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Na hora da demissão de António Costa

por Samuel de Paiva Pires, em 07.11.23

Naturalmente, estamos agora focados na árvore e a pensar no que se seguirá, ou seja, se o Presidente da República, que convocou os partidos e o Conselho de Estado para os próximos dias, dará espaço a uma solução interna da maioria parlamentar do PS (com que legitimidade?), ou, o que é mais provável, dissolverá a Assembleia da República - isto numa altura de discussão do Orçamento do Estado para o próximo ano. O país político estará hoje especialmente agitado, num corrupio de telefonemas e especulação sobre cenários eleitorais, e muito provavelmente passará os próximos meses a fazer listas de candidatos a deputados à porta fechada - que os cidadãos são meramente chamados a ratificar nas urnas - e a preparar e conduzir a campanha eleitoral, onde mais uma vez o foco será nas lideranças políticas, como é timbre da personalização do poder político.

Mas talvez valha a pena olhar para a floresta. Nos últimos 23 anos, o PS foi governo durante 16. Dos seus 3 Primeiros-Ministros neste período, um saiu perante o “pântano político”, outro continua numa rocambolesca relação com a Justiça e é com esta que o terceiro inicia agora uma relação cujos contornos ainda desconhecemos. A isto acrescem ainda dezenas de casos de Ministros, Secretários de Estado, adjuntos, assessores e autarcas envolvidos em diversas suspeitas de corrupção e afins. Por mais “códigos de ética e conduta” e “estratégias nacionais de combate à corrupção” que sejam formulados, é inegável que Portugal tem um problema estrutural de corrupção e descrédito das instituições políticas, o que alimenta os populismos quer à esquerda quer à direita.

Na sua classificação das formas de governo Montesquieu explica que, quanto à sua natureza, existem três: a monarquia, a república (que pode ser mais aristocrática ou mais democrática) e o despotismo. Quanto ao princípio que anima cada forma, entendendo por tal o propósito que anima o povo, o que o faz actuar, considera que a república se fundamenta na virtude (amor à pátria e dedicação à causa pública), a monarquia na honra (baseada nos privilégios e distinções) e o despotismo no medo. O autor da fórmula final da separação de poderes admirava as repúblicas, mas considerava que a virtude cívica requer um elevado padrão moral, um espírito público por parte dos cidadãos que os motive a subordinar os interesses privados ao público.

Acontece que, como salienta Chandran Kukathas a respeito da teoria política de David Hume, “Não podemos depender da benevolência ou virtude dos actores políticos se queremos que a liberdade e a segurança das possessões sejam asseguradas”, pelo que “a única solução é ter uma constituição forte cujas regras gerais mantenham os grupos de interesse e indivíduos ambiciosos em xeque. São as regras e não os indivíduos que governam que asseguram a segurança e a liberdade da sociedade.”

No fundo, ecoa Cícero e Santo Agostinho, a propósito de quem Alan Ryan afirma que “[Cícero faz] da justiça a característica definidora de uma república que é realmente uma república, e antecipa a famosa observação de Santo Agostinho de que sem justiça um estado é simplesmente um grande gangue de ladrões: um estado corrupto não é uma comunidade. Não pode haver res publica se as instituições do governo são pervertidas para servir interesses privados. (...). Boas instituições protegem o interesse comum contra a erosão por interesses privados e evitam que os conflitos de interesses privados se tornem destrutivos.”

Enquanto comunidade politicamente organizada, temos evidentes problemas éticos, que não raro desaguam em problemas legais. Estes são particularmente notórios no PS porque a sua permanência durante longos períodos no poder acaba por potenciar vícios que conduzem à captura do Estado por determinados interesses privados e à erosão do interesse público. A forma de reduzir a elevada exigência moral colocada pela virtude cívica e levar a uma revalorização da causa pública é através do desenho institucional. Como também ensina Montesquieu, “todo o homem que tem poder é levado a abusar dele” indo até onde encontra limites.

Por outras palavras, precisamos urgentemente de reformar o sistema político nas suas diversas componentes. Sobre isto, teci algumas considerações já há quatro anos no Observador. Talvez esta seja uma boa oportunidade para reflectirmos sobre o que precisamos de fazer para melhorar a qualidade da nossa democracia liberal antes que ela se degrade ainda mais.

publicado às 15:46

Enganos em tempos de coronavírus

por Samuel de Paiva Pires, em 31.03.20

O primeiro engano: a dicotomia entre salvar vidas vs. salvar a economia. Como escreveu há dias Steve Horwitz, os custos económicos são custos humanos e todos os custos humanos têm custos económicos. Qualquer das opções (manter a actividade económica a decorrer normalmente e aumentar o grau de propagação do vírus e os seus efeitos a longo prazo vs. quarentena e distanciamento social com a consequente redução na actividade económica, mas com controlo do vírus e relançamento da actividade económica a curto e médio prazo) tem custos económicos. A política é a arte do possível, pelo que quanto à tomada de decisão sobre políticas públicas, não só a primeira opção é moralmente superior como é também a que, numa análise custo-benefício, provavelmente será menos dispendiosa, segundo dois estudos (este e este) referidos por Cass Sunstein. Como é óbvio, requer um forte pacote estatal de estímulo à economia, que no caso de países detentores de moeda própria é mais fácil e rapidamente implementável, o que me leva ao próximo ponto.

O segundo engano: a ideia de que os países do norte da Europa são muito produtivos e frugais ao passo que os países do sul são pouco produtivos, gastadores e pedintes em relação aos do norte com os “eurobonds” e/ou a impressão de dinheiro pelo BCE. Esta narrativa popular tem feito escola até entre muitos cidadãos de países do sul, sendo visível uma quantidade não-negligenciável dos seus adeptos, muitos deles defensores também da estratégia de salvar a economia em detrimento de vidas humanas aflorada no ponto anterior. Para estes, que no ano de 2020, tendo já passado pela crise do euro, ainda não conseguiram perceber que a União Económica e Monetária tem falhas estruturais conducentes a um funcionamento perverso que privilegia os países do norte e prejudica os do sul, dificilmente haverá salvação. Acresce que o actual choque é simétrico, afecta todos os países, ao contrário do choque assimétrico da crise do euro, típico de uma união monetária com as características que enunciei noutro post. O importante a reter é que percebem tanto de uniões monetárias e política internacional como eu percebo de crochê. Se o país dependesse deles enquanto governantes, morreria boa parte da população e outra grande parte ficaria debilitada, o SNS ficaria arruinado e a retoma económica seria uma miragem à distância de várias décadas.

Na origem destas posições parece-me estar a incapacidade de encarar e lidar com uma problemática que provoca imensas mudanças em tantos sectores das nossas vidas e terá consequências que ainda não conseguimos vislumbrar na sua totalidade e probabilidade, embora não sejam inimagináveis. Muitas empresas irão fechar e muitas deveriam fazê-lo o mais rapidamente possível para não se sobreendividarem e desperdiçarem recursos financeiros e humanos em actividades que não serão viáveis durante bastante tempo (estou a pensar especialmente no sector do turismo), muito provavelmente teremos de nacionalizar empresas de sectores estratégicos (ocorre-me desde logo a TAP), a taxa de desemprego vai disparar, tendo o subsídio de desemprego e as políticas sociais de amparar grande parte da população enquanto esta se reconverte para outros sectores de actividade, não sendo de colocar de lado a possibilidade de implementação de medidas como o Rendimento Básico Incondicional. Quem mais rapidamente se adaptar e transformar em face da mudança, mais depressa conseguirá ultrapassar os efeitos negativos desta.

Já Edmund Burke salientava que “Todos temos de obedecer à grande lei da mudança. É a mais poderosa lei da Natureza, e porventura o meio da sua conservação,” e que “Um estado sem os meios de alguma mudança encontra-se sem os meios da sua conservação”, um eco daqueles ensinamentos de Maquiavel a respeito da capacidade de adaptação do príncipe, de quem afirma ser “preciso que ele tenha um ânimo disposto a virar-se consoante os ventos da fortuna e a variação das coisas lhe mandam.” Como Diogo Pires Aurélio sublinha a propósito da obra do florentino, “O hábito (…) molda uma maneira de agir e, nessa medida, reduz a capacidade de improvisação e adaptação.” E como a política é “por definição uma actividade que se defronta irremediavelmente com a novidade, uma vez que a mudança dos tempos é inevitável: ou se é capaz de os mudar ou há um outro que os muda, ou se triunfa ou se perde.”

Nos tempos relativamente estáveis das últimas décadas, se quiserem, de normalidade, com mudanças relativamente moderadas, a economia tomou precedência sobre a política. Mas não vivemos tempos normais e os quadros mentais da cartilha neo-liberal não servem para estes tempos. E saliento a palavra cartilha, porque os nossos aprendizes de neo-liberais deviam ler mais um dos pais do neo-liberalismo, Friedrich Hayek, de cujo Law, Legislation and Liberty deixo um excerto:

The basic principle of a free society, that the coercive powers of government are restricted to the enforcement of universal rules of just conduct, and cannot be used for the achievement of particular purposes, though essential to the normal working of such a society, may yet have to be temporarily suspended when the long-run preservation of that order is itself threatened. Though normally the individuals need be concerned only with their own concrete aims, and in pursuing them will best serve the common welfare, there may temporarily arise circumstances when the preservation of the overall order becomes the overruling common purpose, and when in consequence the spontaneous order, on a local or national scale, must for a time be converted into an organization. When an external enemy threatens, when rebellion or lawless violence has broken out, or a natural catastrophe requires quick action by whatever means can be secured, powers of compulsory organization, which normally nobody possesses, must be granted to somebody. Like an animal in flight from mortal danger society may in such situations have to suspend temporarily even vital functions on which in the long run its existence depends if it is to escape destruction.

publicado às 20:50

In Memoriam - Sir Roger Scruton (1944-2020)

por Samuel de Paiva Pires, em 12.01.20

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Há 8 anos tive o privilégio de assistir a uma conferência de Sir Roger Scruton, em Lisboa, dedicada essencialmente à temática do Estado-nação como resposta às crises que vamos vivendo e em que o filósofo britânico não deixou de tecer críticas ao processo de integração europeia, um tema recorrente nas suas reflexões e a que dedicou parte de um dos livros que mais o deu a conhecer em Portugal, As Vantagens do Pessimismo. Diria até que se Nigel Farage, Boris Johnson e Dominic Cummings foram os principais artífices do Brexit na praxis política, Scruton terá sido quem mais fez por esta causa no plano das ideias, especialmente atendendo à sua apaixonada defesa de uma certa ideia de Inglaterra que tantas vezes lhe causou dissabores ao longo da sua tumultuosa carreira académica. Da conferência em Lisboa, guardo a memória não só do seu brilhantismo intelectual, mas da sua simpatia e genuíno gosto pelo debate de ideias, numa tarde em que se dispôs a partilhar as suas reflexões com uma dúzia de académicos portugueses, alguns dos quais, aliás, se têm dedicado a estudar o seu pensamento - como é, de resto, o meu caso, figurando Scruton como um dos autores conservadores cujas ideias sobre os conceitos de tradição, razão e mudança analisei na minha tese de doutoramento.

Tratando-se de um herdeiro de Burke e de Hegel, de um crítico do liberalismo mas que coincide parcialmente com autores como Hayek (outro herdeiro de Burke) no que à teoria social concerne, Scruton é um dos pensadores contemporâneos responsáveis por desconstruir o mito de que ser conservador é igual a ser-se imobilista. Só um incauto poderia ser surpreendido pela sua afirmação tipicamente burkeana, em How to be a Conservative, de que o “desejo de conservar é compatível com toda a forma de mudança, desde que a mudança também seja continuidade”. Dificilmente se pode concordar com tudo no seu pensamento - é, também, o meu caso -, ainda para mais tratando-se de um autor tão prolífico, mas é impossível lermos Scruton e não nos sentirmos desafiados e estimulados a reflectir sobre os mais diversos temas. A minha evolução intelectual é parcialmente devedora do seu trabalho, que me permitiu compreender melhor as falhas do liberalismo e as potencialidades do conservadorismo, quer na teoria quer na acção política. A sua morte, hoje, aos 75 anos, é uma notícia triste e representa uma perda inestimável para a reflexão política dos conservadores - bem como dos seus adversários, alguns dos quais analisados em Fools, Frauds and Firebrands, uma das suas obras mais polémicas e cuja primeira edição, em 1985, com o título Thinkers of the New Left, lhe valeu o repúdio de boa parte da academia britânica. Afinal, numa época de ortodoxias e dogmatismos vários, à esquerda e à direita, a sua moderação foi quase sempre vista como herética. Partiu prematuramente, mas o seu trabalho e as suas ideias continuarão a florescer e a resistir ao teste do tempo.  

Nesta hora, e para terminar, permitam-me relembrar o que creio ser uma das passagens mais emblemáticas de How to be a Conservative e que resume a sua posição moderada a respeito do papel do Estado. Para Scruton, e em tradução livre da minha lavra, este

é, ou deve ser, tanto menos do que os socialistas requerem, e mais do que os liberais clássicos permitem. O Estado tem um objectivo, que é proteger a sociedade civil dos seus inimigos externos e das suas desordens internas. Não pode ser meramente o Estado ‘night watchman’ defendido por Robert Nozick, visto que a sociedade civil depende de relações que devem ser renovadas e, nas circunstâncias modernas, estas relações não podem ser renovadas sem a provisão colectiva do bem-estar. Por outro lado, o Estado não pode ser o fornecedor e regulador universal proposto pelos igualitários, visto que o valor e o compromisso emergem das associações autónomas, que florescem apenas se puderem crescer de baixo. Ademais, o Estado só pode redistribuir riqueza se a riqueza for criada e a riqueza é criada por aqueles que esperam ter uma parte dela.”

Descanse em paz, Sir Roger Scruton.

publicado às 21:45

Tradição, Razão e Mudança

por Samuel de Paiva Pires, em 14.12.18

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Tendo sido sondado por várias pessoas a respeito de como adquirir o meu livro, e enquanto este não chega às livrarias, informo que, por ora, podem adquiri-lo directamente junto de mim, pela módica quantia de 18 euros, bastando para tal enviar-me uma mensagem ou e-mail (samuelppires@gmail.com). Posso entregá-lo pessoalmente em Lisboa ou na Covilhã ou enviar por correio (acrescendo os portes no valor de 4,73 euros). Saliento que já só tenho 25 exemplares, pelo que sugiro que se apressem se quiserem ser os orgulhosos proprietários de um exemplar da obra mais aborrecida do ano com dedicatória e autógrafo com a caligrafia esteticamente mais pavorosa que possam imaginar, defeitos compensados largamente pela beleza da capa, onde figura uma pintura do Nuno Castelo-Branco, dos prefácios dos Professores José Maltez e Cristina Montalvão Sarmento e do posfácio da Ana Rodrigues Bidarra.

publicado às 10:45

Sobre o populismo

por Samuel de Paiva Pires, em 12.11.18

O Alexandre Homem Cristo está cheio de razão quando afirma que está em curso uma batalha pela linguagem centrada na definição de "populismo" - o novo fascista, neo-liberal ou comunista enquanto insulto no quotidiano politiqueiro. Cá no burgo, esta batalha, à semelhança do que acontece(u) com os epítetos anteriormente mencionados, faz-se em larga medida entre pessoas que sofrem de hemiplegia moral, políticos e comentadores que procuram colar aos adversários este rótulo como forma de deslegitimar a sua participação no processo político demo-liberal.

 

São, portanto, incapazes, de perceber ou admitir o que já tantos autores, de Margaret Canovan a Ernesto Laclau, ou mais recentemente, Cas Mudde e Jan-Werner-Muller, pese embora o sempiterno debate em torno da definição de populismo - como acontece com qualquer outro conceito na ciência política -, definiram enquanto características centrais do populismo, nomeadamente, a possibilidade de acomodar qualquer ideologia, de esquerda ou de direita (o populismo é uma ideologia de baixa densidade - na classificação de Mudde e Kaltwasser, que se socorrem desta expressão originalmente utilizada por Michael Freeden - ou seja, como escrevi num artigo para o Jornal Económicotem um reduzido conteúdo ideológico normativo, aparecendo normalmente ligado a outras ideologias que, essas sim, procuram articular determinadas concepções a respeito da natureza humana, da sociedade e do poder político, estabelecendo a partir destas uma determinada visão do mundo. O mesmo é dizer que o populismo se acopla a ideologias quer de esquerda quer de direita, existindo inúmeros exemplos de políticos e partidos de ambos os quadrantes que articulam uma retórica populista com as mais diversas ideologias. Existem, assim, subtipos do populismo, mas raramente se encontrará o populismo numa forma pura), a divisão da sociedade entre o povo puro e a elite corrupta e a pretensão de que a política seja a expressão da rousseauniana vontade geral, de que os populistas dizem ser os únicos e legítimos representantes.

 

Disto facilmente se percebe que, independentemente da forma como seja teorizado (ideologia, estilo discursivo ou estratégia política sendo as três formas mais comuns), o populismo é incompatível com a democracia liberal, daí que seja particularmente apropriada a definição mínima avançada por Takis Pappas (recomendação de Pedro Magalhães no Facebook) de populismo enquanto democracia iliberal. Esta definição mínima está, aliás, em linha com as considerações de Mudde e Kaltwasser a respeito dos impactos do populismo consoante a fase do processo de democratização em que surja, podendo ter impactos positivos sobre regimes autoritários, ao catalisar uma transição democrática, mas tendo frequentemente impactos negativos se surgir numa democracia liberal consolidada, representando uma ameaça que se pode concretizar num processo de desdemocratização (dividido em erosão democrática, ruptura democrática e repressão).

 

É por isto que, na minha humilde opinião, o populismo contemporâneo representa uma séria ameaça ao que Michael Doyle se refere como a zona de paz liberal, uma actualização da teoria da paz democrática derivada da ideia de paz perpétua de Kant, e, consequentemente, ao modo de vida a que estamos habituados no Ocidente. Mas sobre isto, passe a imodesta publicidade, falarei na próxima semana, no dia 21, no I Congresso de Relações Internacionais da Universidade Lusíada-Norte.

 

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publicado às 18:20

O declínio das democracias

por Samuel de Paiva Pires, em 26.04.18

Aqui fica o artigo sobre o declínio das democracias, da autoria de Gustavo Sampaio, publicado na edição de 29/03/2018 do Jornal Económico, para o qual contribuí com alguns comentários.

 

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publicado às 12:14

Programa para amanhã

por Samuel de Paiva Pires, em 22.04.18

Coloquio Pós-verdade.png

(Mais informação aqui.)

publicado às 23:19

Liberalismo, populismo e tecnocracia

por Samuel de Paiva Pires, em 09.04.18

Jan-Werner Mueller, "Can Liberalism Save Itself?":

Needless to say, technocratic rhetoric provides an excellent opening for populists, because it invites the very questions that populists are wont to ask: Where are the citizens in all this? How can there be a democracy without choices? This is how technocracy and populism can start to reinforce one another. They can seem like opposites – the intellectual versus the emotional, the rational versus the irrational. And yet each is ultimately a form of anti-pluralism.

The technocratic assertion that there is only one rational solution to a problem means that anyone who disagrees with that solution is irrational, just as the populist claim that there is only one authentic popular will means that anyone who disagrees must be a traitor to the people. Lost in the fateful technocratic-populist interplay is everything one might think of as crucial to democracy: competing arguments, an exchange of ideas, compromise. In the absence of democratic discourse, politics becomes a contest between only two options. And those committed to either side share the view that there are never any alternatives.

 

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publicado às 18:54

Preconceito, autoridade e razão

por Samuel de Paiva Pires, em 19.02.17

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Miguel Morgado, Autoridade (Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010), 77–78:

Em sentido literal, isento de cargas pejorativas, o preconceito é tão-somente «o julgamento que se faz antes de se ter examinado todos os elementos que determinam uma situação». Assim, um preconceito não é necessariamente um julgamento errado. Não faltará, porém, quem diga que obedecer à autoridade é confessar a indisponibilidade ou a incapacidade para superar as alegadas carências do preconceito. Grande parte do pensamento do século XVIII europeu, a que se convencionou chamar das «Luzes», não protestou outra coisa. Há preconceitos cuja relevância e valor se podem dever às limitações naturais da condição humana. Contudo, outros preconceitos há que perduram graças exclusivamente à autoridade, que aqui funcionam como uma espécie de assistência respiratória de julgamentos duvidosos. Neste caso, preconceito e autoridade aliam-se para perpetuar a servidão humana, ou pelo menos de certos estratos da humanidade, aqueles que se sujeitam à autoridade e adoptam o preconceito. É também deste modo que os adversários da autoridade denunciam sub-repticiamente a associação entre autoridade e a negação da razão, ou aplaudem a alegada inimizade entre a autoridade e a razão. Recusam-se a aceitar que a compreensão humana do mundo decorre também dos julgamentos que temos de pronunciar em variadíssimas ocasiões da nossa vida, que a razão não opera num vazio histórico, que a aceitação da autoridade é uma prática incontornável e, em circunstâncias felizes e oportunas, proporcionadora de um recto exercício das faculdades do entendimento, justificada por a autoridade, enquanto autoridade, e na medida em que é autoridade, ser igualmente fonte de verdade. Recusam-se a aceitar que a relação entre a autoridade e a razão não é a de um simples confronto, apesar de lhes ser mostrado que o reconhecimento da autoridade sugere desde logo que não se prescindiu da razão. Esse reconhecimento traz implícito o raciocínio segundo o qual vale a pena aceitar o julgamento da autoridade porque esta pronuncia julgamentos superiores aos meus. Daí que seja enganador dizer que a autoridade é imposta por alguém sobre outrem. Na realidade, se a autoridade tem de ser reconhecida e aceite, o termo «imposição» torna-se deslocado. Ademais, a obediência à autoridade, que se segue ao seu reconhecimento, continua a comprovar que estamos diante de um acto regulado pela razão, já que a superioridade dos ditames da autoridade sobre os nossos julgamentos pode, em princípio, ser sempre demonstrada racionalmente.

 

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publicado às 14:49

Liberais e conservadores precisam uns dos outros

por Samuel de Paiva Pires, em 13.02.17

George H. Nash, "Populism, I: American conservatism and the problem of populism":

In the late 1950s and early 1960s the three independent wings of the conservative revolt against the Left began to coalesce around National Review, founded by William F. Buckley Jr. in 1955. Apart from his extraordinary talents as a writer, debater, and public intellectual, Buckley personified each impulse in the developing coalition. He was at once a traditional Christian, a defender of the free market, and a staunch anticommunist (a source of his ecumenical appeal to conservatives).

 

As this consolidation began to occur, a serious challenge arose to the fragile conservative identity: a growing and permanent tension between the libertarians and the traditionalists. To the libertarians the highest good in society was individual liberty, the emancipation of the autonomous self from external (especially governmental) restraint. To the traditionalists (who tended to be more religiously oriented than most libertarians) the highest social good was not unqualified freedom but ordered freedom grounded in community and resting on the cultivation of virtue in the individual soul. Such cultivation, argued the traditionalists, did not arise spontaneously. It needed the reinforcement of mediating institutions (such as schools, churches, and synagogues) and at times of the government itself. To put it another way, libertarians tended to believe in the beneficence of an uncoerced social order, both in markets and morals. The traditionalists often agreed, more or less, about the market order (as opposed to statism), but they were far less sanguine about an unregulated moral order.

 

Not surprisingly, this conflict of visions generated a tremendous controversy on the American Right in the early 1960s, as conservative intellectuals attempted to sort out their first principles. The argument became known as the freedom-versus-virtue debate. It fell to a former Communist and chief ideologist at National Review, a man named Frank Meyer, to formulate a middle way that became known as fusionism—that is, a fusing or merging of the competing paradigms of the libertarians and the traditionalists. In brief, Meyer argued that the overriding purpose of government was to protect and promote individual liberty, but that the supreme purpose of the free individual should be to pursue a life of virtue, unfettered by and unaided by the State.

 

As a purely theoretical construct, Meyer’s fusionism did not convince all his critics, then or later. But as a formula for political action and as an insight into the actual character of American conservatism, his project was a considerable success. He taught libertarian and traditionalist purists that they needed one another and that American conservatism must not become doctrinaire. To be relevant and influential, it must stand neither for dogmatic antistatism at one extreme nor for moral authoritarianism at the other, but for a society in which people are simultaneously free to choose and desirous of choosing the path of virtue.

 

(...).

 

What do conservatives want? To put it in elementary terms, I believe they want what nearly all conservatives since 1945 have wanted: they want to be free; they want to live virtuous and meaningful lives; and they want to be secure from threats both beyond and within our borders. They want to live in a society whose government respects and encourages these aspirations while otherwise leaving people alone. Freedom, virtue, and safety: goals reflected in the libertarian, traditionalist, and national security dimensions of the conservative movement as it has developed over the past seventy years. In other words, there is at least a little fusionism in nearly all of us. It is something to build on. But it will take time.

 

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publicado às 16:54

Programa para amanhã

por Samuel de Paiva Pires, em 02.02.17

Amanhã, dia 3 de Fevereiro, no International Congress of Political Psychology, que tem lugar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, entre as 12:00 e as 13:00, farei uma comunicação subordinada à temática que abordei na minha tese de doutoramento, "Tradição, razão e mudança", no Laboratório III - Investigação em Estudos Políticos.

publicado às 20:17

17 de Janeiro de 2017

por Samuel de Paiva Pires, em 17.01.17

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17 de Janeiro de 2017 ficará indelevelmente gravado na minha memória como o dia em que concluí o doutoramento. Agradeço aos membros do júri das provas públicas que hoje prestei pelos comentários, críticas e pelo estimulante debate. Aproveito ainda para agradecer novamente a todos os que, de alguma forma, me apoiaram nesta caminhada, em especial à Ana Rodrigues Bidarra, sem a qual esta aventura não teria sido possível.

publicado às 22:06

Provas públicas de doutoramento

por Samuel de Paiva Pires, em 04.01.17

Convido os interessados a estarem presentes nas minhas provas públicas de doutoramento que terão lugar na Aula Magna Professor Doutor Adriano Moreira, no ISCSP-UL, no dia 17 de Janeiro de 2017, pelas 15h00. 

 

O júri será composto pelos Professores Doutores Manuel Meirinho Martins (Presidente do júri), José Adelino Maltez (ISCSP-UL), Cristina Montalvão Sarmento (ISCSP-UL), Miguel Morgado (IEP-UCP), André Azevedo Alves (IEP-UCP), André Freire (ISCTE), Pedro da Fonseca (ISCSP-UL) e Isabel David (ISCSP-UL).

 

A minha tese é subordinada à temática "Tradição, razão e mudança", podem ficar a conhecer alguns breves excertos, que divulgarei ao longo dos próximos dias, no Facebook e aproveito ainda para aqui deixar o abstract:

 

Nesta tese considera-se a relação entre tradição, razão e mudança que marca a modernidade e diversas correntes da teoria política moderna e contemporânea. Esta relação é analisada à luz das ideias de autores liberais, conservadores e comunitaristas, procurando-se contribuir para iluminar divergências e convergências entre estas teorias políticas. Desta forma, as noções de tradição, razão e mudança são abordadas colocando em diálogo as três teorias através de autores que consideramos serem representativos destas e que contribuíram significativamente para a temática em análise, nomeadamente Friedrich Hayek, Karl Popper, Michael Polanyi e Edward Shils, no que ao liberalismo diz respeito; Edmund Burke, Michael Oakeshott e Roger Scruton, por parte do conservadorismo; e Alasdair MacIntyre, no que ao comunitarismo concerne. Procura-se realizar uma interpretação, uma síntese teórica, resultante da sistematização das ideias destes autores e demonstrar que tradição e razão, na concepção do racionalismo crítico ou evolucionista não se opõem e que, na verdade, estão intrinsecamente ligadas, contrariando a tese do racionalismo construtivista de que a razão tem de rejeitar a tradição. No que concerne à componente empírica, procura-se aplicar a abordagem metodológica neo-institucionalista, em particular na sua variante discursiva, combinada com a síntese teórica interpretativa da relação entre tradição, razão e mudança – ou seja, com uma abordagem tradicionalista – à análise da ideia de sociedade civil enquanto tradição, realizando, para o efeito, uma sistematização da evolução deste conceito, evidenciando como foi originado, como foi transmitido e alterado ao longo do tempo, como se cindiu e ramificou em várias tradições distintas, incorporando as tradições políticas liberal e marxista, mostrando que estas duas tradições competiram entre si no século XX e demonstrando ainda de que forma a prevalência da tradição liberal contribui para a crise do Estado soberano.

publicado às 11:59

A perda como essência do conservadorismo (2)

por Samuel de Paiva Pires, em 22.09.16

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 Andrew Sullivan, A Alma Conservadora:

Não constitui, pois, grande surpresa que o primeiro grande texto sobre o conservadorismo anglo-americano, as Reflections on the Revolution in France (Reflexões sobre a Revolução Francesa) de Edmund Burke, verse todo ele sobre a perda. Trata-se de um longo discurso desesperado e eloquente em relação à injustificada destruição da velha ordem. Quando os revolucionários franceses tomaram de assalto a Bastilha e deitaram abaixo uma monarquia e a Igreja, refizeram o calendário e executaram milhares de dissidentes em nome de uma nova era para a humanidade, Burke sentiu, antes de mais, uma enorme tristeza. O seu primeiro impulso foi ficar de luto pelo que se perdera. Ficou de luto embora nada daquilo lhe pertencesse. Não era a mesma coisa do que, na verdade, defender a velha ordem, a qual a muitos títulos era indefensável, tal como Burke acaba por admitir. Era simplesmente para lembrar aos seus companheiros humanos que a sociedade é uma coisa complicada, que as suas estruturas se desenvolvem não por meio de acidentes mas por meio da evolução, e que mesmo os laços mais imperfeitos que unem os indivíduos não podem ser cortados à toa em nome de uma ideia de perfeição que ainda nem sequer tomou forma.

publicado às 21:12

A perda como essência do conservadorismo

por Samuel de Paiva Pires, em 20.09.16

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Andrew Sullivan, A Alma Conservadora:

 

Todo o conservadorismo parte de uma perda.

 

Se nunca soubéssemos o que é a perda, nunca sentiríamos a necessidade de conservar, e isso é a essência de qualquer conservadorismo. As nossas vidas, uma série de momentos desconectados de experiência, simplesmente mover-se-iam sem esforço, deixando o passado para trás quase sem nenhuma retrospectiva. Mas o facto de o ser humano ter autoconsciência e memória força-nos a confrontar o que já passou e o que poderia ter sido. E nesses momentos de confrontação com o tempo somos todos conservadores.”


(..)

 

Há um bocadinho de conservadorismo na alma de toda a gente – mesmo na daqueles que orgulhosamente dizem que são liberais. Ninguém é imune à perda. Todos envelhecemos. Podemos observar o nosso próprio envelhecimento e declínio; vemos como as novas gerações nos suplantam e nos ultrapassam. Cada vida humana é uma série de pequenas e grandes perdas – perdemos os nossos pais, a juventude, o optimismo fácil dos jovens adultos e a esperança incerta da meia-idade – até que nos confrontamos com a última perda, a da nossa própria vida. Não temos maneira de o evitar; e a força e a durabilidade do temperamento conservador parte deste facto, e também lida com ele. A vida é impermanente. A perda é real. A morte é certa. Não há nada que possa mudar isto – nenhuma nova aurora da humanidade, nenhuma maravilha tecnológica, nenhuma teoria, ideologia ou governo. Intrínseca à experiência humana – aquilo que nos separa dos animais – é a memória das coisas passadas. E é também a transformação dessa memória numa identidade consciente de si mesma. Por isso a perda imprime-se nos nossos espíritos e almas e forma-nos. É parte daquilo que somos.

publicado às 22:27

Contra a utopia libertária

por Samuel de Paiva Pires, em 09.09.16

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Platão afirma que da liberdade absoluta nasce a tirania e Hobbes salienta que nesse estado dá-se a guerra de todos contra todos, enquanto Popper acrescenta que é nesse estado que os fortes escravizam os fracos. Hayek assinala que a permissão de fazer coisas específicas não é liberdade, embora possa ser chamada de "uma liberdade", e que a liberdade é compatível com a proibição de fazer coisas específicas, embora não exista se for necessária permissão para fazer a maioria das coisas que se possa fazer. O mesmo Hayek não perdeu tempo com a teoria do contrato social, a teoria que para Hegel, citando Scruton, "é intoleravelmente ingénua", dado que “Tenta construir as nossas obrigações políticas somente alicerçadas no modelo das relações consensuais. Mas a vida política é uma coisa complexa, com muitos níveis de obrigação,” devendo ser distinguidas as obrigações que podemos escolher livremente, ou seja, as da sociedade civil, daquelas que não podemos, como as que temos em relação à família. Por isso, de acordo com Hegel, “não existe qualquer perspectiva coerente do Estado que não considere a nossa obrigação em relação ao Estado como não escolhida e herdada."

 

Conservadores como Burke, Oakeshott e Scruton sublinham a importância do património cultural e institucional que herdamos e transmitimos às gerações seguintes, ou seja, a tradição, que comunitaristas como Alasdair MacIntyre e Charles Taylor consideram essencial à identidade de cada comunidade. Os comunitaristas reagem às ideias de Rawls, contestando a concepção individualista e as pretensões universalistas do liberalismo e dando especial relevo às tradições e particularidades de cada sociedade, à semelhança do conservadorismo. É destas tradições e particularidades, da identidade de cada comunidade, que emergem os critérios de razão e justiça. Citando Daniel Bell, "o julgamento moral e político dependerá da linguagem das razões e do quadro interpretativo no qual os agentes vêem o seu mundo, daí que não faça sentido começar o empreendimento político abstraindo-o das dimensões interpretativas das crenças, práticas e instituições humanas", pelo que a ideia liberal do Estado neutral é uma ilusão. 

 

Scruton assinala que o libertarianismo, especialmente à direita, com a sua valorização da liberdade acima de tudo e a pretensão de libertar os indivíduos do controlo estatal, descuida a “necessidade de comunidade e de uma identidade que é maior do que a vontade individual,” ao passo que o liberalismo clássico descuida igualmente a comunidade devido à sua concepção filosoficamente individualista “da pessoa humana, e ao seu fracasso em ver que a pessoa é um artefacto social, cuja liberdade é adquirida apenas na condição de sociedade.” De acordo com John Kekes, tanto o liberalismo como todos os oponentes do conservadorismo enfatizam determinados valores ou condições das vidas boas em detrimento dos restantes, ao passo que o conservadorismo tem como traço distintivo rejeitar este tipo de atitude e como objectivo “identificar, manter e proteger o sistema formado por todas as condições políticas das vidas boas.” Como escrevi há tempos, a defesa de um valor acima de todos os outros em qualquer tempo e lugar, independentemente das circunstâncias práticas, consubstancia a política dos mentalmente preguiçosos.

 

Ademais, continuando a citar Kekes, “os conservadores acreditam que não se pode especificar com antecedência que condição deve ter precedência e que qualquer uma pode ter precedência temporariamente, ao passo que os seus oponentes acreditam no contrário.” Uma dada situação pode exigir que se atribua a máxima importância a uma determinada condição ou grupo de condições sobre outra condição ou grupo de condições, e isto “dá à reflexão dos conservadores uma flexibilidade de que os seus oponentes carecem.” A flexibilidade do pensamento conservador resulta de duas características, sendo a primeira a de que "ao contrário dos seus oponentes, os conservadores não têm ideias pré-concebidas acerca dos arranjos e das condições que devem ter precedência sobre outras em casos de conflito. O que deve ter precedência depende sempre em todos os conflitos e em todos os contextos do que é mais provável que contribua para a realização conjunta de todas as condições requeridas pelas vidas boas. A segunda é que, ao contrário dos seus oponentes, os conservadores olham para a história da sua própria sociedade para decidir que arranjos são susceptíveis de levar à realização conjunta das condições que são necessárias para as vidas boas. E o que ganharão de uma reflexão sobre a sua história são os arranjos que resistiram ao teste do tempo e continuaram a comandar a fidelidade das pessoas que viveram na sua sociedade", embora a decisão de proteger determinadas condições por parte dos conservadores não resida no facto de estas se terem tornado tradicionais, mas deriva de serem realmente condições de vidas boas, até porque, citando novamente Kekes, "As mudanças são, claro, frequentemente necessárias porque as tradições podem ser perversas, destrutivas, embrutecedoras, negativas e, assim, não conducentes a vidas boas. É parte do propósito dos arranjos políticos prevalecentes distinguir entre tradições que são inaceitáveis, suspeitas mas toleráveis, e merecedoras de encorajamento – por exemplo, escravatura, pornografia e educação universitária. As tradições que violam os requisitos mínimos da natureza humana são proibidas. As tradições que historicamente fizeram contribuições questionáveis para as vidas boas podem ser toleradas mas não encorajadas. As tradições cujo registo histórico atesta a sua importância para as vidas boas são acarinhadas." 

 

Mas como muitos dos ditos liberais ou libertários desconhecem tudo isto ou preferem ignorá-lo, continuam a viver na utopia, na pretensão de alcançar a liberdade absoluta, a destruição do Estado e o endeusamento do mercado. Nesta forma de pensar, são iguais aos comunistas, que, por seu lado, sonham com a servidão absoluta, o endeusamento do Estado e a destruição do mercado. Uns e outros são os principais responsáveis pelo descrédito das suas próprias ideias.

publicado às 09:11

Da crítica comunitarista ao liberalismo

por Samuel de Paiva Pires, em 01.07.16

William M. Curtis (tradução minha de um excerto retirado da Encyclopedia of Political Theory editada por Mark Bevir e publicada pela Sage em 2010):

A teoria liberal parece esquecer-se do facto de que somos membros de famílias e comunidades antes de nos identificarmos como indivíduos com interesses e direitos distintos. Os comunitaristas argumentam que a ênfase liberal nos esquemas de direitos é problemática porque reduz as pessoas a átomos auto-interessados, portadores de direitos que exigem apenas a liberdade negativa para prosseguir objectivos individualistas. O prosseguimento do bem, argumentam eles, não é uma actividade radicalmente individualista, mas apenas tem significado no contexto de uma comunidade com tradições éticas historicamente desenvolvidas. É porque somos socializados nestas tradições éticas herdadas que podemos começar a formular a nossa concepção do bem. As pessoas não são “seres livres” metafísicos que podem desligar-se de todos os seus valores herdados e ligações comunais e escolher “livremente” os seus fins como os liberais supõem (“escolher na base do quê?” perguntam os comunitaristas). As crenças, desejos e relações que compõem o eu são irredutivelmente sociais e históricos: Quem nós somos e que objectivos prosseguimos são uma função das relações historicamente condicionadas que temos com aqueles entre quem vivemos.

publicado às 17:17

Comunismo e fascismo

por Samuel de Paiva Pires, em 11.06.16

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Roger Scruton, Fools, Frauds and Firebrands:

It is testimony to the success of communist propaganda that it has been able to persuade so many people that fascism and communism are polar opposites and that there is a single scale of political ideology stretching from ‘far left’ to ‘far right’. Thus, while communism is on the far left, it is simply one further stage along a road that all intellectuals must go in order not to be contaminated by the true evil of our times, which is fascism.

It is perhaps easier for an English writer than it is for an Italian to see through that nonsense, and to perceive what it is designed to conceal: the deep structural similarity between communism and fascism, both as theory and as practice, and their common antagonism to parliamentary and constitutional forms of government. Even if we accept the – highly fortuitous – identification of National Socialism and Italian Fascism, to speak of either as the true political opposite of communism is to betray the most superficial understanding of modern history. In truth there is an opposite of all the ‘isms’, and that is negotiated politics, without an ‘ism’ and without a goal other than the peaceful coexistence of rivals.

Communism, like fascism, involved the attempt to create a mass popular movement and a state bound together under the rule of a single party, in which there will be total cohesion around a common goal. It involved the elimination of opposition, by whatever means, and the replacement of ordered dispute between parties by clandestine ‘discussion’ within the single ruling elite. It involved taking control – ‘in the name of the people’ – of the means of communication and education, and instilling a principle of command throughout the economy.

Both movements regarded law as optional and constitutional constraints as irrelevant – for both were essentially revolutionary, led from above by an ‘iron discipline’. Both aimed to achieve a new kind of social order, unmediated by institutions, displaying an immediate and fraternal cohesiveness. And in pursuit of this ideal association – called a fascio by nineteenth-century Italian socialists – each movement created a form of militar government, involving the total mobilization of the entire populace, which could no longer do even the most peaceful-seeming things except in a spirit of war, and with an officer in charge. This mobilization was put on comic display, in the great parades and festivals that the two ideologies created for their own glorification.

Of course there are diferences. Fascist governments have sometimes come to power by democratic election, whereas communist governments have always relied on a coup d’état. And the public ideology of communism is one of equality and emancipation, while that of fascism emphasizes distinction and triumph. But the two systems resemble each other in all other aspects, and not least in their public art, which displays the same kind of bombast and kitsch – the same attempt to change reality by shouting at the top of the voice.

It will be said that communism is perhaps like that in practice, but only because the practice has betrayed the theory. Of course, the same could be said of fascism; but it has been an important leftist strategy, and a major component of Soviet post-war propaganda, to contrast a purely theoretical communism with ‘actually existing’ fascism, in other words to contrast a promised heaven with a real hell. This does not merely help with the recruitment of supporters: it reinforces the habit of thinking in dichotomies, of representing every choice as an either/or, of inducing the thought that the issue is simply one of for or against.

publicado às 19:22

Um resumo do pensamento político de Edmund Burke

por Samuel de Paiva Pires, em 20.04.16

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 Peter Berkowitz, "Debate Club":

Burke’s thinking is informed by an opinion about nature very different from Paine’s conception of solitary and asocial man. For Burke, man is by nature a social animal: Human beings are always living in a complex web of relations to other human beings and bound by obligations that tie each individual not only to the living but also to the dead and those not yet born. Political society does not derive its legitimacy from consent but rather from its ability to satisfy human needs. Individual liberty may be the highest need satisfied by politics, but satisfying it does not consist primarily in the enumeration of rights but in respecting duties, exercising restraint, maintaining soundly structured institutions, and adjusting laws to the habits, sentiments, and passions of the people. Political analysis is led astray by the search for abstract principles of reason; it should rely instead on study of “the history and character of one’s own society.” Principles of justice are embedded in long-standing practices and traditions, discerned on the basis of experience, and implemented by prudence or practical judgment. Since “change is the most powerful law of nature,” statesmen must constantly adjust, balance, and calibrate, crafting reforms that proceed gradually, incrementally, and in keeping with the spirit of the people and the principles that have served them well. While Burke believed in human equality, he thought that preparation for the hard task of governing required the kind of leisure and education typical of a natural aristocracy within a free society. Because of the limits of human reason—both its inability to resolve the deepest philosophical issues and its weakness in directing the passions and disciplining the imagination—a large role in political life must be reserved for “prescription,” or the presumption in favor of the long-standing institutions of civil society, particularly family and faith, that mold morals. Political parties “must ever exist in a free country” since citizens uniting around their favored principles is the best way to nurture the variety of principles on which freedom depends. Revolution of the sort seen in France is always wrong; it undermines the freedom in whose name it is undertaken by destroying the manners, mores, and attachments that restrain the human lust for power.

publicado às 09:00

O conservadorismo não se confunde com o imobilismo

por Samuel de Paiva Pires, em 10.02.16

No espaço de alguns dias, li um cronista do Público e um blogger do Blasfémias a classificarem como conservadora a extrema-esquerda portuguesa. Se se dessem ao trabalho de ler qualquer coisinha sobre o conservadorismo, poupavam-se e poupavam-nos ao disparate e erro banal de confundir o conservadorismo com o imobilismo. Ademais, ficariam a saber que os partidos políticos conservadores, onde existem, se situam à direita do espectro partidário e defendem, na maior parte dos casos, o diametralmente oposto ao defendido pela esquerda. Oakeshott, por exemplo, em "Rationalism in Politics", explica facilmente que, na verdade, é a política ideológica do racionalismo construtivista, característica da esquerda, que se caracteriza pela inflexibilidade ao passo que o pensamento conservador se pauta precisamente pela flexibilidade, como Kekes demonstra em A Case for Conservatism. Há quem diga que é difícil ser liberal em Portugal, mas o que é mesmo complicado é ser conservador, porque a maior parte da intelectualidade indígena desconhece minimamente o que seja o conservadorismo.

publicado às 10:53






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