não se enquadre nisto será dificilmente compreendido pelos portugueses.

 

1 - Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet, Direito Internacional Público, 2.ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 766.

2 - José Calvet de Magalhães, Manual Diplomático, Lisboa, Editorial Bizâncio, 2005, p. 90.

publicado às 23:59

Mala diplomaticamente carregada de … Clearasil

por Nuno Castelo-Branco, em 21.08.16

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Era de prever, ontem mesmo, no jantar de aniversário do meu sobrinho Nuno, disse que ..."se fosse o embaixador iraquiano, mandaria de imediato os dois filhos seguir de carro para Madrid".  

Os meninos puseram-se ao fresco, provavelmente por via terrestre e não só beneficiando da imunidade diplomática concedida a toda a representação do seu país, como também, inevitavelmente, usufruindo das delícias do articulado de Schengen que também é, para além de uma infinidade de curiosidades, muito eficaz nestes casos.

Segundo fontes da PJ, terão alegremente partido para Madrid, onde com toda a normalidade tomaram um avião para o Eufrates. O que levariam na mala diplomática para além da roupinha e gadgets electrónicos? Croquetes para debicarem durante a longa viagem? Não.

A considerar pela foto que correu, carradas de tubos de Clearasil. Já podem então tratar do problema do acne com toda a tranquilidade. 

publicado às 17:33

Gentinha

por Samuel de Paiva Pires, em 20.08.16

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Gente que me criticou por reivindicar uma bolsa de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia, afirmando que eu estava a querer viver à custa do erário público, mas que nunca se preocupou em saber o que acontece ao dinheiro público investido em Ciência e quais os resultados dos projectos de investigação colectivos ou individuais financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

 

Gente que me criticou por lançar uma campanha de crowdfunding para financiar as propinas do meu doutoramento, argumentando que há pessoas a passar fome ou a viver na rua que são mais merecedoras de apoio financeiro do que um doutoramento, e que certamente deve dedicar parte do seu tempo e dinheiro a ajudar estas pessoas pouco afortunadas ou a praticar a caridade em geral.

 

Gente que critica os atletas portugueses por não ganharem medalhas nos Jogos Olímpicos, afirmando que o país não é devidamente recompensado pelo investimento que faz nestes atletas, quando o desporto em Portugal é parcamente financiado pelo dinheiro dos contribuintes, sendo a participação dos atletas nos Jogos Olímpicos resultado, em primeiro lugar, do esforço e do investimento dos próprios atletas.

 

Gente que passa a vida a falar em empreendedorismo, a exaltar as virtudes do sector privado, a diabolizar o sector público e o Estado e a criticar os que recebem dinheiro do erário público, mas que anda sempre de mão dada com o Estado para que este contrate a sua empresa ou lhe arranje uns contratos noutros países ou de mão estendida para que o Estado financie a sua empresa com dinheiro dos contribuintes.

 

Gente que ainda não percebeu que nem tudo o que o sector privado faz é mau, nem tudo o que o Estado faz é bom e vice-versa.

 

Gente que defende o princípio de que o Estado deve cumprir os seus compromissos internacionais, mas que não se importa que este incumpra os compromissos que tem para com os seus cidadãos e empresas, excepto se disserem respeito ao financiamento estatal de algo que seja do seu agrado, como, por exemplo, colégios privados, pelo que aí o pacta sunt servanda volta a ser um princípio inviolável.

 

Gente que quando a direita está no governo brada aos céus que essa governação enferma do pecado de ser ideológica, como se a da esquerda não o fosse – ou qualquer governação.

 

Gente que julga ter contactos imediatos com “a realidade” e que o seu conhecimento sobre o que esta é valida as suas posições e invalida as dos outros.

 

Gente que ainda não percebeu que nem tudo o que é legal é lícito e continua a cometer actos que o mais elementar bom senso desaconselharia, justificando-se com o argumento de que a lei o permite, esquecendo-se ou ignorando que o Estado de Legalidade não é o mesmo que o Estado de Direito.

 

Gente que exalta a meritocracia, mas não hesita em accionar cunhas para si, para os amigos ou para os familiares e que ainda é capaz de acusar terceiros de amiguismo e nepotismo.

 

Gente que clama contra a corrupção, mas que é corrupta até mais não.

 

Gente que afirma seguir elevadíssimos valores morais, mas que sempre que lhe é conveniente não hesita em metê-los na gaveta, se é que alguma vez seguiu os valores que proclama.

 

Gente que não é capaz de seguir a conduta moral que exige dos outros.

 

Gente que não hesita em fazer aquilo que critica que outros façam.

 

Gente que defende ou critica determinada decisão consoante a pessoa que a toma seja ou não da mesma cor política, clube, religião ou qualquer outro tipo de afiliação.

 

Gente que acha que quanto mais alto gritar, mais razão terá.

 

Gente que acha que se repetir muitas vezes uma mentira, nas mentes de outros passará mesmo a ser uma verdade.

 

No fundo, gente que faz da hipocrisia, do cinismo, da indignação selectiva e dos double standards um modo de vida.

publicado às 01:08

Boom e o Syrian Boy Festival

por John Wolf, em 19.08.16

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Não é forçoso ler Leszek Kolakowski, e a sua obra-prima Modernity on Endless Trial (The University of Chicago Press, 1990), para descortinar as implicações suicidárias da nossa civilização e o falso mito de universalismo cultural. A praga de festivais que parece ter assolado Portugal faz parte da enganosa premissa de que é possível reclamar uma quota de misticismo existencial, derramar uma boa parte dos problemas de consciência e seguir alegre e contente. O Festival Boom, vendido como templo sagrado da neutralidade materialista, é tudo menos isso. Obedece a um plano comercial, segue um modelo de negócio e concede ganhos aos promotores. Tudo o resto são balelas de um mundo justamente repartido, flashes de um Woodstock fora do seu prazo de validade e promessas de nirvana fast-food. Gilles Lipovetzky e Jean Serroy denunciam no seu livro Capitalismo Estético na Era da Globalização (Editions Gallimard, 2013) a febre da hibridização, a conveniência comercial de uma hydra que combina alegados vestígios de grandeza cultural e democraticidade. Os três ou quatro dias de festival servem contudo um propósito peregrino. Nesses dias de embriaguez, o espírito humano, dizem eles, liberta-se das manchas de culpa, da pressão diária do desligamento das causas maiores e evita-se deste modo o entorpecimento insensível. A passagem por ritos de vazio concede aos participantes uma espécie de certidão, uma prova de vida de que é possível "encontrar o eu" no acampamento, na fila para o "novo" Reiki-electrónico, no repasto à base de pasta do Tibete - a cura filosófica. E persistem ainda outras considerações de ordem mercantil. Na Wall Street dos festivais os ratings parecem contar. Sabemos que o Festival Boom é melhor do que o Festival Bum, sabemos que o Andanças era quase ecológico até aquele fatídico dia rodoviário. Enfim, os organizadores querem e não querem. Querem ser pequenos e familiares, mas o piquenique saiu fora de mão - apareceram 30 mil almas. Mas eu iria mais longe para purgar os diabos que andam à solta. Para arrumar de vez com os dilemas conceptuais; eu proponho um Syrian Boy Festival enquanto durar a situação naquele país. Ou então, façam-se à festa e depois regressem às vidinhas da treta. De qualquer modo estamos condenados. O mundo está cheio de vendedores de grandiosas intenções. Mostrem-me os números. Qual a margem? Quero ver os lucros? E já agora, a tenda de massagens "chinatsu" passa facturas? No entanto, nada disto parece importar. Estes eventos servem sobretudo a fraca intelectualidade que parece ser a norma da nossa civilização. Convém entorpecer a geração que deveria ter algo a dizer em relação ao destino das nossas civilizações. Em vez disso curam a ressaca e regressam a casa. Não vejo luz ao fundo do túnel. É outra coisa.

publicado às 09:06

O realismo tem as costas largas

por Samuel de Paiva Pires, em 18.08.16

Com uma indesejável frequência, muitos dos que pastoreiam a nossa bela nação escudam-se no realismo para tentar justificar o que muitas vezes não tem justificação, em especial em matéria de política externa. Mas como, na verdade, desconhecem o que seja o realismo em política externa, ainda não aprenderam com britânicos e norte-americanos - os que mais teorizam e praticam o realismo em política externa - que lá porque seja conveniente termos relações e negócios com países com regimes políticos pouco recomendáveis, não quer dizer que tenhamos de ser capachos destes países ou, pior ainda, dedicar-lhes encómios. Aliás, nestes casos, aquilo a que o realismo obriga é a uma certa discrição - ou, mais prosaicamente, a saber que, o mais das vezes, o melhor é mesmo ouvir, ver e calar.

publicado às 00:44

O mito da caça à multa

por John Wolf, em 17.08.16

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Não existe tal coisa de caça à multa. Foram os próprios condutores portugueses que de mão beijada entregaram 907 milhões de euros à Administração Central em 2015. Este imposto, esta forma de austeridade, é totalmente voluntário. São os condutores que se fazem à estrada que não respeitam o código de estrada, que gastam mais benzina do que deviam, que bebem quando deviam jejuar, que aceleram onde não devem, que estacionam nos locais reservados a deficientes ou que pisam traços contínuos. Aqui não se trata de ideologia, de partidarite, de esquerda ou de direita. Trata-se de indisciplina colectiva, de falta de civismo, de correr riscos com a vida dos outros. É semelhante ao flagelo dos incêndios, com a diferença de servir a colecta - transgredir é uma fonte de receitas para o Estado. No entanto, as polícias de trânsito não fazem mais do que a sua obrigação. Até parece que as brigadas de trânsito têm meios e mais meios para defender a segurança dos portugueses nas estradas de Portugal. Não é verdade. Os agentes de trânsito são quase voluntários, são quase bombeiros. Por esta e outras razões, são os condutores encartados de Portugal (ou nem por isso) que devem decidir se querem continuar a pagar este imposto. O semáforo fechado é sempre culpa do outro. O lugar do deficiente à mão de estacionar é culpa do paralisado. Não há paciência. Não há pachorra. Arranca. Está verde-tinto.

publicado às 18:24

De certo tipo de pragmáticos

por Samuel de Paiva Pires, em 11.08.16

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Bruno Vieira Amaral, As Primeiras Coisas:

A verdade dos factos, conceito que nem os juristas usam sem que um sorriso lhes traia o pensamento oculto, é a camada mais desinteressante da existência, a coutada vitalícia das pessoas sem imaginação. Os pragmáticos que vivem obcecados em apurar a verdade dos factos, em determinar circunstâncias, em patrulhar a realidade – virtudes louváveis em investigadores policiais – são incapazes de conceber alternativas ao que lhes entra pelos olhos e de, em consequência, viver nos interstícios felizes do improvável.

publicado às 22:55

A propósito do auto-da-fé de Portugal continental e da Madeira....

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Ambiente Mental

 

Para lidar com a primeira entrada do abecedário, teremos de reconhecer os diferentes significados e aspectos do conceito de ‘ambiente’. Por exemplo, efectuar uma distinção entre ambiente natural, natureza ou ecossistema, e ambiente humano. As dimensões a que nos referimos são indissociáveis, pelo que em Portugal tem sido difícil estabelecer a relação de parentesco entre o indivíduo e o ambiente. A natureza em Portugal é um filho bastardo e mal amado.

A natureza não é assumida enquanto propriedade colectiva ou património nacional, de forma activa e inquestionável. Talvez o nascimento de cada indivíduo e a consequente atribuição de nacionalidade deveria implicar a propriedade de um qualquer enésimo do território do país. Esta forma de cidadania proprietária teria um efeito psico-simbólico intenso, gerando uma espécie de auto-estima territorial.

Não reconhecer o valor do espaço de inserção geográfico, significa praticar uma forma de ‘geo-fobismo’, expulsando a terra, tornando cada indivíduo um membro voluntário de um movimento sem-terra. Talvez devido ao seu passado histórico colonial, Portugal tenha subvertido a importância do conceito de espaço vital imediato, com a excessiva disponibilidade além-mar a incutir uma nefasta atitude perdulária. Nem mesmo a Conferência de Berlim de 1884, que instituiu o princípio de ocupação efectiva dos domínios coloniais, e que retirou territórios e capacidade de projecção de poder a Portugal, terá servido para um ‘regresso’ a limites geográficos proporcionais à dimensão nacional. Poderemos legitimamente perguntar: como e quando se inicia um processo de desrespeito pela dimensão física e natural de Portugal? Não encontraremos na literatura ou na pintura a exaltação da geo-pátria? Terá sido o antigo regime um solitário proclamador do alto da montanha? Não será possível aproveitar alguns elementos edificantes em detrimento de outros com forte carga política? E será que o 25 de Abril libertou o homem para este voltar a ser um bom selvagem?

Assistimos ao tabu do domínio da terra sobre o homem, porque, de forma deturpada, o cuspir sobre o passeio ou a queimada incendiária serão expressões da interpretação desequilibrada do sentido de poder ou liberdade, fortemente entranhado na prática quotidiana. A análise do fenómeno anti-natureza em Portugal tem de seguir um critério mais estrutural e sociológico. A modernidade, promovida pelos governos pós 25 de Abril, apoia-se em imagens de betão armado, carros velozes e roupa de marca. Ironicamente, a imagem exterior dos indivíduos alcançou uma expressão notável em detrimento da preservação do ambiente. Mesmo perseguindo um idealizado parcelamento da propriedade latifundiária, tal não serviu a salvaguarda de um sentido ecológico. Esta indiferença em relação ao ambiente reflecte um desapego pelo abstracto, na medida em que os vínculos afectivos não se estabelecem em relação a um ideal de espírito livre ou natureza selvagem. Assim, a floresta é apropriada enquanto fenómeno de massas, colectivo e irracional, mas não por uma vontade individual.

Um olhar possível sobre um processo de evolução (que obedece alternadamente a mecanismos de auge e declínio, êxito ou tragédia) pode limitar-se à aceitação do destino, sem intervenção humana praticável. Ou seja, o cidadão é um mero espectador do fenómeno natural ou, no limite, um interventor negativo. Outra leitura admissível diz respeito ao modo como a rejeição da procedência provinciana pode significar o cortar de relações afectivas com o atraso estrutural do interior não-urbano. Uma vez que os centros urbanos são habitados pelos que abandonaram as suas origens humildes e campestres à procura de melhores condições de vida, verifica-se uma tomada de consciência deturpada de modernidade, através da qual se procura dissimular a proveniência, simulando sofisticação. Os eventos que afligem a floresta não comovem porque já representam factos distantes da neo-urbanidade adquirida pelos migrados do campo.

A única forma de corrigir comportamentos eco-destrutivos parece ser através da instituição de um sistema sancionatório implacável, em simultâneo com mecanismos que reconheçam os esforços de reposição do equilíbrio ambiental. Os filhos menores devem reconhecer aos pais o esforço que estes desenvolvem para separar o lixo e respeitar os eco-pontos. A adopção de uma ‘agenda ambiental’ significa co-responsabilizar governos indivíduos, crianças e proprietários de cães que lançam os seus dejectos nos passeios.

A promoção de objectivos concretos poderá representar uma janela de oportunidades para converter adversidades em mais-valias. Por exemplo, à semelhança da recente legislação que obriga as novas construções a instalar sistemas de energia solar, a instalação de redes de cisternas ou depósitos para aproveitamento de águas das chuvas poderia representar uma primeira solução para o problema de escassez de água, que terá de ser confrontado seriamente e a breve trecho. Esta solução, não original, foi concebida e instituída pelos árabes durante a sua permanência na Ibéria. Um ‘plano tecnológico’ não significa necessariamente novidades sofisticadas, e por vezes o próprio traçado histórico oferece algumas soluções. A tecnologia comporta na sua génese uma ideia de optimização e simplificação. Uma sociedade desenvolvida garante a sua continuidade pela manutenção dos seus elementos naturais, através de um status quo que em certa medida contradiz a ideia de alteração dinâmica, mudança e progresso. Nesta acepção, o desenvolvimento corresponde à capacidade de manutenção dos factores de equilíbrio herdados do passado.

Associamos a esta noção uma outra, de historicidade natural, através da qual poderemos aceitar a evolução política que altera profundamente a configuração mental e cultural da população, mas que não afecta dramaticamente a expressão física ou geográfica do território.

A ideia de reserva natural em Portugal assemelha-se a uma wasteland, sem utilidade perceptível para as populações. A noção de qualidade de vida dos indivíduos não integra o factor natureza enquanto um elemento determinante. O ‘cidadão-tipo’ prefere eleger a propriedade de um bom carro ou casa, os fins-de-semana no Algarve do betão, ou um horário laboral flexível como elementos definidores de qualidade de vida. Parece ter-se tornado um síndrome nacional o vínculo a matérias ou factos que representem novidade, daí que a natureza ‘eternamente silenciosa’ não consiga oferecer nenhum estímulo adicional relevante.

Este quadro ainda se torna mais negro pela ausência de debate sobre a protecção ambiental, sendo que me refiro àquele desenvolvido espontaneamente pelos indivíduos, e não pelas associações de defesas do ambiente ou autoridades nacionais. Enquanto a ‘consciência de ambiente’ não se democratizar e popularizar, no espírito de cada um, não se vislumbra uma evolução favorável para a paisagem natural. Do mesmo modo que cada contribuinte tem a noção do imposto ou taxa que paga pela propriedade de uma viatura ou casa, seria conveniente integrar nessa consciência fiscal a quota devida ao ambiente.

A operacionalidade de uma ‘polícia do ambiente’, eficiente e percepcionada como tal pelas populações, constitui uma obrigação moral dos governos. Uma forma de contrariar a primitiva prática de abandono de frigoríficos ou baterias no matagal, seria instituir um sistema de registo de propriedade dos equipamentos, que delimitaria os tempos de vida útil, comprometendo os proprietários com o depósito no termo da sua utilidade. Uma espécie de banco ambiental contra a poluição.

O mais importante será socializar e politizar a questão ambiental, e que a problemática faça parte do domínio doméstico das preocupações existenciais de cada indivíduo. A lei do frigorífico, enquanto exercício exemplar, poderá servir de nota de lembrança para as transgressões ambientais, e fazendo uso de um efeito de spill-over, estaremos a contribuir para a tomada de consciência da importância do ambiente.

Outra forma de induzir o respeito pelo ambiente, poderia materializar-se na criação de um cadastro ambiental que registasse as transgressões em relação ao ambiente, perpetradas por cidadãos ou empresas. Depois, num segundo momento, a informação resultante do cadastro seria cruzada com o sistema fiscal no sentido de penalizar os prevaricadores em sede de IRS ou IRC.

Uma das grandes dificuldades que Portugal encara, prende-se com um sentido de orgulho nacional fortemente dependente da expressão física da riqueza. A intelectualidade em Portugal é rejeitada porque integra uma dimensão não materialista e porque colide com aquilo que poderemos designar por ‘expressionismo’ físico. A afirmação social pode no entanto levar a que se faça a dupla demonstração do nível cultural e o grau de riqueza, através da compra de tomos de enciclopédias com lombadas douradas que têm lugar cativo nas estantes das salas de estar, e que fazem o regalo de observadores pouco exigentes.

Uma interpretação parcial do próprio significado ou alcance da era de informação pode conduzir-nos a um juízo reducionista definido em termos de atributos logísticos ou de transporte de informação, através do qual se atribui maior importância à rapidez da entrega de mensagens ou conteúdos. Os excessos de velocidade que se registam nas estradas portuguesas e que conduzem a acidentes desnecessários, encontram analogia na forma como se transportam conteúdos na era de informação. Uma noção ecológica e cultural poderia estabelecer uma hierarquia na escala de valores de informação, o que significa que os produtores de informação devem procurar obedecer a critérios de qualidade, objectividade, veracidade e não necessariamente a rapidez. Nessa medida, um país ecológico investe no terreno fértil do conhecimento e cultura, e na educação dos seus cidadãos, que representa sempre um processo lento e geracional. A era da informação poderá tornar-se numa era de conhecimento se um plano tecnológico não for vendido como destino final, mas um elo de um processo muito maior. O esforço de prossecução de equilíbrio ambiental associa-se inequivocamente à ideia de paridade entre as dimensões intelectual e cultural, relegando para segundo plano a tecnologia e a ideia de vanguarda.

A excessiva estratificação social do país é também responsável por vários desequilíbrios estruturais e ambientais, incluindo o desnível cultural e intelectual, pela forma como as elites se apropriam dos meios de desenvolvimento à custa do progresso colectivo. Este fenómeno observável noutras sociedades, assume contornos especiais em Portugal porque o ‘povo’ não demonstra capacidade para produzir factores de contrapeso. A não partilha de conhecimentos na sociedade portuguesa constitui uma prática contra-produtiva e geneticamente comprometedora pela forma como contraria a teoria de evolução das sociedades, construída sobre a premissa da comunicação entre os diferentes segmentos ou classes da sociedade. Uma noção, porventura herdada do corporativismo, instigou uma actuação compartimentada, sem trocas ou comunicação efectiva. A experiência de um sector ou domínio dificilmente transborda para um ecossistema distinto, apenas porque subsiste uma atitude conservadora pouco aberta a códigos diferentes. Questionamos se Portugal aproveitou a experiência histórica da multiculturalidade, das línguas e costumes distintos do império colonial. E nesse contexto observamos uma forma de desequilíbrio ambiental histórico. Neste momento o quadro mental de defesa do círculo restrito de conhecimento implica desconfiar continuamente de qualquer tentativa de incursão da parte de elementos excêntricos ou imigrados. Esse quadro social de defesa de interesses específicos compromete um sentido de desenvolvimento alargado e colectivo, capaz de integrar a diferença e a mudança, o que em última análise implica o progresso da sociedade.

Na natureza, as novas espécies resultam da evolução genética forçada pelas condições adversas do meio envolvente. As sociedades, que são macróbios (grandes formas de vida), evoluem através de processos de ruptura e equilíbrio entre os diferentes agentes que as integram. Nessa medida, enquanto a prática da dialéctica entre indivíduos não ocorrer em todos os fóruns e numa sociedade aberta, a ideia, conceito ou as práticas, nunca atingirão um grau de maturação suficiente para se converterem em matéria de desenvolvimento para uma sociedade.

As ideias, ao contrário dos ideais, que nascem na intangibilidade do espírito humano, são também fruto da experiência dos outros, transcritas em obras metodologicamente organizadas e que podem ser alvo de leitura e interpretação. Apenas uma fundamentação sólida do conhecimento poderá permitir ulteriores desenvolvimentos de um ideal de progresso. Se uma sociedade não promove a inteligência e a cultura de forma sustentada estará a contribuir para o desequilíbrio ambiental, pelo défice e peso da representação de uma população inculta ou analfabeta. Ter a expectativa de que a ferramenta tecnológica poderá preceder e estimular o aumento do nível cultural da população é contrária à lógica de desenvolvimento humano, em Portugal ou qualquer outro destino.

 

(Excerto do livro Portugal Traduzido. Todos os direitos reservados)

publicado às 18:03

A geringonça e o fogo conveniente

por John Wolf, em 10.08.16

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Não sei onde anda António Costa. Não sei em que festival de danças se encontra a Catarina Martins. Não sei se Jerónimo Martins é voluntário na festa do Avante. Não sei se o homem do PAN já regressou do nirvana no Tibete. Apenas sei que o governo de Portugal não existe. Ontem tivemos o enorme privilégio de escutar os chavões que os intelectuais do fogo andaram a debitar nas televisões deste lindo Agosto. Ainda escutei um repórter da TVI, em directo da Madeira, apelar a que salvassem os cães e gatos do canil mais próximo, e depois lá se lembrou de mencionar o lar de terceira idade. Antes que apareçam os ideólogos da floresta mista e das liberdades da mata brava, a procurar integrar os incendiários recorrentes, tenho a dizer o seguinte - sobre as mãos destes e de todos os outros governantes se encontram as cinzas da morte e destruição. Eles são todos culpados - os Guterres, os Cavacos, os Soares, os Durões, os Costas, os Jerónimos e já agora as Catarinas. Andaram décadas a fio a tentar civilizar a animalidade, mas desautorizaram-se por completo. Os incendiários andam a monte a rir na cara dos portugueses e dos seus governantes. A pena máxima, reservada para crimes de sangue, deve ser aplicada sem contemplações a estes loucos exterminadores. Onde quer que se encontre a Geringonça, esta deve reunir de imediato e convocar um estado de emergência tendo em conta o mapa de incêndios. Mas existe um lado cínico, intensamente político e oportunista. Deixar arder por completo pode ser o meio de entrar dinheiro gratuíto das Comissões Europeias e um modo de sacudir a água do capote de deslizes deficitários e orçamentais. Daqui a umas semanas estará pronto o guião de António Costa. A culpa foi dos fogos. Vivam os incendiários. Passa para cá a massa.

publicado às 11:22

Teoria Geral do Fogo

por John Wolf, em 09.08.16

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Todos os anos é a mesma coisa - fogo. Desde que me lembro, e já tenho memória lusa há mais de duas décadas - os incêndios fazem parte da paisagem suicidária de Portugal. E a cada ano que passa, grandes teorias de explicação e fundamentação são avançadas quer pelo governo, quer por especialistas académicos ou quer pela população. Ora são as matas por desbravar, ora foi o desordenamento do território, ora é a falta de meios-aéreos, ora são os bombeiros que não dispõem de mangueiras, ora são os agricultores que não trataram dos seus campos, ora foram os governos anteriores...Enfim, um conjunto de desculpas que não se podem tolerar. O problema tem sido atacado de um modo incorrecto. O problema dos incêndios tem sido diagnosticado de uma maneira errada. É a matriz cultural do país a responsável pelo flagelo dos fogos. São os cidadãos que não nutrem um carinho especial pela sua base geográfica. São os papás e as mamãs que deitam o cigarro pela janela do carro. São as avozinhas e as enteadas que abandonam o churrasco proibído na clareira da reserva natural. São os especuladores imobiliários que precisam de desbastar uns entraves políticos. São os organizadores de festivais que não pensaram o estacionamento em condições. E o problema é transversal a tantas dimensões da realidade nacional - a ideia de que uma entidade abstracta é a responsável. O alibi perfeito de que não existe explicação para os falsos mistérios. Um bode expiatório que está sempre a monte. Mas essencialmente, falta aos portugueses amor à camisola. Falta aos portugueses de Esquerda ou de Direita um instinto de protecção da sua base geográfica, do seu território. Os portugueses parece que não amam o seu país. Falta aos portugueses a coragem para mudar comportamentos. Conheço pessoalmente académicos versados na arte do fogo. Um deles confidenciou-me há dias que tem vontade de abandonar Portugal. E deixá-lo a arder.

publicado às 11:23

Fruta silly season

por John Wolf, em 08.08.16

 

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Quase todas as pessoas que eu conheço apreciam uma bela salada de fruta – fresquinha é ainda melhor, um mimo - uma tentação. E há uma razão fundamental para que assim seja. No meio da selva, da orgia de frutos silvestres, dos gomos sumarentos e do “tudo ao molho e fé em dióspiros”, existe sempre a possibilidade de cada um praticar a sua modalidade preferida, de escolher o seu parceiro adocicado – já se sabe, gostos não se descuram. Há quem queira a banana ou deseje o ananás e exclua, sem mais nem menos, a laranjinha das considerações gustativas. A saladinha de fruta obedece a esse princípio de que o cliente nunca sai de mãos a abanar – a satisfação será garantida seja qual for a língua. De maneiras que é assim; quando não se aprecia o kiwi basta pescá-lo e recambiá-lo para a Nova Zelândia, retirá-lo à linha da taça transparente – o vidrão onde geralmente a fruta é exibida de um modo despudorado. A colher, que parece insonsa, afinal é uma ferramenta fetichista que trata do assunto sem remorsos. Mas apesar destes golpes, não existe sobremesa mais democrática do que uma bela rapsódia de fruta – o homem e a mulher quando confrontados com essa fartura mesclada de sensações, apenas chupam o que querem e não são obrigados a engolir em seco. A fruta-pão até pode vir descascada, mas só por não ter caroço não significa que não possa ser devolvida. E nessa gala de tentações e guloseimas apanhadas à mão da árvore mais próxima, há fruta que fica por cima e outra que é esmagada pela virilidade concorrente de um belo cacho. Dizem que as nêsperas são melhores que os abrunhos e isso é mau – é discriminação natural com vitaminas de todas as cores metidas ao barulho de uma alimentação saudável. Mas deixemo-nos de eufemismos e chamemos as coisas pelos nomes: há fruta sexy e outra nem por isso - ponto final. Há néctares de glamour feitos na hora e reles sumos de segunda. Sempre foi assim e duvido que haja um espremedor que produza uma outra casta de ideias. O bicho do fruto pode andar por aí a fazer das suas, mas ainda não conseguiu destronar o governo afrodisíaco da cultura frutícola. No entanto, e apesar das nossas genuínas intenções, estamos a ser limitados na nossa apreciação gastronómica. E os legumes? Que é feito deles? Será que existe um ranking de verduras eróticas? Estava a pensar em todas essa ricas peças que abarbatamos no mercado mais próximo, mas que não merecem o olhar atento da nossa libido. A batata e a courgette vão diretamente para a panela sem uma palavra amiga. Colocamos a tampa, pomos o fogão a debitar calor e não se fala mais no assunto. A beringela – coitadita -, lá por ter curvas acentuadas e vestir tamanhos grandes, não deve ser dispensada do ménage. A dama farta veste látex como o diabo veste Prada. O seu toque escorregadio não é lycra não senhoré textura natural e pode fazer as delícias de gente de espírito aberto. Mas existem ainda outros desprezados no jogo de sedução hortícola que decerto guardam algum rancor na despensa. A couve-flor tem inveja do pepino. Esta flor que não se cheira há muito que vem sendo vilipendiada pelo pickle. Este garanhão da horta da fonte está sempre a receber convites para festas temáticas. O pepino avinagrado mal sai do boião de rosas, raramente regressa ao imaculado caldo. O raio do vegetal parece mais um animal e não tem descanso por isso. A couve é outra desgraçada que não sai da casa. Fica acordada em sobressalto, pesarosa e pensar na sua vida. Quando de repente escuta o trinco da porta a altas horas da noite e diz: “ah, és tu cenoura. Pensava que era o pepino. Saiu às 10 da noite com aquele tomate ordinário e ainda não voltou.” Estão a ver o que eu quero dizer? Há aqui muita verdura magoada como se fossem batatas esmurradas. O sexo que dizem ser dos anjos também é dos legumes, não tenham dúvidas disso. Não é justo que as frutinhas estejam sempre no centro de mesa das atenções. Por que razão a abóbora não pode ter glamour? E a cebola não pode ser gastro-orgásmica? Só de pensar nisto vêm-me lágrimas aos molhos. Vivemos num mundo cruel e destemperado - pretensioso. Alho francês? Estão a ouvir? Francês? Que mania é esta que lá por ser estrangeiro é melhor – italians vegetables do it better? Não me parece. Somos realmente nabos, nabiças – noviços de uma religião frutada. Venha de lá esse caldo verde.

publicado às 13:24

Galp Rocks

por John Wolf, em 04.08.16

A Galp deve pertencer à oposição. Montaram o esquema com muita inteligência. Caíram que nem patos bravos. A armadilha do jogo da bola funcionou na perfeição. Agora é aproveitar a cultura de desculpas esfarrapadas herdada de Sócrates - o mestre dos alibis. E Mário Centeno é igual a si - diz ao Observador que "não é relevante nesta circunstância" responder à pergunta se teve conhecimento da viagem paga ao secretário de Estado. A pergunta que deve ser colocada é a seguinte: será que o desfecho do Euro 2016 teria sido diferente se a claque dos Assuntos Fiscais não estivesse presente na final de Paris? O secretário de Estado não é nada criativo. Se eu fosse o homem teria declarado que se fez ao relvado para controlar se os prémios de jogo estavam a cumprir todos os preceitos fiscais. Deveria ter-se armado em fiscal de linha. A Galp também patrocinou o churrasco de viaturas?

publicado às 13:10

Descaramento e arrogância

por Nuno Castelo-Branco, em 02.08.16

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 1. Descaramento


Todos sabemos por experiência colectiva - como eles gostam de dizer - que quem manda, por regra mente. Mente descaradamente e a propósito de tudo e pior ainda, de todos. Falta à verdade de tudo o que lhe convém enviar à estratosfera numa espécie de nuvem chuvosa no Saara. Temos então a questão pendente da Real Quinta de Caxias, em péssima e sinistra hora doada pelo infeliz Rei D. Manuel II ao Estado, no mesmo lote em que para sempre se foi Queluz. Cento e oito anos passados, o desastre está à vista desarmada, as portas escancaradas e o interior devastado por ladrões e pelos seus colaboradores. Ao contrário do que ontem foi dito no telejornal, o espaço está completamente acessível há muitos meses e o estado do interior prova isto mesmo. Só lá não foi quem não quis. 

E quem são aqueles colaboradores? Precisamente  quem até há uns tempos usou e abusou de um espaço que lhe foi entregue bem cuidado, mobilado, decente e apresentável tal como demonstram as escassas fotos datadas de 1905. Tudo se perdeu para sempre. Painéis de azulejos setecentistas, madeiras de soalho, pinturas e forros, vidros, portas e portadas, tudo foi destruído, dir-se-ia uma imagem de um palácio na Europa Central de 1945. Alarme dado nas redes sociais, podem agora fazer as reportagens que bem entenderem, pois o espaço chegou ao ponto de ruptura sem remédio possível. Podem apresentar-se diante de jornalistas todos os recém-chegados especialistas que encontrarem e podem apresentar-nos militares uniformizados de porteiros de hotel de terceira categoria que ainda têm o topete de debitar diante dos microfones, a anunciada e rigorosa "lista de encargos exigida aos futuros proprietários". Sabemos que desavergonhadamente mentem "com todos os dentes que têm na boca", tomem bem conta disto. Querem ganhar dinheiro a todo o custo, quando simplesmente têm o dever moral de entregar  gratuitamente a Real Quinta a quem dela de imediato cuidaria: a Fundação da Casa de Bragança. 

Sim, falta de pudor e um total descaramento. 

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 2. Arrogância


Quem diria que passadas apenas algumas semanas, a conversa enchachada do sr. Juncker mudaria radicalmente, oferecendo agora a vital pasta da Segurança a um comissário britânico?

O que disse ele durante uns dias, valha-lhe Deus! O ódio chispava, as palavras saíam-lhe incontroladas pela boca fora, ofendia em pleno "parlamento" europeu, o mau perder era clamorosamente perceptível e agora, subitamente, tendo sido ele uma autêntica fraude na gerência luxemburguesa, é moralmente moche e   finalmente amochou.

A arrogância era afinal uma desesperada fita e atendendo bem à realidade dos factos que não têm discussão, não há na Europa país mais competente para dirigir situações relativas à Defesa e Segurança do que o Reino Unido. Não há, estamos ainda muito longe de termos um outro entre os vinte e sete que sequer remotamente se lhe compare. Habituem-se a isto em Bruxelas. 

publicado às 22:19

Factor UV do IMI

por John Wolf, em 01.08.16

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O governo de Portugal está tão desorientado que já se guia pela boa ou má exposição solar. Faz sentido que apresentem esta novidade em plena época balnear. A maior parte dos portugueses está a banhos com o cu virado para a lua. Resta saber qual o factor UV do IMI. Deve haver aqui uma coordenação com o ministério da saúde. Ou seja, um T3 com varanda e sol a irradiar pela sala, é mais propenso a cancros da pele do que uma vivenda insalubre - isso deve ser levado em conta. E as caves húmidas não contam para atenuar a carga do novo IMI? E se a salinha de estar aquecer no Inverno, porque está exposta a Marte, não merece um desagravo? A conta do aquecimento de certeza que será mais baixa. E as roulottes de campismo viradas a sul? E olhar para o sol com um par de binóculos? António Costa e seus muchachos devem ter apanhado uma insolação das boas. Está tudo louco. Estão doidos. A neo-austeridade ainda nos vai surpreender muito mais.

publicado às 20:19

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