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O Economist e a formatação do pensamento único

por Nuno Castelo-Branco, em 07.12.08

 

O citado jornal do interesse dos economistas, financeiros e especuladores, publicou um extenso artigo que pretende elucidar - sem que finalmente tenha conseguido tal proeza - os leitores acerca da complicada crise tailandesa.

 

Não nos competindo ou directamente interessando  a discussão acerca da evolução do quadro político vigente naquele país asiático, há que ter presente o simples facto da quase obrigatoriedade de formatação segundo um certo padrão político-económico que todo o mundo inevitavelmente parece ter de aceitar.

 

O referido artigo é pródigo em suposições, repesca as velhas lendas da intriga palaciana de outros tempos - o articulista devia visitar o Palácio de Belém, a Casa Branca ou o Eliseu - e imagina cenários futuros, que embora não se apresentem fatalmente apocalípticos, cobrem de sombra o porvir daquela terra e das suas gentes. A mentalidade imediatista ocidental, preocupada em esgravatar noticiário que de hora a hora alimente as cadeias televisivas da chamada grande informação - as CNN, Bloombergs e a nível nacional, as SIC's, RTP'sN, etc -, segue afinal, os muito pouco profissionais princípios do preconceito, parcialidade da informação, anacronismo e os boatos que hoje são crismados com a sugestiva expressão inócua de "fontes credenciadas ou bem informadas".

 

Pertencente aos grandes grupos financeiros, as televisões informativas e os jornais e revistas da mesma especialidade, servem apenas de corrente de transmissão do pensamento único a que a maior parte do globo já se submeteu, num processo decorrente das vicissitudes impostas pela História, dada a secular dependência a que uma boa parte dos Novos Mundos viveu relativamente às Metrópoles europeias.

 

Este artigo do Economist, é um clássico da lenda e narrativa do preconceito arreigadamente presente nas mentes dos ocidentais. Os argumentos são velhos de duzentos anos e até o guião é tradicional, não faltando qualquer dos elementos que compõem uma típica tragédia monárquica, tão ao gosto dos libertadores corta-cabeças do ocaso setecentista. Existe um rei que vê aproximar-se o fim dos seus dias de vida, uma rainha obviamente má e manipuladora, um príncipe herdeiro D. Juan e desinteressado, uma princesa querida pelo povo mas fraca e uma corte esbanjadora. Como contraponto, temos um povo que é massacrado nas ruas e serve de carne para canhão da bestialidade policial e militar. Os ricos de um lado e os pobres, do outro, como se tenta fazer crer.

 

O longo reinado de Rama IX é passado a vol de l'oiseau, condescendendo o "analista" em apontar as inegáveis qualidades humanas do monarca, para logo o ir  manchando com meras suposições - sem que uma só atitude pública ou prova lhe seja apontada -, transformando-o ao longo dos parágrafos,  no homem que tem presa por fios, toda uma sociedade de fantoches que representam um papel previsto pelo guião dos Chakri. Patético.

Outra das superstições habituais neste tipo de considerandos acerca de um dado monarca reinante, é o problema da longevidade. Ao longo da História, reis ou imperadores que tenham atingido provecta idade, ganharam uma aura quase sobrenatural entre as populações e o seu previsível desaparecimento era encarado com receosa expectativa, significando para muitos, um certo fim do mundo: tal se passou com Luís XIV, com D. João V ou com a rainha Vitória, afinal normalmente sucedidos pelos legítimos herdeiros presuntivos, com plena aceitação das comunidades. Este facto da cada vez maior longevidade dos monarcas, acompanha a evolução da própria humanidade e exemplos como os de Isabel II, Bhumibol ou Hiro-Hito, serão a regra e não a execepção. Nada que o Economist e os seus articulistas encomendados não consigam compreender, mas que surge como nebulosa possibilidade de infundada implosão de um regime ou do país inteiro. Ridículo e infantil.

 

Além do descarado ataque dos interesses inconfessáveis à monarquia, o que o articulista do Economist pretende sonegar deliberadamente, é a verdadeira causa de todo o mal estar social que o senhor Thaksin Shinawatra provocou, com os seus delírios populistas de um exacerbado e orgulhosamente assumido caciquismo. Nem uma palavra quanto à autoria de mando dos tais massacres no sul, executados contra gentes muçulmanas, nem consta uma única linha acerca das fraudes, destruição do tecido empresarial do Estado em proveito da sua clientela e corrupção activa  do próprio e da sua família. 

 

De facto, as manifestações do PAD são compostas por uma vastíssima coligação de pessoas das mais diversas origens e não é exacto afirmar-se a exclusiva componente urbana. Os muçulmanos perseguidos brutalmente por Thaksin, encontram-se em elevadíssimo número nas hostes realistas, plenamente cientes do papel tradicionalmente protector que a Coroa tem oferecido aos vários grupos religiosos do reino. A reacção aos ímpetos de Thaksin, emulam aquelas ocorridas um pouco por toda esta região da Ásia, desde a própria Malásia, à Indonésia ou Filipinas, onde o elemento chinês é preponderante nos grandes grupos financeiros, nos chamados "negócios". Habituados a um Estado protector, os tailandeses não parecem muito interessados nas delícias prometidas por um certo capitalismo que lhes fecha ou destrói os lugares de trabalho e impõe como condição para o progresso, a rejeição da própria identidade nacional, onde a forma de organização social, a religião e um certo nacionalismo - como o Japão insiste em manter - mantém a coesão do todo. E assim, não nos podemos admirar por ver lado a lado industriais, monges, sindicalistas, estudantes e trabalhadores do terciário. É esta aliança dos mais esclarecidos e menos permeáveis à grosseira manipulação caciquista, que sai teimosamente à rua e reivindica o direito de resistência à liquidação do modelo histórico sobre o qual assenta a sociedade do antigo Sião.  Para um americano ou europeu, torna-se impossível a aceitação ou compreensão de usos ancestrais e das formas de organização que são diversas das suas próprias. Qualquer presidente de uma república de quarta categoria como a portuguesa, tem mais poder real que aqueles que a Constituição tailandesa reserva ao monarca. O que os analistas estrangeiros teimam em não querer ver - é tão fácil lobrigar a evidência -, é o papel fundamental e unificador da instituição, garantindo a unidade do Estado que é formado por regiões onde as tradições são específicas de cada uma delas e que ao longo dos séculos foram criando laços  institucionais - onde o budismo teve um papel fundamental - que vieram a conformar o Sião como entidade Nação.  Thaksin nem sequer era o chefe de um partido esmagadoramente maioritário, pois a oposição obteve uma votação aproximada daquela obtida pelo partido do primeiro-ministro. O aliciante móbil da sua acção consistiu na promessa - que disso não passou, pois durante o seu governo assistiu-se a uma corrida aos hospitais privados -  de um alargado Estado-Previdência à semelhança do modelo que hoje a Europa vai lentamente abandonando. O populismo descarado, a compra de votos e a inclusão do reino na esfera de influência  dos grandes circuitos do capital internacional, assustaram uma população profundamente lealista e orgulhosa da particular e quiçá única história do país, que jamais tendo sido colonizado, soube acompanhar o progresso material do século XX e que hoje tem elevada taxa de crescimento económico. O analfabetismo desapareceu, a educação encontra-se generalizada e o reino construiu escolas, estradas, hospitais e todo o tipo de infraestruturas próprias de uma sociedade onde a industrialização é patente e impõe a própria capital, Bangkok, como importante ponto económico regional.

 

O país progrediu e muito. Se compararmos a Tailândia com os demais vizinhos, a instabilidade constitucional e os golpes militares surgem como parte da normal vida política local, sem que por isso deixe de existir liberdade de expressão e uma imprensa que não encontra rival naquela parte do mundo. Existe total liberdade de circulação, igualdade de direitos e facto de fundamental importância, a separação de poderes.  A Tailândia jamais assistiu à violência sobre populações, genocídios ideologicamente assumidos e brutais ditaduras que os seus vizinhos têm sofrido desde que acederam á independência: o Laos, o Camboja, o Vietname e a Birmânia, são chocantes exemplos que confirmam e ajudam a explicar a especificidade do modelo social, político e económico tailandês. O Economist pretende intoxicar a sua restrita e elitista opinião pública de  leitores, com um tipo de julgamento ou considerações acerca de um particular sistema que finge não compreender. A desonestidade informativa é colossal, escamoteando o essencial papel reservado a umas forças armadas que durante décadas tiveram de enfrentar a subversão patrocinada por Pequim e  Moscovo, ameaçando as permeáveis fronteiras do país. É esta indissolubilidade de vínculos entre a Coroa, as Forças Armadas, o budismo e as populações urbanas, o alvo preferencial daqueles que em qualquer coronel vêm um hipotético Pinochet e no monarca descobrem sempre um gene de Gengis Cão.  Pelo contrário, Thaksin é tacitamente aceite como"um igual", o "homem do mundo empreendedor e dinâmico", "reformador de arcaísmos". Nada de novo, mas jargões bastante convenientes e sobejamente conhecidos no nosso próprio espaço geopolítico.  

 

Este problema da informação que se encontra universalmente sequestrada por quem dela empresarialmente se apropriou, conduziu-nos ao actual estado de coisas, onde o simples decoro diante de uma opinião pública esmagada pela canga da excitação de um efémero consumismo de duas décadas, desapareceu, para dar lugar à descarada partilha de despojos, enriquecimento abusivo, quando não claríssimo roubo e esbulho do património comum. Os acontecimentos na Tailândia, talvez sejam um longínquo exemplo daquilo que os próximos anos reservarão à própria Europa.

 

If Bhumibol’s glittering reign either ends in conflagration or leads to a Thailand paralysed by endless strife, with nobody of his stature to break the deadlock, it will be a tragedy. But he will have played a leading role in bringing about such an outcome. There is of course an opposing case to be made—that the king has been a stabilising influence in a volatile age, that his devotion to duty has been an inspiring example and that he has only ever done what he thought best for the country. But that case has been made publicly, day in, day out, for decades. Thais are not allowed to discuss in public the other side of the coin.

 

 

publicado às 02:57


3 comentários

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De JMB a 07.12.2008 às 05:49

De acordo. O Monarca não podia ir mais além. Há essa essência discreta, algumas vezes bem explícita do que significa o quê para quem. Há coisas que têm um sentido à luz duma cultura, que têm um sentido diametralmente oposto à luz de outra. O mundo "ocidental" não sabe ler isto. Entretanto nas "notícias", o ridículo em três actos ou dois ou quantos quiserem. Make-up, mise-en-plie (é assim que se escreve?)

Boa noite.
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De Nuno Castelo-Branco a 07.12.2008 às 13:00

Pois é, José Manuel, aqui na Europa tudo se vê pelo estafado prisma das boticas habituais, que se calam ou ignoram o que se passa em Chinas, Vietnames, etc. Que estranho...
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De Samuel de Paiva Pires a 07.12.2008 às 16:27

Realmente é como tu dizes Nuno, o imediatismo descaracterizou o bom jornalismo e hoje o que há mais é este tipo de lixo de quem nem sequer entende daquilo que fala, faz uns copy-pastes e mete-lhe umas patacoadas, chavões e lugares-comuns, que agradem a um qualquer chefe de alegados princípios...

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