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Breves notas sobre a eutanásia

por Samuel de Paiva Pires, em 23.05.18

Impressionam-me sempre, ainda que não me surpreendam (afinal, o fenómeno encontra-se há muito diagnosticado pela teoria política, especialmente por autores conservadores), os discursos de cartilha ideológica e/ou religiosa, como tende a ser o da oposição à eutanásia, especialmente quando procuram fundamentar a utilização da coerção estatal para diminuir a esfera de liberdade individual naquilo que tem de mais íntimo e primordial, o podermos dispor sobre a nossa própria vida e, consequentemente, sobre a nossa morte. Compreendo que seja fácil e confortável debitar argumentos a partir de uma cartilha que nos diz o que pensar e o que dizer em face de determinados assuntos, mas não posso deixar de observar que esta é uma atitude permeada por uma boa dose de preguiça intelectual - compreensível, sublinho, mas que não deixa de ser o que é.

 

Tendo-me debruçado recentemente sobre o tema, apercebi-me que a esmagadora maioria dos argumentos dos opositores à eutanásia remetem, mesmo que frequentemente não pareça ou não o admitam, para uma única ideia, a de que a nossa vida pertence a Deus, não a nós próprios. Não foi por acaso que líderes de várias religiões se juntaram contra a despenalização da eutanásia em Portugal. Não foi também por acaso que um padre tetraplégico tentou convencer Ramón Sampedro a não se suicidar, ignorando que o conceito de dignidade humana pode ser entendido de formas diversas e que a resposta à célebre questão com que Camus abre O Mito de Sísifo - "Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia" - pode também ser diferente consoante os indivíduos, ainda que sujeitos exactamente às mesmas situações. 

 

Tenho muito respeito por crenças religiosas, e especialmente pela herança civilizacional judaico-cristã, mas tenho pena que muitos crentes não nutram o mesmo respeito pelos que não são crentes e pareçam ignorar que as sociedades ocidentais atravessaram o Iluminismo e têm como condição fundamental o laicismo. Querer impor a toda a sociedade um determinado entendimento religioso da ideia de dignidade da vida humana que tem como efeito impedir que um reduzido número de pessoas (são muito poucas as pessoas que pedem para morrer em face da dor e sofrimento, mesmo em países em que a eutanásia e o suicídio assistido são permitidos), em situações de dor e sofrimento prolongado e com doenças incuráveis - para mim, condições sine qua non para a admissibilidade da eutanásia e do suicídio assistido -, à luz das suas convicções e respostas à pergunta de Camus, possam morrer de forma medicamente assistida, parece-me - não há como dizê-lo de outra forma - perverso. 

 

Ademais, importa fazer notar que os cuidados paliativos não são uma alternativa à eutanásia (como afirmou João Lobo Antunes, citado por Maria Filomena Mónica em A Morte, é "errada a ideia de que os cuidados paliativos eliminariam todas as situações em que a eutanásia pode ser necessária, uma vez que, por exemplo, no Estado do Oregon, existem óptimos cuidados paliativos, o que não impedira alguns indivíduos de terem optado pelo suicídio assistido"), e que argumentos como a origem da eutanásia na Alemanha nazi e a rampa deslizante são fracos e, no caso deste último, trata-se frequentemente de uma falácia lógica facilmente desmontável. Citando Maria Filomena Mónica: "Ao contrário de pessoas que respeito, não considero que estejamos a escorregar, por uma escada deslizante, até à barbárie. Não é forçoso que se passe da defesa do suicídio assistido para a eutanásia e desta para a injecção letal a deficientes, mas reconheço que este argumento tem força. Contudo, do ponto de vista lógico, não é sustentável. Eis como funciona: à primeira vista, parece positivo fazer-se X (independentemente do que for X); mas a acção X conduz inevitavelmente a Y e esta, por sua vez, a Z. Ora, a acção Z é tida como negativa, portanto não deveremos fazer X. Uma acção que, de início, parecia aceitável, passa assim a ser vista como deletéria. Acontece que a “inevitabilidade” da passagem de X para Z não é uma necessidade. Embora se justifiquem cautelas, não é certo que a aceitação da eutanásia, no caso de doentes que a solicitem, leve à sua aplicação a doentes que a não desejam."

 

Importaria, portanto, que o debate não resvalasse para este tipo de questões, que decorresse em moldes racionais e num ambiente de serenidade, o que muitos dos opositores da eutanásia se têm esforçado por combater. Que alguns destes pensem ainda em submeter uma questão destas a referendo, incorrendo na possibilidade real de a tirania da maioria obrigar, numa questão que diz respeito a direitos fundamentais (porque termos uma palavra a dizer sobre a nossa morte nas condições supra elencadas faz parte do direito à vida), a obedecer a uma normatividade com um substrato essencialmente religioso que não é partilhado por todos os cidadãos, parece-me, mais que perverso, desumano.

 

Espero, por isso, que os nossos representantes na Assembleia da República, além de reflectirem serenamente, tenham bem presentes as seguintes palavras de Maria Filomena Mónica: "Uma democracia laica, como é o caso de Portugal, deve respeitar os sentimentos que a fé religiosa faz brotar na alma dos crentes, mas não pode autorizar que seja ela, a fé, a ditar a formulação das leis. Os católicos têm o direito de se abster de actos que consideram pecaminosos, mas não podem impor aos outros os seus valores. Não quero obrigar ninguém a fazer o que quer que seja, mas desejo ser livre de escolher o meu fim."

publicado às 23:22


2 comentários

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De Anónimo a 25.05.2018 às 22:49

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De A. Vieira a 28.05.2018 às 14:24

A solução final ( nazi) que se preconiza (eutanásia) não só é fruto de um preconceito estético-social como também indica que a sociedade não acredita na ciência e na sua procura de melhorar a esperança de vida, e quer que o estado tipo nazi regule a vida dos cidadãos.

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