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Esclarecendo brevemente alguns conceitos

por Samuel de Paiva Pires, em 04.01.09

Não estivesse eu atafulhado em trabalhos, curiosamente, um sobre o reconhecimento da I República pela Inglaterra, e demorar-me-ia muito mais do que apenas esta breve nota a respeito do debate iniciado pelo Tiago Moreira Ramalho, que é de tomar em apreço pois é para isto mesmo que a blogosfera mais deveria servir, o debate de ideias. Sublimes como sempre, o Miguel e o Nuno deram já as suas respostas, e aconselho ainda a ler o João Gomes e os comentários do Leonidas, Rui Monteiro e Ricardo Gomes Silva aqui e ali.

 

Há dois conceitos que gostaria de esclarecer brevemente pois claramente carecem de uma operacionalização não efectuada pelo Tiago Moreira Ramalho ou por quaisquer outros republicanos neste debate (basta atentar no programa do Prós e Contras sobre o tema), nomeadamente os conceitos de legitimidade e democracia.

 

Recorrendo aos clássicos ensinamentos de Max Weber, pode-se dividir a legitimidade em três tipos, a legal/racional, a tradicional/história e a carismática. Actos eleitorais validam apenas a legitimidade legal, enquanto os Reis possuem pelo menos dois quando não mesmo os três tipos de legitmidade, a carismática porque de certa forma ligada a um elemento transcendente, a mais das vezes religioso (veja-se o caso da Rainha de Inglaterra), a tradicional porque repousa no Rei o peso da História da nação que representa, e a legal pois tal como refere o Miguel Castelo-Branco "De facto, na constituição histórica como no liberalismo, o Rei é imputável e responsável pelos seus actos, no exercício de funções ou fora delas. Um Rei que não cumpra as suas obrigações ou não se submeta às disposições constitucionais e à herança consuetudinária é substituído através de mecanismos de substituição (vide D. Afonso VI, v. Eduardo VIII). O filho do Rei será Rei se, e apenas se, aceitar a incumbência no respeito pela constituição".

 

Acresce o que há mais de um ano um amigo, na altura colaborador do Estado Sentido, escrevia sobre a evolução do conceito de legitimidade de Weber a Habermas:

 

 

Habermas aponta aqui que a legitimidade legal não se baseia apenas numa virtude de correção procedimental, mesmo que esse procedimento sofra o efeito de uma tradicionalização (aceitação generalizada da legitimidade democráticas através das eleições, como se o jogo acabasse aqui). Aponta então que essa legitimidade se deve basear numa moral procedimental, que conta com outros critérios democráticos que podem funcionar como filtros, e que, por isso, nunca aceitariam o nazismo alemão como uma ordem legítima, o que o pensamento weberiano perfeitamente permite.


Para Habermas, as medidas adoptadas por Hitler a partir de 1933 não seriam válidas, pois ainda que tenham sido aprovadas pela maioria, havia uma exclusão de participantes do discurso - a democracia transformava-se em ditadura da maioria.

 

Posto isto, creio que quanto à legitmidade estamos tratados, não só seria mais legítimo voltarmos a ter uma monarquia, como o facto da República nunca ter sido referendada e a própria Constituição o impedir demonstram em pleno a legitimidade de que o regime carece, que na actual III República apenas tem sido sustentada pelo anti-fascismo, isto é, a oposição ao Estado Novo, que começa também cada vez mais a não ser suficiente, ou não se oiçam tantas vozes dissidentes e divergentes, as mais audíveis sendo precisamente as dos monárquicos.

 

Quanto ao conceito de democracia, recorremos aqui aos ensinamentos de Larry Diamond e de Robert Dahl. Para começar, Larry Diamond distingue entre democracia eleitoral e democracia liberal, sendo que a democracia eleitoral pode frequentemente ser chamada de democracia iliberal. Creio que o nome diz tudo, mas brevemente significa que qualquer regime onde existam eleições é uma democracia eleitoral mas pode ser uma democracia iliberal, vejam-se os casos controversos de Venezuela, Angola e Rússia na actualidade. E o que é uma democracia liberal? É o tendencialmente desejável regime que se nos apresenta nos países Europeus, Estados Unidos, Canadá e Austrália, um regime que segundo Dahl responde completamente ou quase completamente perante todos os seus cidadãos. Nesse regime todos os seus cidadãos devem ter oportunidades iguais de:

 

1 -  Formular as suas preferências;

2 - Explicar as suas preferências aos seus concidadãos e ao governo através de acções individuais ou colectivas;

3 - Ter as suas preferências consideradas de forma igual na conduta do governo, isto é, consideradas sem discriminação devido ao seu conteúdo ou fonte da preferência.

 

Estas são as três condições essenciais consideradas por Dahl para um regime ser democrático e dentro destas existem 8 critérios que são tradicionalmente considerados pelos estudos de democratização e política comparada como o "minimum procedural", os critérios mínimos para um regime ser democrático, que são:

 

1 - Liberdade de formar e juntar-se a organizações;

2 - Liberdade de expressão;

3 - Direito de voto;

4 - Eligibilidade para cargos públicos;

5 - Direito dos líderes políticos competirem por apoio;

6 - Fontes de informação alternativas;

7 - Eleições livres e justas;

8 - Instituições que façam as políticas do governo depender de votações e outras expressões de preferência.

 

(Nota: Consoante o tipo de estudo que se queira realizar adicionam-se outros critérios a estes, dos quais os mais comuns serão a liberdade de imprensa e o controlo dos militares pelo poder civil)

 

Posto isto, o argumento de que a República é mais democrática porque se vota em quem é o Chefe de Estado é uma total falácia, eu pelo menos prefiro uma verdadeira democracia liberal e útil à nação e ao desenvolvimento do país, com a legitimidade assegurada pelo que já acima referi, do que um regime que acha que é democrático apenas porque há eleições, como referia no Prós e Contras António Reis, Grão-Mestre do GOL. A democracia é muito mais do que apenas votar. E a este respeito remeto para os índices de qualidade da democracia  e liberdade da Freedom House. Consta que as monarquias europeias são regimes mais democráticos que o nosso... Ninguém me vai dizer como alguém me disse há tempos que o Reino Unido é menos democrático que Portugal pois não? E já agora, porque é um argumento estatístico, 6 nos primeiros 10 e 12 nos primeiros 20 países mais desenvolvidos do mundo em termos do Índice de Desenvolvimento Humano são monarquias. O Tiago refere que o argumento de que serve para os outros serve para nós não é válido, com o que concordo até certa parte. Mas uma coisa é certa, é que o Tiago pretende é demonstrar que eticamente a República é um regime melhor que a Monarquia. E o que é facto é que tal como diziam uns professores numa conferência há tempos no ISCSP, não há uma ideal ou melhor forma de governo: 

 

Em primeiro lugar, a noção de que não há uma melhor forma de governo, há formas de governo que se adequam às populações, às circunstâncias, à cultura, enfim, às especificidades antropológicas dos indivíduos, comunidades e sociedades. É por isso que agarrar em modelos ocidentais e copiá-los para todo o resto do mundo resulta nas asneiras que tem resultado. Em segundo lugar, a essencial distinção entre a forma e a substância do poder. A substância que se está a exportar para o todo mundo é a mesma. As formas pouco interessam, posto que a substância é a de que sempre existirão oligarquias, plutocracias, primado da tecnologia e da globalização, o Estado espectáculo e o marketing político como base de legitimação do poder político. Posto isto, as formas são simbólicas, porque na essência estamos todos a caminhar para o mesmo, para uma ordem internacional que a plutocracia mundial vai ditando.

 

Depois há ainda dois ou três argumentos normalmente utilizados pelos republicanos, a questão da hereditariedade na monarquia que é incompatível com o propagado conceito de igualdade. Há aqui um problema que é precisamente o que o Miguel Castelo-Branco refere:

 

Foi o Estado codificador, legislador, centralizador e confiscador dos direitos, liberdades e privilégios, o Estado do jacobinismo, que impôs o soberanismo radical, a ideia de um ente moral distinto dos homens que Samuel Pufendorf anunciara, de um indutor da "Vontade Geral" com que Rousseau resolveu o problema da pluralidade e a antecâmara do totalitarismo, ou seja, da apropriação dos indivíduos e da sociedade por uma ideia abstracta(Amendola)

 

Em nome de uma construção abstracta em torno destes conceitos já referidos agrilhoou-se completamente os cidadãos empurrando-nos para um depressivo abismo sem aparente alternativa. Em relação à legitmidade e à democracia creio que já estão explicados os erros conceptuais em que os republicanos normalmente incorrem e com que têm conseguido enganar todo um povo. Em relação à igualdade remeto para um detalhado post sobre essa falácia que, resumidamente, é uma construção teórica de Rousseau que ele próprio desmontou pois é incompatível com a noção de sociedade, só há verdadeiramente igualdade no estado de natureza; e quanto à hereditariedade e igualdade retomo ainda o que na altura escrevi em rescaldo ao programa do Prós e Contras:

 

Em relação ao argumento da hereditariedade, o professor Maltez deve ter assustado muita gente quando perguntou se queriam que começasse a apontar quantos no parlamento são netos, bisnetos, trisnetos de longas tradições dinásticas e hereditárias. É uma daquelas propagandas demagogas do republicanismo português, o iludir o povo com a igualdade e com o francesismo de que todos somos iguais, pelo que qualquer um pode ser chefe de estado. Acreditam mesmo nisto? É que na prática a teoria é outra, como diz o professor Maltez, já que não há coincidência entre a lei escrita e a prática da lei.

 

Nesta República os Presidentes da República continuarão a ser "históricos" dos dois partidos do centrão (até aposto que Durão e Guterres estarão já na calha para serem Presidentes da República), e basta circular entre os meandros do poder e da sociedade lisboeta (que concentra o poder político de Portugal), para perceber que são todos "gente de bem" e de longa tradição hereditária quanto à presença na teia relacional do poder que é o actual estadão. A meritocracia há muito que se perdeu, e os canais de acesso ao poder e de mobilidade social estão praticamente vedados e restritos a uns poucos, os das castas do regime, e bem ilustrativa disto é a afirmação de Luís Coimbra de que "estamos numa Europa sem europeus, porque já quase ninguém vota, e estamos numa democracia sem povo, porque o círculo do poder está fechado"

 

Posto tudo isto, e porque já me demorei mais do que pretendia, finalizo apenas dizendo ao caro Tiago que prefere a legitimidade à utilidade, que é precisamente esse tipo de pensamento, novamente uma abstração que nos tornou escravos, que nos aprisionou nas teias da mediocridade e da partidocracia e tem impedido que Portugal se assuma de uma vez por todas como herdeiro da sua História e se projecte para o futuro com um projecto de verdadeiro desenvolvimento nacional. 

 

(também publicado no Centenário da República)

publicado às 14:04


10 comentários

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De tiago santos a 04.01.2009 às 17:27

a questão não é ser na suazilandia, é ser do tipo da suazilandia. A questão é que vocês defendem a monarquia, mas só um tipo específico de monarquia (constitucional e tal e tal)...mas quem é republicano, já defende todo o tipo de republicas. Eu sou republicano, e isso não queri dizer que concorde com a republica como ela existe em Portugal...
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De Nuno Castelo-Branco a 04.01.2009 às 19:36

Aí está a grande diferença, Tiago: aparentemente, para si, é indiferente que seja um regime do tipo Saddam, Putin Sarkozy, Kim Jong Il, Pol Pot ou Fidel Castro! desde que seja república, claro...
Neste caso, há que proceder urgentemente a uma revisão de conceitos, porque afinal, os únicos republicanos, somos nós, os monárquicos. É que defendemos a separação de poderes, o modelo contratualista que fez da Europa aquilo que ela é. Não queremos um certo tipo de república, nem sequer aquela em nome da qual o senhor marquês de Pombal decretava.

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