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Paris, início dos anos 90

por Nuno Castelo-Branco, em 23.04.17

 

Marie-antoinette.jpg

 Devido a afazeres profissionais, durante um certo período tive de visitar Paris bastas vezes e foram tantas que praticamente dividia a residência entre Lisboa e aquela capital. Era um penoso dever bastante agradável numa cidade que cumpria fielmente todos os lugares comuns das luzes cintilantes, quilómetros de museus, vitrinas opulentas e tudo o mais que se sabe.


Ficava então instalado no XVIéme, nas imediações do Trocadero, uma zona a abarrotar de celebridades, gente de pasta, uns tantos exilados voluntários ou não como a grandiosa Xabanu Farah Diba ou a esquiva Marlene Dietrich. Era este o ambiente. O apartamento? Intermitentemente vazio e pertencente a uns amigos, claro.

Naquele prédio sito nas imediações da G. Mandel, imperava uma imponente porteira cuja nacionalidade facilmente se adivinha, pois isto também fazia então parte integral dos já citados lugares comuns acima apontados. Era uma belíssima alentejana alta, bem torneada, lábios e peitorais protuberantemente carnudos e com um não sei quê de Amália fisicamente muito mais dotada. Nunca, jamais a vi de bata e ar tristonho e pelo contrário saía à rua impecavelmente vestida, bem ciente de saber sempre ser notada. Para cúmulo da felicidade era orgulhosa, altiva e apenas ficava naquele meio sorriso bem educado que não dava azo a confianças. Inacreditavelmente não tinha aquele sotaque típico que tão bem caracteriza as nossas elites caseiras em todas as suas pretensões cosmopolitas. Ia todas as semanas ao teatro, lia, visitava exposições e comigo jamais soltou boca fora qualquer galicismo. Nunca. 

Como se sabe, aquela zona de Paris é pródiga em blondasses naturais ou químicas, umas que já viram melhores dias e outras que mesmo o passar dos anos em nada mudam o aspecto geral bastante razoável. Naturalmente corteses e friamente distantes, davam-se a ares não se sabe bem de quê e viviam recolhidas nos seus não-afazeres quotidianos. Era o caso daquele prédio onde a luso-majestática Maria Antonieta ditava a sua lei que em boa verdade era timidamente obedecida por todos. Os residentes resmungavam pela surdina e abandonado o átrio, os decibéis dos latidos iam subindo à medida que galgavam as escadas, afastando-se da despótica Senhora que fazia sombra a todas as outras. A Antonieta abertamente se ria e virando-se para mim, disparava com um esgar desdenhoso:

- Estás a ver, é assim que devem ser tratados, é metê-los a todos nas suas tocas! Pffffff...era só o que mais me faltava!

E passava adiante, falando das suas saudades do nosso país que ainda imaginava ser o seu. Nunca me atrevi a dizer-lhe que de facto a França, ou melhor, o ambiente que ali existia muito fizera por ela e como inteligente pessoa que era, nem sequer disso dava conta, tudo aquilo que mostrava tornou-se numa naturalidade que advinha da sua forte personalidade rica e multifacetada.

Um dia, chegando a meio da manhã, deparei com esta Senhora numa acalorada discussão com uma pequena e rechonchuda blondasse do edifício, uma verdadeira doméstica burguesa sem qualquer tipo de chamariz e bastante vulgar na expressão portuguesa do termo. Não sei qual teria sido a origem da disputa, mas a certa altura a famosa ditadora da portaria acabou com o assunto de forma lapidar, vincando bem cada palavra:

- Est ce que vous savez mon nom, Madame? Ma-ri-e An-toi-ne-tte, Ma-ri-e Ant-toi-ne-tte! ICI, LA REINE C'EST MOI!

Clac! (porta fechada com estrondo na cara da pequena bourgeoise atrevida)

E era mesmo a rainha do prédio, batia todas as outras por KO absoluto. 

Guardo para mim as desconfianças, mas o que terá ela decidido para hoje? 


 

publicado às 09:05







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