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Moçambique

por Nuno Castelo-Branco, em 21.03.19

 

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Se amanhã for às compras, não se esqueça de adquirir:
- Latas de feijão encarnado
- Latas de ervilhas
- Latas de atum, sardinhas em óleo com ou sem tomate
- Bolachas Maria, pois toda a gente as come
- Tudo o que estiver pronto-a-comer, desde que não contenha carne de porco. Desaconselho também sacos de puré em pó, pois a gente do mato não sabe prepará-lo
- Arroz, e massas
- Sacos de farinha de milho branco ou amarelo para a confecção de "Chima"

Se se lembrarem de algo mais, poderão também entregar as dádivas num quartel de Bombeiros que generosamente se prestaram a ajudar.

Aos que sabem o que este som significa para tanta gente, decerto não hesitarão: http://www.lmradio.org/Sounds/rcm%20historical%20recording_01.mp3?fbclid=IwAR163lIJnCERFZ9ZMgdryiXBan03-IqzgOX30rNLBg2iKwlz6ac9Lha_N78

publicado às 22:51

A Mima

por Nuno Castelo-Branco, em 26.10.17

 

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 Não sabia o que significava, mas a palavra agradara-lhe e decidira usá-la assim que tivesse oportunidade para tal. Naquela tarde iria com a prima Ana Maria e a sua mãe ao Scala, uma grande sala de cinema situada em plena Baixa, sítio esse onde as pessoas não apenas iam ver uma fita, como também para serem notadas. Por isso mesmo uma ida ao cinema era então algo que agora nos surge como um eco distante de um passado mais rebuscado onde algumas glórias da moda com algum imaginado requinte desfilaram.

Estavam então naqueles anos imediatos à guerra mundial e as duas miúdas, uma delas, a Mima, residente na capital e a outra, a Ana Maria, vinda do mato de Manjacaze onde o pai era administrador, apresentaram-se diante de Maria Pinto da Fonseca para uma rápida vistoria aos laçarotes antes de deixarem a casa e rumarem à Av. da República, naquela confluência com a Av. D. Luís I, sítio esse onde existiam os dois principais pontos de encontro da cidade. Um deles, o Café Continental, era vasto e vagamente apresentado numa espécie de Deco tardio, já um tanto ou quanto americanizado. Era ali que se concentravam os homens para a discussão da política - sim, em Lourenço Marques a discussão política também era coisa trivial -, as últimas notícias dos futebóis locais e metropolitanos e as intrigalhadas de uma sociedade relativamente exígua, embora o seu espaçamento territorial à primeira vista indiciasse o oposto. Praticamente quem era quem conhecia-se e em reflexo era normal um transeunte percorrer a Avenida meneando constantemente cabeça, saudando à esquerda e à direita ou tão só levando a mão ao chapéu nos dias de torreira. Era o Café Continental o centro das Laurentinas e dos pires de camarão tigre que acompanhavam cada rodada, o café fumegante ficava para fim, significava a estocada terminal na conversa. As Coca Colas serviam para mitigar o aborrecimento dos garotos impacientes pelas conversas ininteligíveis dos adultos que para ali infelizmente os arrastavam, começando ao fim de algum tempo a balançar as pernas como forma de silencioso protesto. Por vezes, um clac! relativamente audível fazia voltar algumas cabeças em direcção ao ruído e à face subitamente avermelhada do pirralho atrevido. Eram tempos em que isso se fazia em público e sem riscos de maior.

 

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Mesmo diante do Continental existia outro recinto de comes e bebes, mas não era um Café que replicasse na concorrência o vasto espaço fronteiro, tratava-se de um salão de chá, algo que de imediato produzia na cabeça dos visitantes uma sensação de diferença e cerimonial. Ali se serviam chás, fumegantes torradas e toda a bolaria portuguesa, alguma dela tropicalizada e mais ao gosto local. Era o o Salão de Chá Scala, sobretudo querido pelas senhoras e pela filharada gulosa e melhor comportada. Olhava-se de soslaio ou descaradamente para as peças têxteis elaboradas pela modista Lauentina Borges ou tão só adquiridas numa das imensas lojas de trapos da cidade e exibidas na mesa vizinha, como infalivelmente  se comentava a próxima chegada de uma vedeta metropolitana, trocavam-se umas tantas receitas ou a ida a uma exposição no Núcleo de Arte onde fulano ou sicrana iria mostrar o que sabia ou não sabia fazer. 

Mesmo contígua ao salão de chá, existia e ainda existe fechada numa cápsula do tempo o grande cinema da Baixa, o magnífico Scala onde um dia, ainda garoto, vi actuar gente como Marcel Marceau e Gilbert Bécaud. A estes juntaram-se muitos outros cujos nomes fui esquecendo, desde os nacionais como a Florbela Queiroz, Simone ou o Duo Ouro Negro, até internacionais que aproveitavam a tournée na África do Sul para fazerem uma perninha na então bastante cosmopolita capital de Moçambique.  

A prima Mima estava ansiosa, pois lera a palavra num daquelas romances para adultos, palavra essa muito sonora, estranha e  enigmática que faria todo o sentido exibir como um troféu de caça grossa. A sua preguiça chegara para mantê-la longe da estante onde repousava o dicionário que rapidamente poderia esclarecê-la.

O filme ia correndo e o intervalo, com toda a injustiça  nunca mais chegava. Terminada a primeira parte do filme que obrigava à mudança da bobine, as pessoas normalmente saíam  e iam trocando impressões acerca da estória ou tão só aproveitavam a pausa para fumar, beber e comer qualquer coisa na sala de chá convenientemente bem próxima.

Finalmente, chegou o momento tão esperado e a Mima rapidamente se levantou, apontou o dedo à mãe e gritou:

- Levanta-te, mulher adúltera!

Dúzias de pares de olhos fuzilaram a estarrecida tia Maria.

publicado às 07:46

The Delagoa Bay World

por Nuno Castelo-Branco, em 03.02.17

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 Os meus mais calorosos agradecimentos ao António Botelho de Melo, alguém que infelizmente não tive a oportunidade de ter conhecido em Lourenço Marques. Aqui fica uma sugestão para uma visita ao seu maravilhoso blog. 

publicado às 14:30

Um Anuário para a História

por Nuno Castelo-Branco, em 04.12.16

 

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Costumo percorrer com os olhos a vastíssima biblioteca do meu pai e é possível encontrar o que pretenda, por mais estranhos possam ser os temas. Em soma às muitas centenas de volumes que vieram de África, juntam-se milhares de outros adquiridos na Europa, surgindo como surpresa, o seu apego por obras que julgaríamos completamente afastadas da procura de um homem que antes de tudo se interessou pela grande e pequena História e respectivo anedotário relativamente picaresco, bem como pela literatura e aquela gastronomia que indelevelmente marca o ritmo da passagem dos séculos. 

Este espesso volume faz parte da história que um dia será contada e não acredito existirem muitos sobreviventes da ampla tiragem um dia feita pela Casa Bayly estabelecida em Lourenço Marques. Esta empresa tinha angariadores de assinaturas que garantiam a presença do nome de uma multidão de entidades e como seria previsível, não está completo. Falta uma miríade de empresas que pelos mais diversos motivos não quiseram pagar para aqui aparecerem, mas estas 1800 páginas são uma boa súmula daquilo que foi o Moçambique do início da década de setenta. Se a tudo isto ainda somarmos as anónimas iniciativas que abriam lojinhas-cantina mato fora, ainda teremos um quadro bastante impreciso daquilo que existiu. 

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Torna-se esmagadora uma pesquisa, mesmo que sumária e na diagonal. São tantas as empresas, são tão diversos os sectores de actividade, são de tal modo completos os serviços públicos presentes no então Estado de Moçambique que dir-se-ia estarmos a tratar de um país perfeitamente estruturado e capaz de de auto-governo e não de uma dependência política e ultramarina de uma nação europeia. 

Na agricultura e na pecuária, nas pescas, em praticamente todos os sectores da indústria e serviços, no comércio, turismo, assistência sanitária e escolar e mesmo a inopinada existência de uma Junta estatal da Energia Nuclear, os nomes sucedem-se, fazendo-me recordar alguns que eram visíveis em anúncios ou placards nas avenidas da capital moçambicana, ou em organogramas que ocasionalmente me passaram pela vista de adolescente.  

Em termos comparativos, este Anuário é o mais vasto entre aqueles até então publicados, pois nas estantes do meu pai encontro outros de décadas anteriores, sem dúvida mais modestos e pontilhados por sonantes nomes estrangeiros que a economia local fez com que deixassem de ser pertença de companhias majestáticas sediadas em Londres, Joanesburgo, Amesterdão ou Berlim. Folheando-os de vez em quando reconheço nomes de pessoas que conheci. Os portugueses foram nacionalizando essas actividades, normalizando-as no contexto local e sem que isso significasse o esbulho puro e simples daqueles que as detinham. Tornaram-nas parte integral da paisagem económica de uma Colónia que o deixou de ser para passar a ostentar o nome de Província e na fase final da soberania portuguesa, acabou como Estado, aquele degrau que precedia a natural independência a que desde muito cedo habituei os ouvidos nas conversas escutadas à mesa ou com as visitas que tínhamos em casa. Sim, falava-se da independência, mas muito longe do tipo de independência que aconteceu. Não se tratava daquilo que imediatamente alguns leitores porventura estarão a pensar, na independência paralela ao que sucedia na então Rodésia ou na África do Sul. Os portugueses dos anos sessenta e setenta jamais tolerariam algo de remotamente semelhante. O regime enviava de Lisboa para os bancos da escola a mensagem que literalmente falava  "do Minho a Timor" e isso era entendido a nível local como integração de todos. O caso da prática era outro assunto mais complexo e que requeria um curto espaço de tempo que tratando-se de história, significava umas poucas décadas, apenas uma geração. 

A administração portuguesa e as suas entidades locais conseguiram realizar uma obra impressionante que não se limitou aos centros urbanos. O interesse pelo país desbravou o interior, ali instalando a administração do Estado que construiu escolas primárias nas vilas que crescendo, em poucas décadas se transformaram em cidades como Tete, Quelimane, Nampula, Porto Amélia ou Vila Pery. As escolas secundárias e os liceus foram surgindo com o passar de poucas décadas e banalizaram-se. Alguns que se interessaram e amaram aqueles locais, mais tarde sobre a sua experiência escreveram algumas memórias, fazendo a história do que viram e ajudaram a criar

Politicamente este é um Anuário nefasto, pois em si contradiz praticamente tudo aquilo que convém fazer passar por verdadeiro e indiscutível. Habituados como estamos ao ... não fizeram nada durante quinhentos anos que afinal acabaram por ser pouco mais de noventa, este pesado volume fará as delícias dos historiadores que num futuro que considero possível já não se encontrar tão distante, dedicar-se-ão a realizar precisamente aquilo que jamais foi feito: a História. Estarão eles interessado em descortinar como se organizava a governação portuguesa em Moçambique? Bastar-lhes-á seguir o que existia e foi sendo acrescentado ao longo de decénios, confirmando aquilo que hoje todos sabem e preferem não reconhecer publicamente, ou seja, o colonialismo não é possível ser encarado como um todo, uma amálgama que anacronicamente irmane e unifique o correr de umas tantas gerações. Ainda há uns dias a RTP 2 passou um programa em que o objecto de interesse era o grande fotógrafo moçambicano Ricardo Rangel e este fez exactamente o que honestamente não podia ser feito: a amálgama que facilmente induz ao engano, à re-invenção de uma história mais conveniente a quem detém o poder. O Moçambique em que nasci era certamente muito diferente daquele dos anos trinta em que os meus pais vieram ao mundo e este, por sua vez, completamente diverso do dia 15 de Setembro de 1916 em que em Lourenço Marques nasceu a minha avó, filha de uma natural da terra e neta de pioneiros ali estabelecidos logo após a delimitação das fronteiras saídas do Ultimatum.

Somos, todos nós, a nossa família, parte integrante da Associação dos Velhos Colonos de Moçambique e guardados ainda estão os canhotos comprovativos das quotas que nos davam acesso a todos os recintos da instituição, incluindo a piscina onde eu e os meus irmãos aprendemos a nadar. Era para nós um título de honra e por lá não era incomum verem-se outros colonos provenientes das mais diversas paragens do planeta, fossem eles amarelos do Extremo Oriente, ou aqueles genericamente reconhecidos por indianos, muitos no sentido mais lato do termo e que abrange gentes provenientes do Paquistão, Índia, do antigo Paquistão Oriental que ao tornar-se independente passou a ser conhecido por Bangla Desh, das Maurícias - as antigas Ilhas Mascarenhas dos séculos pós-descobertas - ou do Ceilão, não sendo invulgar alguns desses indianos terem como origem o Quénia, o Tanganica ou o rosário de antigas possessões da Coroa Britânica no Índico.

Éramos e considerávamos-nos simplesmente como luso-moçambicanos e assim foi até ao aproximar-se da primeira metade da década de setenta. 

As altas individualidades que Lisboa enviou a Lusaka para o encontro com Samora Machel e respectiva entourage, deveriam ter ido munidas com este catrapázio. Para além dos efusivos abraços e descaradamente paternalistas palmadinhas nas costas diante dos fotógrafos, de nada mais necessitavam para o cabal esclarecimento do que imperiosamente deveria ser feito, evitando-se em Moçambique o que aconteceu nas décadas anteriores em todo o continente africano. Em todo ele, sem excepção, do Magrebe ao Congo e Tanzânia. Simplesmente não estiveram à altura do momento. 

Servia este livro como aviso que ali não estava apenas uma fastidiosa lista de empresas de exploradores coloniais, mas sim a seiva vital de um país. Existiam milhões de vidas pendentes daquilo que este grosso volume encerrava e de toda esta fastidiosa lista de actividades dependiam para a sobrevivência, para a salvaguarda do ganha pão e das refeições garantidas, dos cuidados de saúde e da educação cada vez mais urgente num mundo em rápida transformação. Isto significava mercados cheios de produtos baratos fornecidos pelas machambas bem organizadas e produtivas, hospitais bem apetrechados com equipamento moderno e  pessoal competente, escolas, uma eficaz rede de saneamento básico, vacinação da população urbana e rural, defesa da vida selvagem, ou a permanência da indústria. 

Muito longe de ser um Mandela e muito distante de sequer ter penado aquilo que Mandela terá fisicamente ou psicologicamente passado, o Moisés da independência não foi alertado, não conseguiu ou quis entender o que significaria a deportação do pessoalmente odiado lastro humano colonial. Nisto e noutras excentricidades, está muito mais próximo de Idi Amin. Dizer isto é politicamente incorrecto? Talvez, mas neste caso não é nada que todos não tenham há muito interiorizado, talvez mesmo no politburo do partido dominante em Moçambique.

A impressionante e rápida saída de brancos, mestiços de vários cruzamentos, indianos, chineses e outros, como um raio fulminou num curtíssimo intervalo da história tudo aquilo que esta grande obra, precisamente o conteúdo das 1800 páginas deste livro, significava. Um país liquidado, esmagado em poucos meses e deixado à tremenda fome, incúria no campo da saúde e abandono económico, unicamente devido à incompetência e furor ideológico totalmente desadequado à realidade africana. Rapidamente passado a ruína comparativamente ao que até há pouco fora, tudo desapareceu como se um Apocalipse Moçambique tivesse sofrido sem culpa ou responsabilidade alguma. Mesmo os entusiastas iniciais, aqueles poucos que tentaram ficar para idealistamente construirem algo, fosse esse algo o homem novo ou a nova terra, também fugiram, não conseguiram enfrentar o visível fracasso no qual participaram. 

Aqui está uma boa parte da razão pela qual as notícias que de lá chegam nem sempre são aquelas que gostaríamos de ouvir.

Paciência, são estes afinal, os tais ventos da história. Há então que aceitar os factos consumados, mas nem por isso deixarmos de tentar entender o que se passou. É esta, a verdadeira História. 

publicado às 19:55

Na Dinamarca, perdão, em Moçambique

por Nuno Castelo-Branco, em 14.01.16

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A vergonhosa decisão dinamarquesa em confiscar bens a quem ao país chega como refugiado, não é inédita. O mesmo aconteceu noutras épocas e pelo menos por decisão de três outros governos. A primeira respeitará ao geralmente conhecido saque nazi aos judeus alemães e de todos os territórios que a Wehrmacht ocupou. A segunda, às jóias que o governo de Salazar decidiu manter em guarda no BNU/BdP, logo após a conquista do Estado da Índia por parte do exército de Nehru. Durou mais de meio século, essa pretensa guarda de bens que sem alguma dúvida pertenciam aos depositantes. Entretanto morreram muitos dos seus proprietários e descendentes directos, tendo sido há pouco procedida a devolução a familiares de terceira e quarta geração.

Vamos então ao terceiro caso. Governo? O português, dirigido então por Vasco Gonçalves. Ano? 1974 e 1975. Local? Antigo Ultramar. 

Assim que tomou posse após a demissão de Palma Carlos, logo fez chover sobre os territórios africanos diplomas e ordenações vexatórias, desde normas correspondentes às transferências de bens, às outras que incluiam emissões de rádio, programas educativos nas escolas, liceus e universidades locais. A mais absurda terá sido o confisco puro e simples das posses daqueles que seriam prosaicamente chamados de retornados a um país onde a maioria jamais tinha estado. Enfeitavam-se os regulamentos normativos com excitadas manifestações de benquerença para os futuros países que todos previam como inevitavelmente independentes a curtíssimo prazo, logo de forma nítida surgindo o jargão habitual da sabotagem económica como justificativo. Como a imaginação era escassa, recorreram aos manuais. 

O saque foi extensivo, embora paulatinamente tornando-se mais visível e descarado a partir do inverno local de 1974, os meses correspondentes a Agosto, Setembro e seguintes. A Coordenadora do MFA e o diligente ministro da Coordenação Interterritorial - um rápido ersatz do então disparatadamente extinto Ministério do Ultramar -, decidiu colocar de vigilância nos aeroportos Gago Coutinho (Lourenço Marques) e Sacadura Cabral (Beira) - idem quanto a fronteiras terrestres e marítimas -, soldados recentemente chegados da Metrópole, hipoteticamente comandados por oficiais bem escolhidos. Limitavam-se a desfraldadamente passear de G-3 assestada e de cigarro no canto da boca. Iam olhando com um ar vagamente feroz para aqueles que embarcavam para as vitalícias férias. Nos pontos de check-in havia uma pretendida revista minuciosa das bagagens, mas a desordem era evidente, uma expectável luso-desorganização que facilmente permitiu o logro de coortes de militares postados no terreno à cata de despojos destinados não se sabe bem a quem. Alguns deles dir-se-ia encabulados pelo triste e escabroso serviço a que estavam obrigados, talvez assim se explicando a falta de cuidado na organização dos espaços de revista que naquele caso, permitiu um episódio em que gostosamente participei, industriado pelo meu pai.


Chegámos ao aeroporto à tarde, pois o Boeing 707 partiria ao anoitecer e era necessário proceder às formalidades de embarque, entre as quais a caprichosa revista de bagagens. Num relance, o meu pai percebeu que seria relativamente fácil fazer passar as duas pequenas caixas com as jóias da minha mãe, pois o check-in de bilhetes e bagagens era feito numa única porta, após o que os já "retornados" poderiam livremente chegar-se ao varão que os separava de amigos e familiares que permaneciam do outro lado. No nosso caso, o "amigo e familiar" era, além da minha pessoa destinada à derradeira cena de teatro,  a minha minha avó Irlanda, a única que se deslocara ao Gago Coutinho, pois ao contrário de tios, tias, primos e primas, amigos e amigas, não estava nada convencida dos amanhãs que cantariam.


- Nuno, discretamente vais ficar do lado de cá do varão, com o saco das jóias e com o teu blusão a tapá-lo. Nós os quatro (ele, a mãe, o Miguel e a Ângela) faremos a revista e depois a tua mãe virá "despedir-se da família"  (um piscar do olho direito para encorajamento) e entregar-lhe-ás discretamente isto. Depois, esperas um pouco e vais até à porta de embarque para seres revistado.

 Dito e feito, esperei pacientemente junto do varão e a minha mãe foi "despedir-se de mim" num  momento em que o reboliço pela aproximação da hora de voo era ostensivo, mantendo os camaradas distraídos com quem já estava dentro do recinto. Lampeiramente me esgueirei até ao local onde entreguei a minha passagem e como aos quinze anos já tinha 1,76m, nem sequer me perguntaram se viajava acompanhado. Se excluir  uma daquelas pequenas malas tubulares fechadas a zip que a TAP de então oferecia a quem comprasse bilhetes, não levava coisa alguma. O deixa andar era de tal forma que nem sequer estranharam o facto de não possuir qualquer bagagem de porão. Devem ter achado normal partir sem uma muda de roupa e atendendo à distância de quatro décadas, hoje julgo que por ali não campeava muita esperteza, quanto mais inteligência.

Escusado será dizer que nos fartámos de rir pelo facílimo trote pregado aos iracundos e desleixados vigilantes.

Tal sucedeu no dia 30 de Agosto de 1974, por sinal a data de aniversário do meu irmão. Uma semana depois foi o 7 de Setembro e então, sim, subitamente desapareceu o relaxamento nas vistorias, as tais "véstorias" como se usa dizer por cá.

Procedeu-se à cuidadosa expoliação extensiva de quem para sempre partia, desta vez já com a colaboração dos guerrilheiros recentemente chegados a uma cidade que até então totalmente desconheciam. Ajudados pelos militares portugueses e pelas delegações governamentais de transição da então potência administrante do território, perpetraram todo o tipo de latrocínios, fossem eles nos recheios de casas, como quanto a jóias e especialmente, nas transferências de títulos - que subitamente deixaram de ter qualquer valor local - e dinheiro em Escudos de Moçambique que de rompante passaram a ser cambiados sob a arbitrária fórmula imposta pelo mercado negro oficial de 3 para 1, 4 para 1 ou 5 para 1, engrossando os privativos cabedais de numerosos oficiais enviados pelo MFA de Lisboa. Daí à simples impossibilidade de trocar dinheiro e obrigar os luso-moçambicanos a deixá-lo em depósito nos escritórios que mais tarde seriam absorvidos pelo Consulado ou Embaixada, foi apenas uma questão de tempo. Nunca esses montantes foram devolvidos, nem deles há notícia de paradeiro actual. Foi um confisco puro e simples.  

A verdadeira História foi mesmo assim, tão ou ainda mais vergonhosa como a que agora sucede na Dinamarca.

Portugal fez exactamente o mesmo aos seus próprios cidadãos. A questão a colocar é a seguinte: limpeza étnica feita, onde foi parar o saque?  

publicado às 07:00

Os asquerosos

por Nuno Castelo-Branco, em 01.03.15

... que ainda temos de suportar

publicado às 19:29

Visitas à mesquita

por Nuno Castelo-Branco, em 16.01.15

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Nuno, Ângela e Miguel, no fontanário do Jardim Vasco da Gama, em Lourenço Marques. Na cabeça, os cofiós bordados, oferecidos por amigos do Centro Aga Khan (1968)

 

Há trinta e cinco anos, o Xá Reza Pahlavi  para sempre abandonou o seu país. Durante muitos anos era uma presença constante nos noticiários, um peão essencial no ténue equilíbrio de poderes no Médio Oriente. Ainda hoje acusado de demasiado ocidentalismo, o Xá dos anos sessenta surgia como um dirigente que procurava a difícil síntese entre a milenar tradição persa, o legado muçulmano e as exigências impostas por um trabalhoso período reformista que guindou a Pérsia ao lugar cimeiro do concerto internacional. Para quem vivesse no Moçambique português, Reza Pahlavi era o imperturbável e discreto amigo que decidindo a partir dos seus gabinetes nos palácios de Niavaran ou Golestan, ignorava sanções impostas na ONU e as advertências de aliados contrariados pela presença portuguesa na África e na Ásia. Nos seus afazeres de funcionário da Sonap, várias vezes o meu pai visitou petroleiros iranianos que descarregavam na refinaria Sonarep da Matola, tornando-se estes num elo vital da sobrevivência económica da então província ultramarina de Moçambique. Se o Xá era um homem moderno, Farah Diba foi gabada como uma beldade da época Twiggy, um figurino da moda, tendo mesmo Lourenço Marques conhecido uma boutique Xabanu. A tricolor que ostentava o leão dourado, a bandeira do mais poderoso país muçulmano, era assim uma rotineira e amiga visitante do porto da então denominada Baía do Espírito Santo.

Na capital de Moçambique a presença maometana era importante, abundando gentes vindas do antigo Raj britânico, assim como naturais de famílias há muito islamizadas, oriundas da zona norte e centro de Moçambique e de toda a suavemente sinuosa costa que ia de Inhambane até à Quíloa, Mombaça ou Melinde do Ibn Majid. Lojas de rua espalhavam-se por toda a cidade e arredores, também pontilhando as estradas que conduziam ao interior do território, por vezes servindo como vitais pontos de abastecimento das populações nas pequenas vilas e cidadezinhas que como na Terra da Boa Gente, mostravam a forte presença dos seguidores de Maomé.

 

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 A velha mesquita da Rua Salazar, hoje muito alterada por um mastodôntico acrescento betonado

 

Sempre fascinado pelo Oriente, o meu pai tinha uma imensidão de amigos que eram então entre nós designados de maometanos. Estávamos ainda muito longe dos tempos em que o  termo muçulmano erroneamente pareceu querer dizer algo de diferente, logo evoluindo para o islamita que hoje conota um certo programa político perturbador das mentes e ameaçador da tranquilidade dos espíritos e de uma estabilidade internacional historicamente sempre efémera e entrecortada por longos períodos de conflito. Conhecendo-os a todos pelo nome próprio, entretinha-se com conversas acerca das novidades recentemente chegadas dos orientes, sem cuidar muito acerca da verdadeira proveniência dos artigos, fossem eles indianos, paquistaneses, cingaleses, de Zanzibar ou até das longínquas Java, Filipinas, China ou Japão. Aos poucos a nossa casa foi-se compondo com mesinhas de apoio, canapés e orelhudas cadeiras de descanso, esculpidas numa madeira escurecida onde abundavam motivos vegetalistas e ocasionalmente, uma cabeça de besta, fosse ela um leão, tigre ou aquilo que melhor imaginássemos. Muitas vezes almoçávamos em restaurantes indianos e em casa comíamos em louças chinesas. Nos dias especiais, saía do móvel inglês de vidrinhos o serviço de Satsuma pleno de dourados foscos e decorado com aparentemente severas figuras que passavam a vigiar-nos de rompante, logo que rapávamos a derradeira garfada.  Nos sofás e pelo chão espahavam-se almofadas com os tons das especiarias e sobre os móveis e mesas, vidros, jarras e caixas de metal com embutidos, lampadários. Nas zonas de acesso à casa, pendurávamos aquilo que então designávamos de tling-tlings, os espanta-espíritos anunciadores de boas brisas em dias de inclemente fornalha. À mesa, as iguarias indianas confundiam-nos quanto à origem religiosa de quem as tinha confeccionado, fossem eles hindus, fervorosos cristãos goeses - muitos deles recentemente chegados a Moçambique após os acontecimentos de 1961 - ou maometanos. Aos domingos, ao infalível arroz de amêijoas cozinhado pela minha mãe, somavam-se os bajis, chamuças de vários recheios, balchões, o sarapatel, a dulcíssima bebinka e os caris encomendados a senhoras da Avenida Afonso de Albuquerque, empanturrando os sempre imprevistos convidados que como era hábito na desaparecida Lourenço Marques, apareciam sem aviso. Sempre chegava alguém com mais uma pequena prenda, fosse ela uma caixinha de incenso, um belo corte para um sari, ou uma écharpe de berrantes riscas com que a minha mãe, aproveitando a fase hippie que afinal por aquelas paragens há muito existia e estava à venda na Baixa e nos mercados, logo acrescentava à sua colecção de pequenas vaidades. As senhoras iam passando por várias fases quanto às preferências da moda, buscando nas lojas dos indianos as pulseiras de vidros multicolores, alternando-as com outras de latão gravado ou então, noutra combinação convencionada, braceletes de madeira com incrustações de madrepérola, marfim ou metais onde a prata era sempre a primeira escolha. Eram extraordinárias, essas pratarias adorna braços. Finamente lavradas, exibiam turquesas, ágatas ou onix, fazendo subir a parada na demanda das bijutarias provenientes da zona do Golfo, também fornecedor de cintos, cinturões e malas de cabedal e camurça, franjadas e pródigas de aplicações metálicas.

Em muitos sábados acompanhei os meus pais naquele vasculhar de lojinhas do bazar da Av. da República - a D. Carlos I dos tempos dos meus bisavós e trisavós -, dali trazendo saquinhos com coloridas especiarias - ou vítreas pedrinhas - que invariavelmente iam enchendo alguns velhos frascos de pharmácia, relíquias de vidro grosso, onde a tampa com topo em forma de oito deitado, era por si uma pequena obra de arte. Esses frascos  decoravam prateleiras ou móveis de estilo, sendo bem cheios com camadas dessas especiarias que passavam a formar uma zebra multicolor alternando o amarelo açafrão com o azul cobalto, os vários vermelhos, laranjas, cores de terra e o verde pistacho. Nem a mesa baixa comprada na Pandora, de armação metálica e  tampo de mármore alaranjado, escapou a um desses vidros de drogas. Tal como surgira aos olhos do Gama e da sua espantada marinhagem, a Índia, fosse ela a hindu ou muçulmana  - ou até budista, tanto fazia -, era para todos nós capaz de produzir fosse o que fosse, numa mescla de refinamento pontilhado por aquilo que aos olhos dos europeus mais teimosos, parecia ser sumamente kitsch. Quantos Ganesh ou Shivas de vidro translúcido vi eu espalhados montra após montra, verdes, azuis, cor de rosa, ou simplesmente transparentes? Sem sequer imaginarmos a absurda invasão de talhas de plástico dourado do início do século XXI, aqueles santíssimos vidros eram objectos votivos considerados como muito pirosos e inapreciáveis. Para cúmulo, estavam por todo o lado como testemunhos mudos da existência de uma sociedade de muitos e variados seguidores de não menos diversos deuses ou crenças que ostensivamente pareciam contradizer os exaltados textos  que narravam a História de Portugal nos livros da primária. Eram uma decorativa, mas dispensável vulgaridade.

A minha loja preferida situava-se lá para as bandas do Alto Maé, talvez nas imediações da Pinheiro Chagas - ou seria na 24 de Julho? - e pertencia a mais um daqueles indianos do comércio. O termo indiano - monhé era um evitável termo depreciativo atirado aos reconhecidamente muçulmanos - englobava muita e diversa gente, por vezes estipulada feroz inimiga entre si, após a revoada das independências saídas da antiga Índia britânica. Uns eram paquistaneses ocidentais, enquanto outros eram paquistaneses orientais - o actual Bangla Desh -, entrando também na mesma conta os cingaleses e aqueles provenientes daquele termo geográfico politicamente transfigurado - à semelhança da Itália e da Alemanha da segunda metade do século XIX - em União Indiana.
Neste caso concreto, o homem era de Carachi e possuía um estabelecimento bem cuidado, todo forrado de madeiras e desordenadamente organizado de forma a provocar a aturada busca e revista por quem o  visitava. Sempre acompanhado por um macaquinho de estimação que ia espalhando cascas de amendoim loja fora, jamais lhe vi outro traje senão aquele próprio do seu país. Atrás do balcão-montra, existia uma porta que dava acesso ao armazém e talvez, à sua própria residência. Durante anos, sobre esse reservado acesso permaneceram em vigilância, três grandes fotografias envidraçadas e emolduradas em madeira pintada a purpurina ouro-velho. Ao centro e de pé, estava a rainha Isabel II em roupagens da coroação, uma foto colorida e já um tanto empastelada após quase duas décadas de reinado. À sua esquerda, o herói da independência paquistanesa, Muhammad Ali Jinnah, uma quase perfeita correspondência física em versão exótica com Oliveira Salazar, colocado à direita da soberana britânica. Duas fotografias a preto e branco, realçando a peça central colorida e abrilhantada pela exibição da cintilante Regalia guardada a sete chaves na Torre de Londres.

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Este homem cujo nome esqueci, tinha um inato bom gosto, sabendo o que as suas clientes procuravam. Os tecidos eram cuidadosamente escolhidos, a bijutaria parecia saída das vitrinas de uma Cartier subitamente convertida em fornecedora de hippies, irmanando pulseiras de vidro colorido com outras metálicas, de marfim, osso, entretecidas fibras de coco, colares, cintos de prata torcida remetendo-nos para o nosso monumental estilo Manuelino. 

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Enquanto ia respondendo ao meu pai sempre ansioso por encontrar mais uma cadeira indiana de balouço, uma mesa redonda de três pernas decoradas com cabeças de elefante ou  biombos para futuro restauro, ia languçando aquilo que as mulheres remexiam:

- Áne Marí, Áne Marí, tem sari novo lindo, sari chegou de Páquitã semana passada, bonito para calçon curte!

- Aaaaaaah, não sei, tenho pernas magras...

 

- Áne Marí tem pérne fine, tem pérne fine, más ande! Compra-compra, ser chibante. 

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Aquele "tem pérne fine más ande!" ficou para sempre, pois ao longo de décadas ouvi a minha mãe contar e recontar o episódio, principalmente por naquele preciso momento dos finais de sessenta, o mundo subitamente ter passado a interessar-se pelas "pérnes fines" e isto, até aos nossos dias. 

 

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Naquele outro plano da minha existência, os devotos amigos maometanos não faziam muito caso daquilo que um dia surgiriam como temíveis fatwas, fazendo então amontoar nas suas lojas ídolos das mais variadas origens, sabendo serem os portugueses ávidos compradores de gordos budas chineses ou aqueles outros oriundos do Sião, sempre tão esbeltos que pareciam entidades em tudo opostas às provenientes do Império do Meio. A estes somavam-se objectos decorativos Made in India, seguindo a já passada mas sempre bem aceite e exaustivamente copiada  Art Déco, organizando-se pelas salas autênticos zoos com canzoada pernalta, leões, tigres, elefantes, leopardos, equídeos, gatos e passarada fundida em latão, bronze ou num modesto ferro patinado a capricho. Negócio era negócio. Por vezes lá soava no nosso telefone, o 29292 da R. Dr. J. Serrão nº 40 r/c e do outro lado da linha, num inconfundível sotaque asiático anunciador de novidades, alguém perguntava: poder falar com Vítor? Claro que podia, era uma imperdível oportunidade para mais umas bisbilhotices abrindo caixas e remexendo stocks acabados de chegar da alfândega do porto. 

Por vezes, em tempo de férias ou após o horário de trabalho, o meu pai levava-me pela mão até à Rua Salazar, hoje crismada de Rua da Mesquita, situada entre a Av. da República e a R. Consiglieri Pedroso, bem perto da Praça Mac Mahon. Dos pés à cabeça vestido com roupa de algodão produzida em Macau, ali entrava livremente, deixando à porta os chinelos de borracha, aquilo que hoje designamos de havaianas, naquela época sem marcas a clamarem por surfistas ou bandeiras anunciando o país do samba. Em meios-dias tórridos, a sala de orações era fresca, proporcionando-me um imenso gozo espojar-me sobre os tapetes com arabescos. De barriga para o ar, ficava a admirar o grande lustre de cristal, aquilo que parecia uma interpretação orientalizante dos modelos expostos nos salões dourados por um Grand Siècle há muito passado mas ainda simbólico de uma Europa maior. 

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No final da década de sessenta, a expensas do Aga Khan ergueu-se o imponente centro ismaelita de Lourenço Marques. Orgulhosos por aquele grandioso testemunho da sua importância social e empresarial, os seguidores do príncipe Karim eram pródigos em convites de visita ao seu edifício, não fazendo destrinças religiosas e também assim confirmando aquilo que era normal na cidade. Nas salas de aula tínhamos colegas a quem jamais perguntávamos acerca da frequência ou não, de templo. Para nós, o João Carlos Leal Bento era o espanhol, pois a sua mãe era castelhana, logo católico. O Páris Zagrephos era o  grego presumivelmente frequentador do Ateneu na Av. Pinheiro Chagas e pelo B.I. tão português como o Abdul de Goa - ou seria de Carachi? -, o Cheng de Macau, ou o Matavele da zona de Gaza. Uns eram tal como eu, brancos de segunda, os tais Velhos Colonos que ostentavam esse título como se fosse um ancestral ducado concedido na época das descobertas, Outros, brancos de primeira, iam variando de sotaque em sotaque, recém-chegados da longínqua Metrópole, filhos de militares ou de casais que evitando as Franças do banlieus, julgavam para sempre eterna aquela África Oriental Portuguesa. 


Um dia, um telefonema feito a partir de um gabinete do Centro Aga Khan, para sempre mudou as nossas vidas. O amigo ismaelita convenceu o Vítor a levar a família para bem longe, pois aquilo que Lisboa prometia era apenas um arrazoado de miragens alija-responsabilidades:

- Vítor, contacta discretamente toda a tua família e os amigos de maior confiança que por sua vez, devem fazer o mesmo. Vão-se embora, muitos de nós fazemos o mesmo neste momento, estamos a empacotar. Não percam mais tempo, vai ser mau, muito mau.

Estávamos no início de Junho de 1974. Somando-se ao petróleo do Xá que desafiara os nossos comuns aliados e às cores e sabores oferecidos pela generosa costa oriental africana e pelas Índias, a então muito leal amizade dos maometanos evitou-nos o testemunhar de um imenso rol de indignidades, fossem elas protagonizadas pela nossa própria gente uniformizada ou à paisana, ou por aqueles que ébrios por uma vitória que lhes foi graciosamente outorgada de facto, para sempre alteraram aquilo que para nós era a ordem normal no nosso pequeno mundo. 

Mas será que estes islamitas de indesejável noticiário novo século, novos terrores, terão mesmo algo em comum com os nossos maometanos do outro tempo? 

publicado às 17:09

Moçambique, mais um desastre anunciado

por Nuno Castelo-Branco, em 11.01.15

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A somar a tantas outras catástrofes já previstas pelo decorrer dos acontecimentos em toda a África da década de sessenta, eis mais uma péssima notícia. O Sr. Dhlakama proclama-se presidente do centro e norte de Moçambique, podendo isto significar o reacender da guerra civil ou uma futura divisão do território.

As fronteiras de Moçambique foram delineadas após os acontecimentos consequentes da louca apresentação do Mapa Cor de Rosa em S. Bento. Não estivesse D. Carlos I no trono português e o resultado do Ultimatum poderia ter sido infinitamente pior. As chamadas Campanhas de Pacificação consolidariam então o princípio da efectiva ocupação territorial, nelas ganhando fama internacional homens como Mouzinho de Albuquerque, António Enes, Aires d'Ornelas, Paiva Manso, Galhardo, Caldas Xavier, entre muitos outros. Para as potências, passou a existir um Moçambique também denominado como África Oriental Portuguesa.

A nossa Monarquia deixou aos futuros assinantes de Lusaca um Moçambique íntegro, com fronteiras internacionalmente reconhecidas e até hoje intocadas. Com o que agora se anuncia, eis mais uma consequência da destruição do elemento aglutinador loucamente destruído em 1975. A independência era inevitável e há muito desejada pelos luso-moçambicanos, mas estes foram sem dúvida, os primeiros alvos a abater pela criminosa inépcia dos negociadores metropolitanos e pela discriminatória política daqueles a quem o poder lhes foi oferecido.

 

Aqui está o resultado. 

publicado às 19:36

Natal de 1969, um castelo branco

por Nuno Castelo-Branco, em 25.12.14

 

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Era o nosso último ano na casa da Avenida Princesa Patrícia. Os meus pais tinham arrendado outra não muito distante, sensivelmente mais espaçosa e próxima da zona das escolas preparatórias e dos liceus de Lourenço Marques. Acabada a quarta classe, a Escola Preparatória General Machado ficava lá para as bandas da 24 de Julho e a Rua Dr. J. Serrão possibilitava a ida e vinda a pé. 

Estávamos muito longe dos dias em que os miúdos se interessavam por pequenos envelopes propiciadores de reforços das colecções de jogos online e vivia-se numa época em que um presente dado pelos pais já era coisa de solene importância, com alguma sorte a ele se juntando outros oferecidos pelos avós, tios, primos e amigos, num pequeno simulacro da abundância destes nossos dias em que a bonecada recebida vai enchendo caixotes e caixotes bem depressa esquecidos nas arrecadações. 

 

Aquele Natal de 1969 prometia. Logo no início de Dezembro, tínhamos visto o nosso pai chegar com um enorme embrulho, uma caixa de cartão embrulhada num papel lustroso onde sorridentes Pais Natal, renas e trenós em paisagens escandinavas, anunciavam algo que apenas a nossa imaginação poderia conceber. Dia após dia rondámos aquela  caixa  proveniente da Modelândia, parecendo ela cada vez maior. Procurando descolar um bocadinho de papel para termos uma ideia do que ali vinha, foi com decepção que verificámos a impossibilidade do assalto antes de tempo. Decerto avisada pelo nosso sempre precavido pai, a lojista fizera a coisa a preceito e era impossível a nossa já programada cara de falsa surpresa na noite da consoada. 

Chegado o grande dia, esperámos ansiosamente pelo rápido cair da noite que como todos os anos, seria longa. Após uma refeição ligeira, lá nos encaminhámos para a Igreja de Santo António da Polana onde cantávamos no grupo coral. Não cantava grande coisa e a minha mãe costumava dizer que em vez de mais uma voz no coral, eu faria melhor figura num curral. Na noite de Natal, o Padre Arnaldo Taveira Araújo tornava-se mais exigente, esfusiante de alegria pela casa cheia. Após o alegadamente brigantino Adeste Fideles, a Missa do Galo culminava sempre  com o  exaltante Aleluia de Händel, por todos aguardado na certeza do entusiasmo dos miúdos que naquele oratório sabiam conseguir comover todos os que numa igreja da Polana a abarrotar, cumpriam os últimos rituais antes do regresso a casa para a grande refeição natalícia e abertura de prendas.

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Tínhamos três árvores. A minha era verde, pequena e com ramagens de papier mâché. Datava de 1934 e fora comprada pela minha avó para o primeiro Natal do nosso pai. Ainda existe, todos os anos é enfeitada de forma a disfarçar a constante perda de papel e coloco-a ao lado de outra, maior e muito mais recente. As gambiarras de lampiões brancos com janelas translúcidas e polvilhadas de pequenas notas de cor, já foram várias vezes desmontadas e regressam sempre à operacionalidade, aproveitando-se novas fitas de luzinhas disponíveis em qualquer loja chinesa. A árvore do Miguel era alta, prateada e as suas gambiarras consistiam em pequenos cachos de uvas vermelhas e transparentes, sob as quais brilhavam as lâmpadas cujo novo comando por mim há uns anos adaptado, permite os pisca-pisca que passaram a adornar a minha árvore grande. A da Ângela, de tamanho médio, era branca e a iluminação consistia - também ainda a conservo - por grandes bolas multicolores, dentro das quais as gambiarras vão alternadamente mostrando o azul, o verde, o amarelo, o rosa e o lilás. Cada um tinha a sua árvore, mais um exotismo a juntar a uma consoada de canícula austral, onde dificilmente a tradição poderia fazer vingar bacalhoadas com todos. 

 

Finalmente chegara a hora e aquele cartãozinho indicando Nuno e Miguel como os destinatários do presente, foi removido do canto da caixa. Numa espécie de propositada fita, mostrámos algum vagar no cuidadoso desembrulhar, embora a ânsia de dias fosse há muito evidente para os nossos pais e avós. Sabiam eles estarmos em plena representação de um ilusório comedimento, logo desfeito quando boquiabertos deparámos com um lindo castelo Made in England que em três tempos montámos. É mesmo este que as imagens mostram. Ao fim de poucos dias foi nacionalizado e na porta de armas surgiu o escudo português, ocultando algo que há muito esqueci. Foi durante alguns anos o centro das nossas brincadeiras e até há bem pouco tempo existiram cavaleiros cruzados, uma figura de Ricardo Coração de Leão, peões e cavaleiros mouros, gente de cota de malha e de armadura. Os meus sobrinhos encarregaram-se das mutilações e degolas e se sobreviveram ao vendaval de 1974 e a mais uns trinta e poucos anos de mudanças de casa e de vida, não resistiram a esta época em que os brinquedos são algo facilmente substituível.

 

Nesta noite de 25 de Dezembro de 2014, aqui fica o precioso castelo branco de 1969. Praticamente intacto, apenas necessita da minha paciência para em casa do João Diogo, do Nuno Miguel e da Filipa, vasculhar os caixotes onde estará esquecida a ponte que lhe dá acesso. Foram avisados, um dia destes lá irei em demanda. 

publicado às 21:23

Tenham santa paciência, não esquecemos nem esqueceremos

por Nuno Castelo-Branco, em 03.09.14

 

O meu "one way ticket" de Lourenço Marques-Lisboa, 30 de Agosto de 1974

 

"Muitos responsáveis políticos portugueses têm dito que a descolonização foi a que era possível. Acho que não é assim. Considero que a descolonização foi uma tragédia. Foi uma tragédia a forma como a descolonização acabou por se realizar.Tal como a colonização o foi. Não assumo responsabilidade do que hoje lá se vive. Isso tem a ver com os movimentos e os seus líderes. Assumo a responsabilidade das negociações para a descolonização não terem sido conduzidas de modo a evitar situações que acabaram por descambar naquilo que hoje existe nos ex-territórios portugueses africanos."

Melo Antunes, entrevista à RTP, Julho de 1999

 

 

"De facto, a descolonização foi feita na defesa dos interesses políticos e estratégicos da União Soviética, de seus aliados e dos seus movimentos no terreno. Foi contra os interesses de Portugal, dos portugueses residentes nos territórios sob a nossa administração e contra os interesses das suas populações"

Manuel Monge, oficial do MFA

"Prova-o a inequívoca intenção das forças internacionais no pseudo-revolucionário processo de Abril, desencadeado com o objectivo de nos impor o vergonhoso abandono dos territórios africanos, onde, além de termos causado o caos e a destruição, fomos co-responsáveis pela morte de milhares de pessoas. E ainda há quem despudoradamente afirme que a revolução de Abril foi uma revolução sem sangue"

 

Sigfredo Costa Campos, coronel pára-quedista

 

"O que hoje se entende por independência imediata seria a mais gigante negação dos ideais democráticos universalmente aceites e nos quais se inspirou o MFA."

Soares de Melo no seu discurso de posse como Governador-Geral de Moçambique, 11 de Junho de 1974

 

"A Frelimo estava consciente de que o seu poder residia essencialmente, não nas suas estruturas, mas na traição da esquerda militar portuguesa, disposta a impô-la ao povo moçambicano, proporcionando-lhe a organização político-militar que nunca conseguiria alcançar antes do 25 de Abril."

António de Spínola in País sem Rumo

 

Amanhã, 4 de Setembro, pelas 17.30H, no Palácio da Independência - SHIP (Rossio), apresentação do livro de Clotilde Mesquitela, 7 de Setembro: Moçambique - memórias de uma revolução

publicado às 12:51

Os canhões do SMS Königsberg

por Nuno Castelo-Branco, em 04.08.14

 

Uma das 10 peças de 150mm retiradas do SMS Königsberg

 

 

O jornalista Manuel Carvalho é o autor de alguns textos muito interessantes sobre a participação portuguesa na I Guerra Mundial, dando especial atenção à frente de Moçambique. No texto ontem publicado, menciona um dos temíveis canhões do cruzador ligeiro SMS Königsberg que tantas preocupações causou aos militares portugueses e ingleses. 

"Para o que restava da Coluna de Masasi, porém, não havia escolha possível. Há oito dias que estava isolada, com a primeira linha de trincheiras alemãs a apenas 200 metros do posto avançado. Pelo lado do ligeiro declive que fica em frente ao forte, a fuga teria de romper essas linhas, uma missão irrealizável por uma tropa desmoralizada e faminta. Restava a descida da escarpa íngreme voltada para o sul, a primeira escada de um caminho que levaria até à selva e, com sorte, ao Rovuma. Os sitiantes, que faziam parte dos destacamentos Heinrichs, Sprockhooff e Rothe seriam uns 500, cerca de metade da força portuguesa, e tinham deixado os rijos combates no Norte contra os britânicos e sul-africanos para acabar com as veleidades portuguesas. Mas podiam ser abastecidos. E por volta do dia 27 soube-se que tinham instalado a cinco quilómetros o temível canhão do Konigsberg, um couraçado afundado em Julho de 1915 em Dar-es-Salam, após cinco horas de bombardeamento inglês, e entretanto arrastado pelo mato por milhares de carregadores indígenas, capaz de efectuar disparos até 13 km de distância."

 

Nota: o autor designa o SMS Königsberg como sendo um couraçado, mas a realidade era outra, pois este navio era um cruzador ligeiro  da armada imperial.

publicado às 14:00

Humilhação nacional

por Nuno Castelo-Branco, em 28.07.14

Em Lourenço Marques, durante a I Guerra Mundial, o meu bisavô (2ª fila, o quarto a contar da direita para a esquerda, com bigodes retorcidos "à Kaiser") acompanhado por militares portugueses e britânicos  

 

Querem uma verdadeira e bem mais dolorosa que o recente negócio do ingresso de uma pequena parte do Golfo da Guiné na CPLP? Não se trata de qualquer parlapatonice a comentar na TV a propósito de quebra de protocolo, ou de  amuos salva-faces.

 

Aqui está a esmagadora humilhação, podendo ser acrescentada a outras que nos seriam impostas sessenta anos depois. 

publicado às 18:26

No Público

por Nuno Castelo-Branco, em 20.04.14

 

Vale a pena a leitura deste texto do Público. Aqui fica na íntegra, pois o jornal adquiriu o hábito de limitar o acesso online. Razões económicas, é o que se diz.

Além de alguns testemunhos que confirmam tudo aquilo que há muito sabemos - os tristes episódios protagonizados por Almeida Santos, por exemplo -, finalmente assumem-se decisões que hoje seriam consideradas como deliberados crimes: a deslocação e dispersão forçada de populações, o suprimir da cidadania nacional a uma enorme quantidade de pessoas que até ao momento dela legalmente auferiam - imaginem o que para nós, de 4ª geração, significou a "prova" de sermos portugueses! -, a entrega forçada de bens - o caso dos diamantes de particulares - e claro está, o escabroso abandono de metade do exército português que combateu em África. As Forças Armadas colaboraram nesta indelével nódoa no seu historial e já é tempo de uma pública reparação. "Eram soldados pretos" e os novos senhores do poder acharam por bem deixá-los à vingança que se confirmou na execução de muitos milhares. 
São apenas alguns aspectos a considerar entre muitos outros.

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"Chegaram em barcos e aviões num movimento que durou poucos meses. Ficaram conhecidos como os “retornados”. É meio milhão de pessoas que ajudaram a construir a democracia e o Estado social e cuja integração na metrópole é uma história de sucesso que a Revista 2 agora conta.

Meio milhão de portugueses foram integrados na sociedade portuguesa durante o período que vai do Verão de 1974 ao Verão de 1975, fruto da descolonização imposta pelo fim da ditadura do Estado Novo. É um movimento de integração populacional único que trouxe uma massa humana qualificada que contribuiu de forma decisiva para a construção do Estado democrático. Para a história ficaram conhecidos como os “retornados”. Na realidade, são a última geração de portugueses que viveram e cresceram na África colonial portuguesa.

“É um dos momentos mais extraordinários da história portuguesa do século passado, a capacidade de integrar 500 mil pessoas que chegam em poucos meses”, defende o empresário Alexandre Relvas, nascido em Luanda, para quem o movimento de integração dos retornados “correu tão bem que não é suficientemente valorizado, a sociedade portuguesa não valoriza essa capacidade enorme que teve”. Também o sociólogo Rui Pena Pires, nascido no Huambo (antiga Nova Lisboa), e autor da única grande investigação sobre o tema (Migrações e Integração. Teoria e Aplicações à Sociedade Portuguesa, Celta, 2003), sublinha que houve uma “boa integração”, uma vez que “não há marcas que se percebam”.

O sucesso de integração é identificado por Alexandre Relvas com a “extraordinária generosidade” da sociedade portuguesa e com o papel igualmente “extraordinário” que o Estado então desempenhou. Mas também a capacidade de iniciativa e de luta do conjunto de portugueses que regressaram e que trouxeram o conhecimento e a mais-valia de serem os últimos colonos portugueses em África.

“Um dos aspectos que eu valorizo fortemente é ter nascido em África, ser um dos últimos filhos do Império português e ter uma consciência forte de que isso tem consequências, que implica responsabilidades na forma como olho para o que foram os 500 anos de presença de Portugal em África”, assume Alexandre Relvas, frisando: “Somos os últimos portugueses do Império. A nossa memória é a última memória que existe do Império em África.”
Não questionando a justeza da descolonização, o empresário de espectáculo e de comunicação social Luís Montez, nascido em Luanda, sustenta que a descolonização e o regresso dos portugueses à metrópole foi um processo “duro e não foi muito justo”. Concretizando sobre Angola, considera que a descolonização devia ter sido feita “para lá ficar melhor, mas lá ficou em guerra”. Não esquecendo que “a história é o que é”, conclui: “Acho bem a independência, mas as coisas deviam ter sido feitas com mais método.”

Protagonista do poder do Estado na descolonização, António de Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial do I ao IV Governos Provisórios, de 16 de Maio de 1974 a 8 de Agosto de 1975, partilha da visão de sucesso em relação à forma como foram integrados na metrópole os portugueses vindos do então Ultramar, mas reconhece que “implicou muito sofrimento”. E sublinha que “a dificuldade criada pelos 500 mil portugueses foi um problema tão complicado para os governos dessa altura que diria que, tendo em conta o grau dessa dificuldade, o resultado final não esteve longe de ser o sucesso possível”. Mas reconhece que “é claro que foi um drama de todo o tamanho”, pois “as pessoas perderam tudo o que lá tinham, alguns eram bastante abastados”.

Sendo também um retornado de Moçambique, o ex-governante adverte que, ao ser ministro responsável pela tutela do processo e ao “não ter podido garantir” aos retornados “o direito ao que lá tinham”, tal como “nenhum outro Estado colonial garantiu”, ele mesmo tomou “a atitude de não procurar salvar nada” do que de seu deixou em Moçambique.

A excepcionalidade do sucesso da integração é um facto que tem na sua origem uma multiplicidade de causas, algumas das quais fruto dos portugueses da metrópole, outros dos próprios retornados, afirma Pena Pires, sublinhando ainda que esse sucesso foi orientado e construído pelo Estado. Foi decisiva a atitude do Governo para a assimilação daquela que é a maior deslocação de populações na Europa no século XX. “Mesmo no pós-II Guerra Mundial, o repatriamento é de 2% a 3%, nenhum foi percentualmente tão grande”, lembra Pena Pires, exemplificando que “o Reino Unido tinha um Império maior e teve 500 mil também, sendo que a maioria foi para os Estados Unidos”, enquanto “em Portugal, poucos foram para o Brasil e os que foram, na sua maioria, fazem-no com carácter transitório, para depois virem para cá”.

Fazendo a comparação com “o caso mais parecido”, que é, nos anos 60 do século XX, o da integração dos pieds-noirs, os colonos franceses que regressaram a França após a descolonização da Argélia e outras colónias francófonas, sob o Governo de De Gaulle, Pena Pires salienta que há diferenças fulcrais: “A sociedade francesa estava estabilizada, por isso, surgem sindicatos e o movimento pied-noir.”

Ora foi a noção de que os pieds-noirs eram em si um movimento de segregação que se prolongou e dificultou a assimilação que em Portugal houve cuidado para não repetir erros. “O comissário para os Desalojados pôs como condição ir a França ver o processo dos pieds-noirs” e os responsáveis com quem se encontrou “aconselharam a dispersão e assumiram que um erro francês tinha sido a concentração em Marselha” das populações coloniais vindas da Argélia, refere Pena Pires.

Outra decisão que teve como referência os pieds-noirs foi a questão das indemnizações. Em Portugal foram poucos os “tinhas”, ou seja, aqueles que lamentavam o que tinham perdido (recorrendo à expressão “eu tinha”) — “eram minoritários e pejorativamente designados” pelos próprios retornados. “Em França, as indemnizações são centrais, cá não se falou nisso” — uma atitude do Estado que “foi premeditada e inteligente, porque enquanto as pessoas estiverem direccionadas para o que perderam ficam ligadas a isso e não se identificam com o resto”, afirma o sociólogo.

Houve assim uma política de integração dirigida pelo Governo que passou por medidas legislativas. Pena Pires refere que “Almeida Santos fez as leis que deram ao retornado um estatuto legal”. À cabeça refere a lei da nacionalidade, que anteriormente e de acordo com as concepções do Estado Novo previa que “todos os nascidos em solo português eram portugueses”. A decisão de Almeida Santos é a de fechar o acesso à condição de português. Para o conseguir, retira o direito à “nacionalidade portuguesa a muitos dos nascidos nas colónias antes da independência, se não tivessem ascendentes até à segunda geração no continente. É isso que distingue os retornados dos imigrantes que vieram então e depois”.

Paula Teixeira da Cruz, nascida em Luanda, critica a opção restritiva da lei da nacionalidade. “Deveria haver liberdade de opção, não gosto de restrições de liberdade”, diz a actual ministra da Justiça, que adverte: “Ainda ontem [entrevista feita a 26 de Fevereiro] resolvi questões relacionadas com a nacionalidade de uma senhora, e há muitas por resolver.” Não se revendo no argumento de que haveria mais de um milhão de pessoas para integrar, Paula Teixeira da Cruz afirma que “também se dizia que era impossível absorver 500 mil”. E lembra que muitos habitantes do Império colonial de origem africana vieram para Portugal continental sem verem reconhecido o seu direito a serem portugueses: “Houve pessoas que ficaram prejudicadas. Havia essa responsabilidade moral. Quando Portugal colonizou, não perguntou se podia entrar.”
Almeida Santos assume que a decisão foi deliberada. “Era tudo português. Mário Soares e Vasco Gonçalves pediram-me uma lei generosa. Respondi: ‘Não faço.’” E argumenta: “Só tinha nacionalidade quem pelo menos era bisneto de português pelo nascimento. Senão o país ia ao fundo.”

Tomou como referência o caso inglês. “A lei da nacionalidade inglesa [quando da independência da Índia em 1947] foi generosa de mais e Londres tornou-se a capital mais indiana”, o que fez com que a lei fosse revogada pouco depois. A estratégia em Portugal foi, segundo o seu autor, a de dar nacionalidade “só a alguns e evitar que viessem todos”, pois “metade do Exército, por exemplo, era africano, e esses soldados queriam ficar com a identidade portuguesa para não serem perseguidos por terem sido do Exército português”. Os que vieram e não conseguiram provar que tinham ascendência na metrópole até à segunda geração ficaram, assim, como imigrantes.

O sucesso da integração é, segundo o antigo ministro, potenciado pela rapidez com que teve de ser feito. Uma rapidez que foi motivada pela descolonização negociada pelo Governo português com os movimentos de libertação das então colónias, e mediante a dificuldade de garantir novas incorporação de novos militares.

É essa rapidez em sair de África que é ainda hoje questionada. Alexandre Relvas afirma mesmo que “sem pensar em pôr em causa a independência” dos novos Países de Língua Oficial Portuguesa, o que mais questiona na descolonização “é que ela devia ter sido tratada de outra forma política, não se pensou na história de 500 anos”. E sublinha: “Não me vejo circunstancialmente lá, os meus avós foram para lá, os meus pais nasceram lá. As negociações deviam ter tido essa noção histórica. As Forças Armadas, com enorme responsabilidade, não estiveram à altura. Foi a despachar o mais rapidamente possível.”

Almeida Santos procura explicar os motivos da urgência em descolonizar. “Sempre compreendi as críticas fortes à concreta descolonização conseguida, mas quem faz essas críticas nem sempre teve conhecimento dos factores que dificultaram e sujeitaram a uma enorme pressão temporal a necessidade de descolonizar depressa.”

E sublinha que “a guerra tinha durado dez anos em três frentes. Morreu muita gente e muita também ficou estropiada. Isso imprimiu uma urgência à necessidade de fazer a paz”. Até porque “o Exército português, que nunca compreendeu muito bem as causas daquela guerra, a partir do 25 de Abril passou a defender e a pressionar a urgência da paz”. Para concluir: “Daí que sempre tenho compreendido as críticas fortes à descolonização, incluindo à minha participação nela, mas nunca essas críticas me criaram um problema de consciência.”

Para muitos que fizeram parte da descolonização, foi um processo feito à pressa e de forma leviana. Mas também reconhecem que foi, de facto, uma história de sucesso e um processo único.

Muito desse sucesso deveu-se à forma como foi feita a monotorização pelo Estado. Uma das principais ferramentas foi a integração de 45 mil funcionários públicos coloniais na administração do Estado do Portugal democrático, através do “quadro geral e adidos”.

Mas também houve por vezes “soluções surpreendentes” e pouco institucionais. Refere Pena Pires que os portugueses “só podiam trazer 15 contos”, pelo que, em Angola, “muitos compraram diamantes e trouxeram”. A certa altura, “Lisboa estava em risco de ser considerada um centro de venda clandestina de diamantes, e Almeida Santos, por decreto, deu dois meses para os diamantes serem entregues na Sociedade Portuguesa de Diamantes”.

Almeida Santos reconhece que a gestão governativa do processo de descolonização e de retorno dos portugueses foi feita de uma forma que potenciasse a integração e beneficiasse o desenvolvimento económico de Portugal. Explica, por exemplo, que a decisão de colocar os retornados que não tinham família nem habitação em hotéis teve que ver com a dinamização económica: “Nessa altura, os hotéis estavam vazios, o turismo paralisou com a revolução. Aproveitei os hotéis e pensões para alojar as pessoas.”

A monitorização foi feita pelo então criado órgão de supervisão, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN). “Criámos um organismo destinado a apoiar economicamente os retornados e esse apoio, que não foi tão significativo como desejávamos, não deixou de ter algum significado”, diz Almeida Santos. O antigo ministro sublinha que, “de um modo geral, os retornados regressaram com uma experiência económica talvez superior à média dos portugueses do continente, de tal maneira que a partir de certo momento foram tantas as novas unidades empresariais, algumas delas na área do comércio, da agricultura e da pecuária e da hospedagem, que passou a haver produção a mais e consumo a menos para algumas espécies pecuárias, como o peru”.
Houve também medidas de discriminação positiva, como foi o crédito conhecido pelo nome da comissão que o geria, o CIFRE, “um crédito especial para retornados, que atingiu 18 milhões de contos” e que provinha de “doações internacionais do Governo sueco”. Um crédito que apesar de tudo não favorecia especialmente os beneficiários, já que tinham de apresentar projectos sólidos e viáveis, pois “os projectos eram aprovados pelos bancos privados através dos quais o crédito era distribuído”.

Outra preocupação que é identificável no comportamento do Governo de então é a de que as medidas contribuíssem para não criar irritação nas populações metropolitanas. “Foi pequena a reacção, porque a ajuda do Estado foi pouca e todos tinham um retornado na família”, explica Pena Pires. Por seu lado, Almeida Santos salienta que “o povo português do continente foi heróico na atitude com que se solidarizou com os familiares ou simples conhecidos regressados das ex-colónias praticamente de mãos vazias.”

O que é facto é que há um contraste entre o que é a memória do sofrimento pessoal e o reconhecimento à distância histórica do sucesso global da integração. O basquetebolista Carlos Lisboa, nascido em 1958, na Cidade da Praia, em Cabo Verde, e que, em 1961, foi para Moçambique, lembra que “a palavra retornado era, na altura, demasiado agressiva”, e sublinha que “houve famílias que passaram maus bocados, principalmente as que vieram de Angola a fugir à guerra”, além de que “havia famílias que tinham mais dificuldades porque não tinham ligações profissionais a entidades estatais”.
Por muito que seja o sucesso global da integração dos retornados, de acordo com os entrevistados neste trabalho e de acordo com o estudo académico de Pena Pires, o lado negativo do processo de descolonização e o que implicou na ruptura da vida de meio milhão de pessoas é lembrado pelos que a viveram. A cineasta Margarida Cardoso, filha do oficial da Força Aérea Adelino Cardoso, que em 1965 foi colocado em Moçambique, sublinha que a descolonização representou “uma revolução e que houve pessoas que deixaram a sua vida”. Estas “criaram um movimento bom na sociedade para Portugal, conseguiram superar dificuldades e fizeram negócios, reconstruíram a vida”, frisa, mas adverte que “isso não faz esquecer que as pessoas deixaram lá a sua vida de uma forma injusta. Para Portugal, foi bom mas à custa de muito sofrimento das pessoas”.

Margarida Cardoso conclui sobre o lado mais dramático e pessoal da descolonização: “Não sou nostálgica, mas o empurrar as coisas, ver as nossas mobílias a ir para os barcos, marca. Pensaram que iam ter um lugar na sociedade, que não tiveram. A História é assim, é má e injusta. Há um trauma interno que é hereditário, que passa de pais para filhos. É uma mágoa que não passa, que não está resolvida.”

Uma experiência traumática que em muitos casos deixou marcas para a vida. “Leva a que muitos pensem que isto não é a terra deles, há um desprendimento, ainda que com percepções diversas. Eu, emocionalmente, continuo a ter uma coisa difusa, não era de lá, nem sou daqui”, confessa a cineasta.

O sentimento de não pertença é partilhado igualmente pelo escritor Valter Hugo Mãe, nascido em Saurimo (antiga Henrique de Carvalho), na Lunda Sul, no Norte de Angola. “Sinceramente, genuinamente, tenho dificuldade em lidar com os que desprezam a magnificência de África, mas também com aqueles que dizem a palavra África e choram e têm associações e objectos. Estou entre as duas coisas. Tenho dificuldade em dizer que não sou angolano, mas não posso falsear quem sou, não posso de repente ser mais angolano do que sou”, reconhece.

O escritor não hesita mesmo em assumir como a sua condição de retornado foi pessoalmente traumática. O pai foi um antigo militar que ficou em Angola como funcionário do Banco Nacional Ultramarino. Estava de licença, em Lisboa, quando se deu o 25 de Abril. “Ficámos cá, perdemos todas as coisas, a relação saudosista é feita pelos meus pais de forma magoada.” E explica: “Cresci com a percepção de que era nascido em África, mas nada em nossa casa contava aquela história. Percebi que era retornado com o preconceito em relação a mim. Por exemplo, uma empregada na escola primária dizia que os meus pais tinham vindo ocupar empregos e dava-me menos leite. De princípio, pensei que fosse eu um miúdo esquisito. Ela dizia que as mulheres em Angola tinham os filhos como as galinhas, punham ovos. E chamavam-me preto. Conscientemente, não tinha visto uma pessoa africana. Quando tinha oito anos, um miúdo disse-me que a tia tinha vindo de Angola e que o filho era escuro. Eu perguntei à minha mãe se ia escurecer, porque se escurecesse podia ser melhor.”
Esta discriminação em relação aos retornados é salientada por Paula Teixeira da Cruz. Embora garanta não ter tido “nenhuma dificuldade de integração”, pois a família em Luanda “periodicamente discutia o regresso” — que foi preparado previamente pelo pai”, permitindo que a sua família não passasse “por um processo de reconstrução material” —, a ministra assume que viveu “uma reconstrução emocional muito difícil”.

E afirma que acompanhou “muitos” processos complicados de sofrimento quando fez voluntariado, no Campo do Inatel, na Costa de Caparica, um dos campos que acolheu retornados. “Houve pessoas em campos, houve pessoas que foram para o interior e desenvolveram projectos, não podemos esquecer o sofrimento de cada um, foi um mudar completo de vida, um sofrimento cultural, um sofrimento de perda, foi uma experiência emocionalmente traumática.” A que se somou ainda “um anátema, que era o retornado que, por natureza, tinha de ser fascista”.

O biólogo e especialista internacional em morcegos Jorge Palmeirim nasceu na Guiné e viveu com a família em Moçambique e em Angola. Em 1974 veio para se instalar com a família, num total de sete pessoas, numa tenda de campismo gigante num terreno no Carrasqueiro, em Sesimbra, que era de uma avó. Também ele recorda que “havia uma tensão muito grande entre retornados e os portugueses” da metrópole e “havia a sensação de ter a vida desmoronada”. Este cientista sustenta mesmo que se mostrou a “face de uma esquerda cega, as pessoas pensavam que os retornados eram coloniais e fascistas”, enquanto “os retornados viam a sociedade portuguesa como responsável pelo desmoronamento das suas vidas”. Exemplificando: “Eu, nessa altura, andava com um emblema que dizia Angola. Agradava-me irritar as pessoas, era uma afirmação da minha identidade.”
Jorge Palmerim defende que “a maior parte dos retornados, na primeira fase, se deu mal, mas que depois se integraram”. E também ele salienta que “Portugal tem uma capacidade de integração fantástica, ao contrário dos pieds-noirs em França que levaram décadas a adaptar-se”. Em Portugal, sublinha, “três ou quatro anos depois, os retornados tinham conseguido integrar-se, o que é quase um milagre, integrou-se meio milhão de pessoas, também porque essas pessoas foram capazes de construir as suas vidas, abriram lojas, fizeram negócios, foram para as suas terras”.

O jornalista Emídio Rangel, nascido em Lobango (antiga Sá da Bandeira), em Angola, afirma que “a integração é uma história de sucesso”, porque, por exemplo em Angola, havia “uma aprendizagem em que as pessoas que tivessem capacidade se evidenciavam, conseguiam ter sucesso”. Por outro lado, salienta que com a revolução houve “uma paralisação da actividade económica” na metrópole que “beneficiou com a chegada de elementos que na região A ou na região B se propunham fazer iniciativas com sucesso”. Essa atitude “criou um clima que ajudou o país a desenvolver-se”, afirma, recordando que essa realidade foi divulgada, nos anos 1980, pelo “trabalho jornalístico do Fernando Dacosta n’O Jornal, que mostrou como as regiões se foram modificando por acção dos retornados”.

A integração dos retornados “teve um impacto muito grande no interior, que estava paralisado”, diz Pena Pires, mas ela foi potenciada pelo contexto revolucionário: “Eles mudarem para um país em mudança, o que facilitou a integração.” Há então um espírito de recomeço que Paula Teixeira da Cruz sintetiza ao dizer: “Importa que para quase todos era preciso começar de novo, o ter de começar de novo obriga a ter de inventar um novo espaço de intervenção. Lembro-me de ver nascer gelatarias abertas por retornados pelo país. Foi um movimento que renovou o tecido técnico e económico.”

Um dos exemplos desse espírito de iniciativa é a vivência da família de Tomaz Morais, presidente da Federação de Râguebi, seleccionador e treinador nacional de 2001 a 2010, campeão nacional e ibérico, nascido no Huambo (antiga Nova Lisboa). “Foi tudo muito rápido. O meu pai tinha uma posição forte na Fina, a empresa dos petróleos, e ele não podia sair de África. Nós estávamos no Lobito. Em 1975, a guerra pressiona e o meu pai começou a ser perseguido. Fugimos de um dia para o outro do Lobito para Luanda de traineira”, lembra, prosseguindo: “O meu pai foi à Bélgica, mas não conseguiu manter a situação na Fina, pois não estava disponível para voltar a Angola. Achou ofensiva essa exigência e deixou a Fina. Tentou o Brasil, não achou acolhedor. Veio para Portugal e com o meu tio Eduardo Salvação Barreto, que é pintor, abriu um take-away em 1976. O negócio envolveu a família. Todos tínhamos uma tarefa. Eu tinha seis anos e andava na rua a fazer recados. Era um projecto de sobrevivência.”

Muitas das pessoas que vieram contaram com a rede familiar de apoios ou com a solidariedade da sociedade, para além do Estado. “A capacidade extraordinária é do cidadão anónimo, como actualmente. É o avô, é o irmão, é o pai, é o tio, que dá uma mão, que dá um apoio financeiro, que ajuda a encontrar casa, que ajuda durante um período, e isso foi extraordinariamente marcante nesse tempo. E é tão extraordinário o que se passou que nem nós valorizamos, é como se fosse normal, é normal neste país ser-se solidário”, defende Alexandre Relvas.
E insiste: “Há uma coisa notável, a capacidade deste país de evoluir em termos sociais com a brutalidade com que é confrontado. A resposta que as pessoas dão ainda hoje ao desemprego, tal como na altura a forma como é assimilado meio milhão de portugueses, a capacidade de organizar as pontes aéreas, de instalar as pessoas em hotéis, que é uma capacidade do Estado, mas não só do Estado.”

É esse carácter de proximidade familiar e de solidariedade que é uma das razões do sucesso da integração dos retornados. Do meio milhar de portugueses que veio, “metade ficou na região que equivale hoje à Área Metropolitana de Lisboa”, e concentraram-se também bastante no Nordeste transmontano, explica Pena Pires. Apesar desta concentração tendencial, a “integração portuguesa é pulverizada”, porque a colonização tinha sido feita de “emigração recente” e assim “a maioria dos retornados vai para concelhos onde nasceram ou onde nasceram os pais ou os avós. Só os alentejanos não vão para a terra de origem e vão para Setúbal, que é para onde no século XX emigram os alentejanos”.

Outro factor decisivo foi a alta qualificação dos retornados. “No início da democratização, os retornados estavam em desvantagem quanto ao património, mas em vantagem nas qualificações”, afirma Pena Pires. “A ideia de que agora, pela primeira vez, há emigração muito qualificada não é verdade, as colónias eram o destino da emigração mais qualificada. Não era preciso mão-de-obra barata, havia isso lá, havia o colonialismo, por isso a população branca nas colónias era mais qualificada percentualmente do que na metrópole”, sublinha este sociólogo.

Do estudo que efectuou concluiu que, segundo os dados do Censos de 1981, “cerca um terço dos adultos com mais de 30 anos eram analfabetos”. No total da população de Portugal, os analfabetos eram 28,3%, enquanto 35,4% tinham a primária. Já os licenciados atingem 11% entre os retornados, mas apenas havia 2,3% de licenciados na população de origem metropolitana. Esta alta qualificação, em conjunto com a “convulsão política”, facilita que as pessoas que chegam aproveitem o facto de não haver “hierarquias estabilizadas” para ascenderem e se afirmarem socialmente.

Por outro lado, é esta população altamente qualificada, que está disponível e desejosa de se integrar, de encontrar o seu novo espaço, que permite “a expansão do Estado social, que foi facilitada pela vinda dos retornados altamente qualificados”, sustenta Pena Pires: “O Estado social pôde ser construído rapidamente porque havia uma reserva de professores e de médicos vindos de África.” O próprio crescimento do ensino universitário beneficiou, pois “os estudantes retornados não entram nas universidades clássicas, vão ocupar as universidades que estavam em formação fundadas pelo ministro Veiga Simão”, explica Pena Pires. Ou seja, o fenómeno dos retornados teve um peso específico na construção do Estado democrático. E embora reconheça que “já foi maior o peso dos retornados” na sociedade portuguesa, Pena Pires sublinha que “hoje são os filhos que têm peso e o terem vivido lá não é indiferente para explicar o seu percurso”.

Todos os aspectos da sociedade portuguesa foram atingidos por este fenómeno, incluindo a construção da democracia política. A integração dos retornados no sistema político geral “esvaziou a criação de movimentos de retornados, porque os que podiam preencher a liderança desses movimentos estavam ocupados noutros lugares” de liderança política. No plano autárquico, “foi grande a sua influência”. Isto porque “os retornados, sobretudo a norte, podem candidatar-se politicamente porque não há líderes”, frisa Pena Pires. “O ser de fora ajudou a fazer carreira política. A direita tinha pessoas muito conotadas com o fascismo.”

Este sociólogo relata que no inquérito que fez para o seu estudo “aos titulares das câmaras, no início dos anos 1980, 8% deles eram retornados”. Candidataram-se e foram eleitos pelo CDS e depois pelo PSD. “Pelo CDS cumpriam um mandato, depois candidatavam-se pelo PSD.” A sua opinião político-partidária “era mais contra a esquerda, marcada pela descolonização, eram contra Mário Soares, que era olhado como quem traiu.”

O facto de ocuparem o espaço político-partidário à direita contrastava com a abertura das suas posições em questões de costumes e civilizacionais. “Eram, por exemplo, a favor da despenalização do aborto, sei porque os interroguei na altura do primeiro debate [sobre despenalização em 1982] e eles eram favoráveis, tinham uma mentalidade mais liberal”, explica Pena Pires, que usa a sua própria experiência para exemplificar. “Eu vivi no Huambo e depois em Luanda, a vida era mais liberal, os liceus eram mistos, não tinham muros”, conta, prosseguindo: “Os funcionários públicos tinham férias graciosas. Fiz o primeiro período do 5.º ano do liceu no Porto, no Liceu Alexandre Herculano, e tive um choque, eu fui olhado como o terrorista que saltava os muros. Essa liberdade de vida marca a personalidade e a opinião sobre casos como o aborto.”

A diferença de mentalidade entre quem veio de África e quem vivia nas colónias era de um contraste imenso. O empresário Luís Montez não hesita em dizer: “O retorno foi notável. Sinto gosto de ter vindo de Angola, também para abrir a cabeça às pessoas, que atrofiavam. A sociedade portuguesa é mesquinha e pequena. Como já perdi tudo, se calhar sou mais atrevido. O essencial é ter princípios e educação, isso ninguém nos tira, agora perder o Mercedes e a casa na praia, arranja-se de novo mais tarde.”

A diferença de mentalidades e a abertura de espírito levavam a um maior liberalismo político. Emídio Rangel sublinha que “a democratização começa com as pessoas com formação, o que lhes permitiu entrar na discussão e serem elementos úteis”. E Alexandre Relvas lembra que “as pessoas que viviam em África sabiam dos movimentos de libertação, os que eram de segunda e terceira geração conheciam a situação, tinham feito o liceu com a geração de nacionalistas, não se conhecia Agostinho Neto, mas conheciam-se os primos”.
Também Paula Teixeira da Cruz depõe no mesmo sentido. “Em minha casa discutia-se política, trazia-se livros de fora, eu tinha mesada para comprar livros na Livraria São Luís [em Luanda], não havia limitações. Essa vivência cultural era extremamente importante. Li o primeiro livro de Marx aos 13 anos no liceu. Havia em Angola uma discussão que do ponto de vista cultural não havia aqui. Era uma mentalidade mais aberta. Havia PIDE mas havia debate.”

A actual ministra da Justiça cita mesmo a diferença de costumes e de mentalidade que transparece no quotidiano e no vestuário. “Lembro-me de vir de férias e sentir um país muito mais escuro e mais limitado, até na forma como as pessoas se vestiam.” Também Margarida Cardoso sorri ao lembrar: “Quem vivia em África tinha hábitos de roupa com cores, padrões, quadrados. Éramos apontados como vindos das colónias por causa das roupas.”

Já Carlos Lisboa sustenta que “as pessoas que viveram em África têm uma mentalidade diferente, pelo tipo de vida, por terem melhores condições de vida, tinham uma relação diferente com os outros”. E exemplifica: “O relacionamento com amigos em África deu-me uma visão de estar em grupo, de partilhar emoções, a vida colectiva era mais intensa.”

Por seu lado, Tomaz Morais garante: “O espírito alegre e de convívio tem que ver com as pequenas vitórias que vamos alcançando. Vejo isso em nós e nos meus primos. Foi a estrutura que ganhámos. Não há grandes egoísmos, há muito sentido de partilha e somos batalhadores por natureza.” E atribui essa característica à vivência africana: “Isto tem que ver com a vida em África. Nós vivíamos de portas abertas, os amigos entravam e saíam, eram quase irmãos. Chocou-me que cá era diferente, era fechado. A minha mãe diz que isso é de África, as pessoas eram optimistas por natureza e isso foi muito importante para a reintegração. A capacidade de liderança e o espírito de missão que os portugueses tinham em África trouxeram quando voltaram.”

Alexandre Relvas vai mais longe e afirma que o sucesso da integração dos retornados se deve à “própria personalidade portuguesa”. E explica: “Nós integramo-nos e sentimo-nos bem onde estamos, fazemos do mundo onde passamos a estar o nosso mundo com uma enorme facilidade, é este sentimento que me levou a integrar aqui, que levou o meu avô a integrar-se em África e que levou os avós de milhares de portugueses a integrarem-se bem e a viverem felizes em África.”

publicado às 19:46

His Master's Voice

por Nuno Castelo-Branco, em 11.03.14

De um ex-jornalista do ex- O Diário - uma desaparecida folha tão PC como o Avante! -, será lançado um book acerca dos acontecimentos que em 7 de Setembro de 1974, levaram à rebelião de uma parte da população de Lourenço Marques. Escutei o autor no tempo de antena propiciado por Mário Crespo na SIC Notícias. Para quem tenha memória curta ou uma total falta dela, as razões apresentadas  poderiam ser aceites sem grande celeuma, até porque decorridos quarenta anos, pouco ou quase nada resta de um Moçambique muito diferente daquele onde hoje esfarrapadamente se combate de norte a sul.

 

O que o ex-militar nomeado por Costa Gomes não disse ou não tornou explícito, foi o inegável facto desta sublevação ter sido o resultado de um crescendo de irritação por parte daqueles naturais de Moçambique  - que mesmo sendo de segunda, terceira ou quarta geração, eram agora chamados de "residentes em" -, obrigados desde Maio de 1974, a suportarem um ensurdecdor grasnar de iniquidades emitidas pelos senhores do Rádio Clube de Moçambique. Fiquei agora a conhecer o fácies de um daqueles que terá engendrado ou permitido as inacreditáveis e escandalosas emissões radiofónicas, copiosamente servidas até ao meu derradeiro dia naquela terra: 30 de Agosto de 1974.

 

O suposto MFA encartado esqueceu-se de dizer muitas coisas, entre as quais avulta a infrene propaganda anti-portuguesa difundida dia a dia pelos novos donos dos microfones. Para um justo e salutar tira teimas, seria interessante escutarmos hoje algumas dessas gravações, infelizmente para sempre perdidas. Pelas palavras proferidas esta noite na SIC, supomos então que gostosamente terá participado no processo. Pelo tu cá, pá, tu lá, pá facilmente implícitos, imaginamos o nível então conseguido naquela cada vez mais longínqua época. Era deveras insuportável. De um momento para o outro, fomos obrigados a ouvir todo o tipo de sandices, acicates ao ódio, "feitos heróicos" jamais ocorridos, mas atribuídos àqueles que Ribeiro Cardoso muito bem este serão apodou de turras. Era toda uma infernal panóplia preparatória daquilo que os tutores lisboetas pretendiam para Moçambique. Quem leia estas linhas, não pode conceber o que durante meses, os novíssimos His Master's Voice do RCM serviram até à mais abjecta exaustão. 

Fugindo a uma oportuna questão colocada por Mário Crespo, o ex-O Diário Ribeiro Cardoso limitou-se aos habituais artifícios dos "contextos e posicionamentos ideológicos" vividos naquela época. Mais ainda, fia-se na ignorância de quem o escuta, mencionando nomes que para a imensa maioria são desconhecidos. Falou do jornalista Areosa Pena, durante anos visita muito assídua dos meus pais e pai do Zé Orlando, amigo com quem ainda mantenho contacto. Muito antes do 25 de Abril, em Lourenço Marques era bem conhecida a sua filiação comunista, assumida sem rodeios. De ser simpatizante do PC nunca tal coisa escondeu e as discussões em nossa casa eram tempestuosas, à frente fosse de quem fosse. Enroupando-o como correspondente do Expresso de Balsemão, Ribeiro Cardoso citou o nome de um presumível camarada bastante engajado na luta pela entrega do poder total à Frelimo. Apenas cumpria aquilo a que o seu posicionamento político o obrigava. Este é o "contexto" que à maioria passará despercebido, mas nem por isso menos sintomático daquilo que a obra talvez pretenda.

 

Talvez? Talvez porque ouvi o autor, mas ainda não li o livro. Tenciono fazê-lo na diagonal,  repimpado na FNAC.

 

Naquele momento trágico de Setembro, já estava há uma semana em Lisboa e com quinze anos recentemente feitos, vivi com ansiedade as notícias que iam chegando da terra, aliás profusamente complementadas por telefonemas aos familiares que minuto a minuto, seguiram os acontecimentos. Ir telefonar aos CTT dos Restauradores tornou-se numa rotina diária do meu pai, exasperado pelas notícias transmitidas pela RTP. Na numerosíssima família, nem um só dos  nossos parentes participou na revolta. Eram Velhos Colonos, expressão que perdera todo o sentido ao fim de duas gerações, apenas servindo para tal como no Brasil acontece com os chamados quatrocentões, apontar grupos familiares pioneiros da soberania portuguesa.

 

Havia uma minoria de extremistas na condução da alteração da ordem pública? Havia. Havia exaltados? Decerto, mas o autor do livro finge ignorar a razão para tal raiva, sabendo ele que as emissões do RCM eram deliberadamente provocadoras e incendiárias. Nada foi por acaso, não há lugar para a contabilidade de inocências e "faltas de experiência". Nestes casos não existem acasos e "imprevistos de dinâmicas", porque a cartilha é conhecida e foi seguida com toda a minúcia. Houve deliberado dolo. Pelos vistos, o ex-jornalista  do ex-O Diário não assume as suas próprias responsabilidades, incómodo que contra as suas expectativas, agora  ganha contornos muito mais nítidos. 

 

Os furibundos colonos manifestaram uma compreensível ira libertada de humilhantes meses de "come e cala-te" e exaltados, gritaram um súbito não! aos vergonhosos espectáculos a que uma população incrédula foi obrigada a assistir. Militares recentemente chegados ao então chamado Estado de Moçambique, surgiam completamente desfraldados ruas e avenidas fora, cabelos e barbas à Che, postura arrogante, ordinária e provocadora. Eram uma malta, uns autênticos machimbas. Os abusos, insultos e piadolas tornaram-se frequentes, colocando-os num patamar muito distinto daquele exército que durante muitas décadas fora o português. Ribeiro Cardoso fala facilmente de "desvairados, criminosos e loucos", esquecendo-se habilidosamente de mencionar nomes que não podendo de forma alguma ser conotados com o "antigo regime", mostravam-se visivelmente indispostos pela forma repugnante como as autoridades de Lisboa estavam a conduzir todo o processo. Um dos indignados era o Dr. Neves Anacleto, avô de Francisco Louçã. Era uma relíquia, um dos derradeiros republicanos reviralhistas, homem de bem e infinitamente mais credível do que sobejamente conhecidos caçadores de fortunas que ainda medram na praça lisboeta, presidindo a partidos e mantendo bons e vitalícios negócios. São os "santos varredores", à imagem daqueles peixinhos limpa-aquários, mantendo-se sempre à tona, tanto no "antes" como no "depois". Em Lourenço Marques, Neves Anacleto tinha sido o eterno opositor de Salazar e naqueles dias de Setembro terá manifestado o seu repúdio por tudo o que  Lisboa permitia e pior ainda, ainda iria fazer. Durante a revolta, o seu nome foi bastas vezes mencionado.

 

A tropa MFA portou-se miseravelmente, há que dizê-lo e repeti-lo infinitamente, sem rodeios. Em 2014 terá a sua comemoração já bem esbatida pelo correr das décadas, pela chancela da lei da morte e sobretudo, pelos visíveis resultados provocados pela debandada a que obrigaram centenas de milhar de concidadãos. Enquanto viverem, estes jamais esquecerão. Ainda ontem e sem que houvesse qualquer razão para tal, o patético dr. Soares voltou a mencionar a questão da descolonização. O pobre homem já nem sequer tem o necessário discernimento que lhe permita pela ora contornar tal escolho, pois nele sempre embate numa manifesta declaração da má consciência.

 

No fundo, o PC age correctamente, fazendo aquilo que lhe convém. Preparemo-nos então para uma bem esfregada barrela, mas de uma coisa poderão estar certos: eles sabem que nós sabemos a verdade. É inesquecível e imperdoável.  

publicado às 22:23

Inhaminga, Moçambique

por Nuno Castelo-Branco, em 09.03.14

 

 

O antigo cinema de Inhaminga

 

Sem qualquer intuito de exibição de sobranceria, não seria muito arriscado afirmar que a "geração melhor preparada de sempre", talvez nem sequer consiga identificar Moçambique num Mapa Mundi. Por isso mesmo, mencionar Lourenço Marques ou Porto Amélia, é coisa tão fantasiosa como a diversão Piratas das Caraíbas na Disneyland

Chegam notícias de uma recente catástrofe militar em Inhaminga, na região de Manica e Sofala, terra de lendas e grandes feitos, no  centro de Moçambique. Este tipo de novidades remetem-nos para a infância de muita gente, quando para nosso espanto escutávamos as mais inacreditáveis estórias estrangeiras transmitidas pelo Rádio Clube de Moçambique. Além de Idi Amin ameaçar lançar batalhões de paraquedistas sobre a capital Moçambique - o fartote de risota que aquilo propiciava -, os locutores falavam acerca de furiosos debates na ONU e tintim por tintim, contavam o que dos portugueses se dizia no estrangeiro, nomeadamente na Europa e nos Estados Unidos da América. Nossos aliados na OTAN, faziam política e financeiramente, aquilo que no plano militar cabia à URSS e China maoísta.  No início da década de setenta, livremente e sem perigos se passeava em Moçambique, desde o sul do Save até zonas bem a norte, na Zambézia. Todos sabíamos da existência de bambúrrios na fronteira com a Zâmbia - zona de Tete - e muito mais a norte, no distrito de Cabo Delgado, concomitante com o rio Rovuma que traçava a fronteira entre portugueses e tanzanianos. Lourenço Marques, Xai-Xai, Inhambane e Maxixe, Vila de Manica, Beira, Chinde, Porto Amélia ou Nacala, jamais escutaram um único tiro que fosse. As populações andavam vestidas, bem alimentadas e contavam com os centros de saúde e escolas que o Estado cuidadosamente espalhara por todo o imenso território. 

Se por absurdo algo de parecido a isto tivesse acontecido bem a norte, em Montepuez ou Vila Cabral, por exemplo, o escândalo seria infalivelmente ribombante. Decerto haveria quem de imediato sugerisse a declaração de guerra da ONU a Portugal, o envio de um corpo expedicionário, sanções sobre sanções e uma infinidade de retaliações sempre em crescendo. Os portugueses brancos, pretos, mulatos, indianos ou chineses de serviço nas Forças Armadas, teriam sido amaldiçoados por uma enorme caterva de bondosos padres protestantes, normalmente bem servidos pelas recheadas carteiras de fundações ou secretarias de Estado de fala inglesa.

 

Aparentemente, aqueles que com alguma certeira antecipação foram designados de turras, colhem desde há mais trinta anos, a farta colheita da sua própria sementeira. Roubado, abusado e enganado há quase duas gerações, o povo moçambicano merecia melhor, até porque o silêncio da comunidade internacional, mostra bem o que é este mundo em que vivemos. 

publicado às 18:06

Em época de vendavais

por Nuno Castelo-Branco, em 11.02.14

 

Velhos Colonos: a minha avó Irlanda (1916), o meu pai (1934) e o recém-nascido tio Mário (Lourenço Marques, 1939) 

 

Sabemos bem o que se passou a partir do verão de 1974. No aeroporto Gago Coutinho desembarcaram dúbias individualidades à paisana, prestimosamente assistidas por uns fulanos de farda já amarrotada, barba por fazer, palito ao canto da boca e olhar sobranceiro. Vinham liquidar a presença portuguesa em Moçambique e detendo a titularidade do poder, ou mais importante ainda, o dedo no gatilho das G-3, garantiam que as coisas se passassem como o figurino aprovado pelo partido exigia. Se ao mesmo tempo conseguissem amealhar uns cobres, melhor ainda.

 

E foi precisamente isso o que fizeram. Desde logo começou a roda viva das negociatas de transferência de divisas, pois na sua proverbial cegueira, a gente do Estado Novo obrigou o Ultramar a possuir moeda própria em cada uma das suas parcelas. Estupidez superlativa, essa ausência de um Escudo comum consistiu num dos aspectos mais criticados e atirados à cara das autoridades que ignorando a realidade no terreno, da Metrópole chegavam para as conhecidas e rendosas comissões em Angola, Moçambique, etc. Não importando quem fosse o imbecil nomeado pelo senhor engenheiro-doutor cunha, logo passava à frente de qualquer natural da Província, por mais branco, goês, preto, mulato ou chinês que este fosse. Era assim mesmo.

 

Grandes negócios foram engendrados. Os camaradas de uniforme acirraram-se nas "véstorias" - não é assim mesmo que certa gente bem colocada diz? - de caixas e caixotes dos naturais daquela terra que fugiam espavoridos pelos discursos  transmitidos por libertadores que jamais haviam conquistado uma vilória, por mais ínfima que esta fosse. Trocavam Escudos de Moçambique por Escudos de Portugal ao preço de 3 por 1, logo aumentando o esbulho para 4 e até 5. O agiotismo atingiu o paroxismo quando a data da independência se aproximou, levantando-se todo o tipo de obstáculos possíveis e imaginários. Após o 25 de Junho de 75, qual foi a sede de depósito de bens à confiança? Desgraçadamente,  a embaixada/consulados de Portugal em Moçambique.

 

As muitas dezenas de cartas que se encontram na posse de milhares de naturais do Ultramar, são eloquentes testemunhos do que se passou. Papelada para tudo e para nada, listas que eram arbitrariamente riscadas, bens deliberadamente pisoteados diante dos seus proprietários, enfim, tudo se fez às claras e sempre com um requintado prazer ditado pelo livre arbítrio. Muitos ainda recordam os palavrões e os dichotes ameaçadores, o gozo pela tortura moral de quem estava à mercê. São tristemente célebres, os factos que se contavam acerca de fulanos engalonados que se forneceram de móveis, enxovais, bibelots e electrodomésticos, logo os fazendo embarcar para a Metrópole. Pasmaram os Velhos e os Novos Colonos de Moçambique, pois tal coisa jamais se vira. 

 

Vão agora as associações de espoliados numa via sacra até S. Bento. Sabendo-se da inexistência de qualquer possibilidade de remédio à situação que foi imposta a centenas de milhar de pessoas - os milhões de infelizes que lá ficaram, são outro assunto que preenche o noticiário do dia a dia -, convém manter a memória dos inegáveis factos ocorridos há quarenta anos. Falam as associações de reparações materiais, quando o que a todos os "retornados" mais interessa, será um mea culpa dos herdeiros do Estado de 1974-76. É a obrigatória reparação moral que mais falta faz. 

 

Começam pelo PC dito P, supina ironia. Obrigam os negacionistas a uma audiência que lhes será imposta pelas regras do Parlamento. Têm os comunistas representação parlamentar? Por incrível que possa parecer, sim, têm. São assim forçados à recepção de gente que deliberada e conscientemente prejudicaram, numa ânsia de prestação de serviços à potência que então os tutelava e sustentava. Obrigar o PC e tralha anexa a escutar aqueles que odeiam, eis um quase anedótico caso que deveria ser filmado em directo. 

publicado às 12:18

Alda Costa comenta Ana Maria

por Nuno Castelo-Branco, em 15.11.13

"Ana Maria (n.1933), por exemplo, é um desses casos. A viver em Lourenço Marques, depois de vários anos de vivência em várias regiões no interior de Moçambique, realizou a sua primeira exposição individual em 1956 no salão da Associação dos Naturais de Moçambique. A partir daí, colaborou (comunicação pessoal) com João Ayres e outros artistas (José Freire, Bertina Lopes, Alfredo da Conceição...) na preparação dos pavilhões para a Exposição da Vida e da Arte Portuguesas realizada nesse mesmo ano, participou na colectiva que se realizou e fez uma segunda individual em 1958, por iniciativa do Núcleo de Arte. O seu trabalho, a partir da sua experiência de vida e sem mestre (apenas algumas aulas com Frederico Ayres), inspirava-se, o que ainda hoje acontece, nas terras que percorreu e onde viveu, na sua vivência pessoal, na das pessoas à sua volta, no que observou, na prática e vivência colonial. Possui, por essa razão, importantes características documentais que a diferenciam do trabalho dos restantes artistas e lhe dão um lugar muito particular na arte em Moçambique.  A edição de um livro sobre o seu trabalho, produzido em Moçambique e, mais tarde, sobre Moçambique, seria de extrema importância ainda que, ao mesmo tempo, sobre Moçambique, seria de extrema importância ainda que, ao mesmo tempo, pudesse provocar alguma controvérsia. O seu trabalho de ilustração merece igualmente atenção."

 

Uma citação, entre muitas outras, do trabalho da minha mãe, no livro de Alda Costa Arte em Moçambique - Entre a construção da nação e o mundo sem fronteiras 1932-2004, da editora Verbo. Tive o prazer de conhecer a autora numa das suas visita a casa dos meus pais, em Caxias. Longamente conversámos à boa maneira de outrora, isto é, bem portuguesmente à volta de uma mesa bem servida de comezainas por cá consideradas exóticas. Talvez não seja exagero afirmar que ouvi mais do que usei da palavra, pois interessava-me a percepção que as novas autoridades moçambicanas tinham de um passado ainda não distante, subitamente interrompido pela debandada de praticamente todos os nomes que durante algumas décadas preencheram as ainda pouco conhecidas actividades culturais naquele antigo território ultramarino. Alda Costa tem bem presente a originalidade do trabalho de Ana Maria, única e exclusivamente ditado pela ânsia de documentar pictoricamente os aspectos mais marcantes da vida das populações moçambicanas, fossem elas negras, brancas ou de outras etnias. Usos e costumes hoje perdidos nos grandes centros urbanos, encontram-se preservados através de algumas telas e madeiras, sendo contudo em maior número, aqueles aspectos que na ruralidade dos vários ambientes do grande país que Moçambique é, talvez ainda não tenham sido eliminados pela chegada de um duvidoso progresso. 

 

O parágrafo final da citação acima aposta - a controvérsia que a exposição da verdade dos factos acarreta - , chama a atenção para alguns aspectos incontornáveis numa obra que deve ser considerada como um projecto de vida, dada a sua complementaridade e exaustão na pesquisa. À criatividade sobrepõe-se sempre a estrita fidelidade ao visto, àquele testemunho que deixa a invenção a que normalmente catalogamos de mentira ou propaganda, para os aggiornados ao antes ou depois dos acontecimentos de 1974-75. Aqui está o facilmente previsível incómodo de um trabalho que foca a soberania portuguesa em toda a sua complexa multiplicidade de aspectos, sejam eles os que agradarão aos novos senhores do poder instalado, ou pelo contrário, profundamente os julgarão inconvenientes, pois desconstroem heróicas lendas, a expressão amável para a falsificação da história. Temos de tudo, desde o trabalho de sol a sol, até à ainda hoje existente selecção física de pessoal destinado ao árduo trabalho nas minas do Rand. A criadagem, o obsessivo argumento dos detractores desse passado já bem passado, sumariza a concepção "progresseira" do mundo colonial português, como se hoje, decorridas duas gerações, a situação não fosse muito mais acentuada e com retintas pinceladas de degradação cívica. O negro, ou melhor, o preto, foi pintado tal qual surgia diante de todos, um homem completo e orgulhosamente individualizado, bem diferente daquela arte deixada por outros brancos e que de tanto idealizada, muitas vezes se aproxima da embaraçosa caricatura. A pintora gostava desses pretos do mato ou da grande cidade e  que por outros artistas eram olhados como passageiras curiosidades num ambiente complexo.
Tão nativa de Moçambique como eles, Ana Maria sempre os quis conhecer melhor, deles se aproximando sem sobranceria. Lembro-me bem da minha mãe, terminada uma tela, questionar o criado acerca daquilo que ali via, invariavelmente recebendo como resposta um ...xiiii, à sinhôra sabi mesmu como nós sômo!  Melhor homenagem não podia ser feita, tendo desde sempre a minha mãe secundarizado a chamada crítica de coluna e o tortuoso fraseado laudatório, fatalmente de circunstância. As inquirições às por vezes insubmissas populações do mato, um ou outro vexatório castigo, mas também, para desilusão de alguns, aqueles aspectos  benéficos trazidos de fora e que foram essenciais para a construção de uma entidade política hoje independente; a organização civil, os sectores laborais, a assistência às populações - fosse a escolar ou a da saúde, entre muitas outras -, a administração da justiça, o impedir do consuetudinário crime de sangue e porque não?, a construção das infraestruturas essenciais ao progresso material. A par do mais extremo apego à sua terra e sua gente, é facilmente perceptível a fidelidade a uma certa ideia, hoje desaparecida, de um Grande Portugal que para ela existia como comunidade das mais desvairadas gentes e credos, dispersa em todos os continentes da geografia planetária.

 

Ana Maria era e ainda é portuguesa e africana. Jamais fez fretes ao que era politicamente correcto nos tempos da 2ª república portuguesa e generosamente pagou com a mesma moeda as festivas loucuras africanas pós-1975.

 

Sem jamais se ter dado a preocupações da análise comummente chamada de intelectual, esta vastíssima obra é por isso mesmo incómoda, involuntariamente ridicularizando frases feitas, alegações politicamente correctas ou certezas ditadas por uns tantos que jamais terão pisado a realidade daquela África que existe fora dos confortáveis âmbitos das salas de conferência a soldo dos interesses governamentais e dos fare niente nos hotéis ou resorts de renome internacional. Em suma, a verdade dói, ferindo o que é essencial: a legitimidade no seu sentido mais amplo.

 

Um livro que exaustivamente nos faz desfilar factos e nomes do restrito círculo de artistas moçambicanos, fazendo-me viajar no tempo e recordar algumas cenas, por vezes caricatas, a que durante os anos de infância tive o privilégio de testemunhar. O silêncio de alguns artistas perante o trabalho exposto pelos seus pares, os comentários enigmáticos que infalivelmente denotavam  uma disfarçada rejeição, ou pior ainda, os olhares glaciais e ferozes que muitos deles trocavam nas exposições colectivas. Chegados a casa, lembro-me dos meus pais fartamente gargalharem a propósito do grotesco de certas situações presenciadas, como se um fugaz centro de atenções num fulano ou beltrana, se tratasse de inevitável casus belli. À desinteressada grandeza e presença de espírito de alguns, somava-se a altivez postiça e armalhonice de outros auto-crismados Miguéis Ângelos ou da Vincis austrais. Existem dúzias de estorietas que entre o cómico e o triste, poderão um dia ser narradas noutro âmbito. 

 

A todos os luso-moçambicanos, um livro que convém adquirir e ter como fonte de consulta. Abstraindo-nos de algum panfletarismo decorrente da situação politicamente unívoca em que o novíssimo país teima em permanecer, este é um bom contributo prestado por Alda Costa. Oxalá um dia possa também libertar-se de algum entorpecedor lastro que nestes dias já nenhum sentido tem. 

 

publicado às 16:34

Como o actual regime...

por Nuno Castelo-Branco, em 04.11.13

...é exemplar quanto à defesa do interesse nacional e exímio na procura de oportunidades para a nossa indústria naval, aqui está uma notícia interessante. Vale 200 milhões de €. 

publicado às 15:49

 

Nesta infausta e felizmente já "descomemorada" data, nada melhor tenho para fazer, senão publicar uma carta escrita nos finais do já longínquo ano de 1974.

 

Tendo ficado em Lourenço Marques até 1976, a minha avó assistiu a todo o processo de debandada que culminaria com o forçado abandono de Moçambique por parte de toda a sua familia. O seu pai, estabelecido em Lourenço Marques desde o início do século,  ali morreu em 1975 por altura da independência e a sua mãe que jamais visitara o Portugal Continental, também viria para a antiga Metrópole. Como era seu hábito, trata-se de uma longa missiva por vezes quase telegráfica e que ainda caía na tentação do uso do português de outros tempos. Nestes papéis apercebemo-nos da catástrofe que se verificava nos serviços públicos já a mercê do oportunismo de muitos, da incompetência dos neófitos e de uma total desorganização tornada inevitável pela abrupta partida de quadros da administração do ainda Estado de Moçambique. O papel das Forças Armadas Portuguesas foi aquele que bem se conhece, sumariamente podendo ser classificado como prepotente, escandaloso e cobarde. A mencionada requisição de navios que procederam à evacuação de militares e respectivas famílias - não esquecendo os preciosos teres e haveres, muitos destes adquiridos ao desbarato aos "colonos" - é apenas um dos tristes episódios que salpicaram a reputação de uma instituição até então por todos considerada sagrada.

O Miguel, a minha mãe, a Angela e eu, com a avó (L.M. Moçambique, 1966)

Alguns nomes foram por mim deliberadamente ocultados, evitando a reabertura de pequenas feridas - que hoje não têm qualquer relevância - perpetradas por gente excitada pelos acontecimentos e que talvez não tenha querido hesitar antes da tomada de algumas atitudes desnecessárias. 

 

Existem muitas dezenas de cartas deste período, ciosamente guardadas pelo meu pai, um felizmente incorrigível arquivista. Estes papéis são verídicos testemunhos de muitos acontecimentos completamente desconhecidos pela sociedade portuguesa. Convém guardá-los e dá-los a conhecer, pois a preservação da memória é o que nos resta. 

 

 

"Lourenço Marques, 8/11/74

Meus queridos filhos e netinhos

Anteontem pouco antes do meio dia foi quando escrevi as últimas linhas da carta que enviei via "Expresso". Não sei se me expliquei claramente, assim volto a dizer agora o mesmo.
Na CCN (1) dizem que a "sede aí é é que tem de mandar aviso Telex para a filial aqui com ordem de pagamento a ser feita cá". Eu já levava dinheiro para o fazer e nada adiantei. Tratar quanto antes do assunto que eu para a semana vou passando pela CCN a saber se já mandaram a ordem de pagamento. Meu Deus, tantas arrelias juntas. Disseram-me que a culpa foi de quem mediu os contentores, é melhor ir sempre a mais e pagar cá. Estava lá uma senhora a dizer que sabia como era. Mediam a menos para se valerem e mesmo receber gorjeta e os interessados que se arranjassem aí. Que sabia de muitos casos. Só penso que se já têm casa (2) devem estar mortinhos para a ter arranjadinha, o tempo como está? Já deve fazer frio. 
Fui à Inspecção de Crédito falar com a D. Irene Santos. Foi ela quem tratou da renovação do cartão da mesada da Prazeres (3) (ainda não lhe mandei o cheque de Setembro, não tenho cabeça nem disposição para escrever). Disse-me que as transferências estão suspensas e é verdade. Que os funcionários que foram "via turismo" não têm direito mesmo que houvesse dinheiro porque foram à sua custa, e é o teu caso, não é assim, Ana Maria? Deram-te a licença graciosa mas não as passagens. Pode ser que eu esteja enganada, mas lembro-me de ouvir qualquer coisa sobre isto antes de embarcarem. Mesmo no BNU estão as transferências suspensas. Não sei quantas vezes eu lá fui e quando lá chego antes de abrir as portas já a bicha é enorme. Enquanto estiver o aviso afixado na porta a dizer que estão suspensas as transferências, nada feito sobre as pensões. 
Se não me engano já mandei dizer qual o dinheiro vosso que tenho. Em caixa deixado por vós antes de partirem = 700$00 mais 25$50 em moedas 2.000$00 pagos por M. Graça Fernandes = 2.725$50.
A XXXXXXXX veio pagar domingo passado 14.000$00 pelo aparelho de ar condicionado. Quando lhe telefonei disse-lhe que preferia em dinheiro em vez de cheque como queria pagar. Que não podia fazer. Lá tive que ir depositar o dinheiro e assim quando preciso de dinheiro só posso levar dez contos por semana, um dia = 4 contos, outro dia = 4 contos e no terceiro dia = 2 contos. É uma bicha tremenda. Quando estranhei serem só catorze contos e lhe mostrei a factura que tinha mesmo ao lado da mesinha do telefone disse-me logo que lhe tinhas falado em catorze e não em catorze e quinhentos. Sempre quero ver se dará o que falta. Também me disse que os 4 contos não eram divida dela mas sim do irmão e da cunhada, que tinha ficado acordado contigo pagar mil escudos por mês. Que quando eu fosse novamente com a tia Mimi à consulta (vou na terça dia 12), a cunhada me pagaria qualquer coisa. Eu que ando a pé e sou velha é que tenho de lá ir. Esta gente não é nada atenciosa. A YYYYYYYY está na África do Sul, só para o fim de semana é que virá. Foi o que me disseram quando telefonei. O Sr. Inácio Ribeiro foi mais cortez, mas é pouca coisa o que tem para me entregar.
Agora vende-se tudo ao desbarato, por este andar só quem mesmo não pode é que não procura novos horizontes. No mercado negro dizem que para receber 100$00 daí temos que dar 300$00. Quando se pergunta quem o faz ninguém sabe e qualquer dia estará a 400%. Anda tudo louco. Não há navios para passageiros e carga. Até Março é para militares e famílias e material de guerra. Estamos abandonados. Não é costume nestas ocasiões fretarem navios e mesmo aviões para quem quer ir embora? Coitado do Avô (4). Diz que da sua casa não sai, mas está tão abalado que não sabemos quanto mais viverá. É a velhice. Vai-se apagando pouco a pouco. A Avó tendo que sair prefere ir para a A. do Sul que é clima mais quente, o Carlos, a Bolívia e a Mimi (5). A Maria Jesus (6) diz que vai com os filhos para lá, só está à espera do emprego que lhe prometeram em Durban. Mais ou menos o mesmo que cá faz. O Zeca (7) começa a trabalhar lá em Janeiro, a Laura (7) já está a desmantelar a casa. Enfim, a família vai cada um para seu lado. A Loti (8) conta embarcar no fim de Dezembro. Eu que faço? A Adélia (9) embarcou domingo passado com os miúdos e a mãe. Estão a viver em Portimão. O Mário (9) para o mês que vem embarca a gozar férias. Conta ficar uns tempos por cá e prefere então ir para o Brazil. Já está a tratar para ali se fixar. Fala em Porto Alegre. O Mário vai passar o natal aí e volta para cá até ir para o Brazil. O mobiliário já está a ser encaixotado e segue no fim de Dezembro para o Brazil. Vai junto com bagagem de uma família amiga. 
Eu ando a tratar da minha pensão de sobrevivência. A Adélia andou lá mas tudo agora é muito moroso. mandaram-me ir para a semana. Quero ver se ainda tenho chance de a transferir para aí antes de vinte e cinco de Junho, tenho até morrer. Assim não perco tudo, bem basta a casa ficar cá. Pena tenho eu de não a poder levar às costas. Eu ando muito nervosa (quem não anda?) quantas vezes não digo que era preferível morrer, tanta cousa triste neste último ano! Não sei se leve a tralha (caso haja navios de carga) e venda aí mesmo ao desbarato mas o dinheiro corre no mercado e o de cá só se for (10) para limpar o...! As lojas estão vazias, as pessoas que foram, como não dão transferências gastaram todo o dinheiro que cá tinham. Foi uma das razões porque os bancos agora só deixam levantar dez contos por semana. Mandem dizer o que na minha casa vale a pena levar. Parece-me que há gente da A. do Sul interessada em mobílias de talha, pagam em rands. Sendo assim vendia a mobília de quarto. Para mim um divan faz de cama e o resto do quarto a fazer de salinha com as minhas recordações já me chega. Ao que a gente chega. Nem se pode morrer em paz. 
Esta semana fui ter com o Jorge (11). Disse-lhe também que já tinha vindo a minha casa, ao sábado e domingo na verdade nunca estou.  Ao sábado casa da tia Bolívia e Avós e ao domingo com a Adélia e Mário. Ontem à noite o Mário veio buscar-me e fomos ao cinema ver uma comédia. Nunca julguei que pudessem fazer filmes tão cómicos, sem ser as parvoíces de outrora. Agora metem política e é cada uma. Olha, fartei-me de rir. O filme de bonecos animados era mesmo bom. Passado numa escola. Como estava dizendo estive a conversar com o Jorge. Diz que vai haver barulho lá mais para diante. Como a Vira (12) também passou e ficámos a conversar, não adiantou mais nada, de maneira que não sei o que conta fazer. Sobre a tua mãe, Ana Maria, nada sei. Uma senhora que estava ao balcão é que perguntou se eu era a mãe do Vítor e que quando fosse à Caixa para lá passar, pois tinha uma encomenda para ti. O Jorge falou em cheque... mas nada havia. O contrário é que seria de admirar. É a tal Margarida de que falaram numa carta.
Sobre o emprego estão satisfeitos? Aparecendo cousa melhor é aproveitar. Escuta aqui, escuta acolá e olho vivo poderá ajudar para cousa melhor. O que interessa é na verdade ganhar para comer, para a casa e para os estudos. Como está a Angelinha? O Miguel e o Nuno, bons? A Ana Maria não diz nada sobre a saúde, bem agasalhados por causa do frio é o que eu peço para fazerem. Fui agora à caixa do correio mas não tenho correspondência. A semana passada recebi duas cartas em dois dias seguidos ou foi no princípio da semana? Desculpem a minha cabeça anda tão cansada. Isto é uma baralhada medonha! Quando estou sozinha farto-me de chorar, e quando quando ando na rua melhoro mas, o pior é que quando chegou a casa está tudo por fazer. Não encontro tempo para tudo.
Todas as pessoas amigas vos mandam muitas saudades. Mais uma vez o seguinte: (quanto antes têm que ir à sede CCN pedir para mandar para a filial de cá um Telex a confirmar o pagamento cá. Não vindo a ordem da sede aqui não recebem o dinheiro) Entendido?
Muitos beijinhos e muitas saudades da mãe e avó muito e muito amiga
Irlanda"


(1) CCN, Companhia Colonial de Navegação.


(2) Vivemos no Parque de Campismo de Monsanto até ao verão de 1975.


(3) M. dos Prazeres, a irmã do meu avô, residente em Valença do Minho.


(4) O meu bisavô. Vivia em Moçambique desde o início do século XX.


(5) Carlos, Bolívia e Mimi, irmãos da minha avó.


(6) Maria Jesus Branquinho, cunhada da minha avó.


(7) Zeca e Laura , irmão e cunhada da minha avó.


(8) Leontina (Loti) Tenreiro, irmã da minha avó.


(9) Adélia e Mário, a nora e o filho da minha avó, meus tios paternos.


(10) Uma conhecida expressão de desânimo que a minha avó substituiu por reticências.


(11) O tio Jorge, irmão da minha mãe.


(12) Elvira, uma prima do meu avô.



publicado às 19:20

Moçambique

por Nuno Castelo-Branco, em 21.06.13

O exército em corrida, numa aula de ginástica (Boane ou Vila de Manica, Moçambique, 1954-56)

publicado às 15:00






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