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Nem televisão, nem play-station...

por Nuno Castelo-Branco, em 08.10.08

 

No Moçambique dos anos 70, a parte final da nossa infância decorreu normalmente  com o cumprimentos das obrigações escolares, que, decorridas mais de três décadas, podemos julgar como bastante exigentes e disciplinadas. Beneficiando da amplidão dos espaços, magnífico clima e natureza generosa, a miudagem muito tinha por onde escolher onde e como gastar o seu tempo livre. Naquela altura, os dias pareciam mais longos e as férias eternizavam-se e claro está, a consciência do passar do tempo era obnubilada pela praia, conversas com amigos nos jardins ou jogos.

Não existia televisão, pois a definitiva instalação da RTP-Moçambique estava, creio eu, prevista apenas para 1976, novidade esta que aguardávamos com natural ansiedade. Mas não existindo fisicamente  o móbil do interesse, não se dava pela sua falta. As tardes de domingo eram  passadas no cinema, as matinés, como dizíamos. As salas estavam cheias de miúdos e víamos os filmes próprios da nossa idade - e alguns hoje politicamente muito incorrectos -, com coboiadas-chacinas, inverosímeis aventuras rodadas por Hollywood e evidentemente, os espectaculares clássicos que nos remetiam para uma imaginária Antiguidade recriada ao som de trombetas nada romanas, refulgentes galeras, bigas e canastrões faraós vingativos e belicosos. Adorávamos ir ao Centro Paroquial da igreja de Sto. António da Polana que possuía uma magnífica sala de espectáculos, sempre a abarrotar de infantis cinéfilos.

 

O pai de um amigo nosso era um fanático pelo modelismo e de tanto o visitarmos, apanhámos a doença. O homem possuía uma impressionante colecção de veículos militares por si montados em plástico, perfeitamente construídos, pintados fielmente com a camuflagem regulamentar e alguns, até já denotando muito serviço, uma vez que a habilidade do homem era tal, que se alguns tanques estavam cobertos de evidentes sinais de lama, outros pertenciam a cenários desérticos, onde a neve russa ou o simples pó típico  da Líbia, eram o sinal identificador da frente de combate a que imaginariamente pertenciam.

Eu e o Miguel caímos na armadilha e dela não conseguimos sair durante muitos, muitos anos. Na Baixa de Lourenço Marques, mesmo ao pé do famoso café Continental e numa das ruas laterais do John Orr's, existia uma loja especializada naquilo a que chamávamos de "montagens". Na Modelândia havia de tudo, desde os Legos aos Meccanos, comboios de boas marcas como a Marklin - que lindos eram - e claro está, castelos em plástico para os aficionados da época medieval. Tivemos - e ainda existe - um grande castelo com altaneiras torres, ponte levadiça, poço, onde cavaleiros de armadura, peões e armas de cerco compunham um quadro medieval que nos remetiam para uma Europa distante na geografia, mas sempre presente através do programa escolar que inculcava em todos um certo portuguesismo hoje praticamente extinto. É evidente que os homens de armadura com a veste branca e a cruz vermelha dos cruzados, eram para nós, os cavaleiros portugueses da Ordem de Cristo e os outros, invariavelmente, castelhanos, claro está...

 

Com o passar do tempo, eu e o Miguel também passámos por diversas fases do interesse por estas coisas e logo, a época napoleónica atraiu a nossa atenção. Comprámos caixas de soldadinhos feitos de plástico e que eram e ainda são produzidos por uma empresa inglesa denominada Airfix. Tropas de cavalaria, infantaria e de artilharia francesa, inglesa e prussiana encontravam-se à disposição, podendo nós recriar pequenas Austerlitz, Borodino, Waterloo ou Buçaco, onde os amigos ingleses acompanhados de tropas prussianas que faziam a vez dos portugueses - a Airfix não se lembrou de nós... -, derrotavam os invasores. Ficámos encantados com a monumental série de três filmes da Guerra e Paz rodados na então União Soviética, obra de grande realização técnica e logística, onde foram recriadas algumas das batalhas da invasão bonapartista. Recordo-me perfeitamente - e o youtube confirma-o, pois existem bastantes trechos do conjunto - da impressionante mobilização de recursos que o cinema russo conseguiu, não hesitando recorrer ao concurso de grandes hostes de soldados do Exército Vermelho fardados a rigor. Os três filmes eram longos, perfeitos na recriação da época e sobretudo, didácticos. E isto, numa época em que Portugal e a URSS eram indirectamente inimigos em várias frentes de guerra em África!.

 

A fase final e mais longa do nosso interesse por estas coisas, consistiu então, no encantamento pela construção dos modelos de blindados em plástico. Naquela altura, não tínhamos muito por onde escolher, uma vez que a hegemonia da Airfix na escala de 1:76 era esmagadora, senão total. Assim, fomos forçados a criar unidades nas quais se repetiam os veículos de uma certa categoria, coisa que afinal acabava por corresponder à realidade. Ao longo dos tempos fomos colando milhares de peças, pintando as camuflagens específicas e por vezes, aborrecidos com a monotonia, lá deixávamos os modelos mergulhados em lixívia - a que na altura chamávamos água de Javel - durante 24 horas, para depois de desaparecida a primitiva pintura, voltarmos a prepará-los para outro cenário de batalha. Isto durava dias, semanas e meses.  Fomos aos poucos conhecendo outros malucos que como nós criavam os seus exércitos caseiros e assim, surgiu a oportunidade de alargarmos as nossas campanhas, tornando-as mais competitivas e atenuando as rivalidades fraternais. Criámos uma espécie de clube de modelistas e organizámos um bastante intricado manual de instruções - que ainda existe! -, onde as características de cada blindado eram criteriosamente anotadas e que no plano do jogo, faziam valer a sua força ou fraqueza, consoante os casos. Conhecíamos de cor os nomes dos veículos - os Matilda, Valentine, KV I, KV II, T-34, JV Stalin III, Tiger, Panther, Stugs, Hummel, Brumbbar, Hetzer, Wespe, Churchill, Meteor, Sherman, Lee, Grant, Jagdpanther, Jagdtiger, Chi-Ha, M13-40,  Chaffee, Buffalo Matador, etca espessura das blindagens, o alcance dos canhões, capacidade de perfuração, velocidade dos tanques, jeeps, camiões, meias-lagarta, canhões auto-propulsionados, etc. Existiam mapas que inicialmente eram puramente imaginários, com rios, montanhas, florestas, cidades,campos de aviação, fábricas,  estradas, minas e portos. Num dado momento, todos decidiram que a melhor opção seria  a de recorrer à realidade aproximada e assim, lá nos debruçámos sobre os verdadeiros mapas deste nosso mundo e fomos obrigados a conhecer detalhadamente a geografia e os recursos dos países que nos interessavam. Acreditem que toda esta pesquisa nos ajudou, pois sem disso termos consciência, estávamos a estudar. O nosso manual de regras inventou alíneas diplomáticas e como seria evidente, algumas amizades plasmaram-se no jogo através de alianças nos inventados conflitos. Estas alianças também obedeciam a certas necessidades, pois se alguns preferiam construir modelos de veículos terrestres, outros eram obcecados por aviões ou navios, o que lhes dava poucas possibilidades nos confrontos. Havia então, de coordenar esforços e encontrar aliados que suprissem deficiências. Passámos centenas, talvez milhares de horas nisto e para grande arrelia dos nossos pais, nas férias já nem íamos à praia, piscina e não brincávamos na rua ou no quintal. Logo pelas oito da manhã - em África os afazeres quotidianos iniciavam-se muito cedo - começavam a chegar os parceiros e lá íamos todos continuar a batalha, a partir do momento em que na véspera tinha sido suspensa. Isto, durante dias a fio. *

Em 1974 tudo mudou, quando os nossos pais acertadamente decidiram vir para Portugal e tivemos que deixar alguns dos nossos modelos, principalmente os aviões e os navios que tanto espaço ocupavam nas caixas. Os veículos terrestres - que na altura rondariam umas cinquenta peças - vieram todos e os tempos que passámos no Parque de Campismo de Monsanto foram também preenchidos, agora a dois, com as mesmas brincadeiras que tínhamos há pouco interrompido. Em Lisboa descobrimos outras marcas às quais jamais tivéramos acesso em Lourenço marques e assim, para a colecção entraram modelos da Matchbox, Hasegawa, Fujimi ou da Esci. Em vez de uma Modelândia, aqui existiam muitos mais locais de compra e os preços eram razoáveis, embora possuíssemos pouco dinheiro para gastar. Conseguimos encontrar exemplares que jamais construíramos  e que apenas conhecíamos por fotografias ou documentários no cinema ou na RTP. 

 

É claro que os anos foram passando e o interesse esmorecendo. A colecção chegou a mais de duzentos modelos, dos quais apenas alguns podem ser vistos na foto que abre o post. 

Ontem, ao arrumar um armário onde guardo tintas e vernizes, decidi dar-lhe uma vista de olhos e partilhar este segredinho convosco. Estão praticamente intactos e conservados em caixas empilhadas numa prateleira. São algumas memórias materiais da nossa infância - minha e do Miguel - que guardarei e para vos dizer a verdade, ainda há uns dias, nas Amoreiras, parei diante de uma loja da especialidade para ver as novidades. E o que há de novidades! Hoje vendem-se modelos provenientes da Rússia, China, Polónia, e de outros países de que jamais suspeitaríamos como fabricantes de modelos.  Se ainda existem miúdos interessados por estas coisas, devem ser felicíssimos. Até Portugal produz algo, mas respeitando a sua perdida tradição marítima, exporta para o mundo os modelos de navios de quatrocentos e de quinhentos, aqueles mesmo que de nós fizeram a gente que fomos.

 

*Desconfio muito de uma coisa. Nos anos 70, se o Samuel fosse da nossa idade, aposto que também faria parte deste grupo de malucos das estratégias... É ou não é, Sam?

publicado às 08:36


2 comentários

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De LUIS BARATA a 08.10.2008 às 13:03

Meu caro Nuno, fizeste-me regressar ao passado!
A Airfix e outras marcas fizeram as delícias da minha infância e adolescência. Quantas batalhas !
E ás vezes quando passo por uma montra dessas, ainda fico extasiado a olhar.
Durante muito tempo ainda guardei os restos desses exércitos: uma mistura dos kakis do Afrikakorps com túnicas templárias, e centuriões romanos com plumas nos capacetes.
Não resistiram a sucessivas mudanças de casa.
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De Nuno Castelo-Branco a 08.10.2008 às 22:12

Senhor Dr. Juiz, ehehehe, essas coisas JAMAIS se deitam fora. Quando morrermos, ok, façam o que quiserem. Eu guardei todos aqueles que montei com o Miguel e estão "bem quentinhos" dentro de caixas à espera não sei bem do quê ou de quem. Talvez um dia os ofereça. Lembro-me sempre do Pavilhão Chinês, mas sinceramente, não gostava nada que os deitassem fora, deram-nos tanto trabalho e fizeram-nos tanta companhia. Alguns são de ... 1970!

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