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Havia feito a promessa de que não tocaria no assunto. Havia jurado que não me deixaria capturar. Mas não fui bem sucedido, falhei. Fui contaminado pela verborreia inflamatória. E não serei o único com estes sintomas. Refiro-me ao estado comichoso com prognóstico não-reservado, que não é passível de ser tratado com corticoides ou anti-histeriónicos mediáticos. A variante em causa é bem conhecida dos portugueses e, debaixo de certas condições, a maleita emerge com muita intensidade. Basta haver alguma humidade judicial e o bicho ataca a garganta. A partir desse momento as cordas vocais são as mais afectadas, lançando conjecturas declinatórias e são-de-bitaites da boca para fora, directa ou indirectamente aos alvos preferenciais: procuradores, juízes, e os demais macróbios que se lhe atravessem pelo caminho — façam parte ou não da flora raivosa de onde brotam as acusações. José Sócrates necessita urgentemente de um antídoto eficaz, um xarope meloso, um supositório administrado ali mesmo por um oficial de justiça, em directo, para travar a insolência espirrada na barra do tribunal e à porta do mesmo. A ciência judicial ainda não desenvolveu ferramentas adequadas para manusear este case-study. O prurido de arguido, à falta de melhor designação, é um estado bacteriológico constante, imune a doses cavalares de evidências e argumentações legais. A resistência demonstrada é digna de nota, de reconhecimento. Os portugueses são mesmo muito corajosos e complacentes, mas não sabem a quem recorrer, como se defender. Levar com isto todos os dias é obra. A sentença — um buffet de xingamentos e impropérios servido diariamente a todos os compatriotas.
Foi condenado em 399 a.C, Janeiro, com 71 anos, por uma acusação de "impiedade": Foi acusado de ateísmo e de corromper os jovens com a sua filosofia, mas na realidade, estas acusações encobriam ressentimentos profundos contra Sócrates por parte dos poderosos da época.
Tarifa fica aqui tão perto, mesmo ao lado, em Espanha, e por isso estamos obrigados a colocar o dedo na ferida. Neste caso nas tarifas. Por esta altura do calendário estamos todos feitos num (c)oito dos diabos no que respeita ao dia seguinte. Mal conseguimos acordar e já estamos a ser equivocados e defraudados nas nossas expectativas taxativas. A guerra das tarifas não chega a ser multipolar nem unipolar. Mas é certamente bipolar, binária. A doutrina da imprevisibilidade (a expressão não é minha) foi eleita para descrever a ação política de Donald Trump. O estado de ansiedade gerado levanta dúvidas sobre a eficácia da abordagem não apenas sobre os aliados dos E.U.A., mas também no que concerne aos adversários. No entanto, teria algum apreço em considerar um dos efeitos secundários que paradoxalmente poderá beneficiar a economia americana. A queda acentuada do dólar americano (USD) à primeira vista pode ser considerada um efeito nefasto, mas não é assim tão linear. A diluição do valor do USD significa várias coisas. Por um lado beneficia as exportações americanas (não nos esqueçamos que os E.U.A. são o maior produtor agrícola do mundo) e, por outro, corresponde a um modo de mitigar a dívida, expressa em USD, que se vê diminuída na contabilidade global do deve e do haver. O Banco Central Europeu, por seu turno, anunciou há dias que a meta da inflação (de 2%) havia sido atingida na Zona Euro. A declaração proferida por Christine Lagarde tem implicações práticas. Se as coisas resvalarem de um modo sério na economia europeia, não haverá outra alternativa que não a emissão de mais dívida e reduzir a taxa de juro de referência de um modo mais acelerado. Sejam quais forem as hipóteses, parece-me inevitável que assistemos a algum caos sistémico global que acarreterá (re)inflação. Em suma, as tarifas do dia, efectivas ou imaginadas, movem mercados e montanhas. Independentemente do efectivo planeamento estratégico ou de uma intenção clara, não existem dúvidas de que Trump está a provocar deslocações tectónicas. Premissas operativas consideradas sagradas devem ser reavaliadas com uma dose reforçada de realpolitik da parte de todos os atores globais. Nesse sentido, arrisco avançar com uma expressão cronométrica (esta sim minha) — realtimepolitik, que me parece adequada para descrever o fenómeno do devir inconstante da política: ou seja aquilo que poderá vir a ser não será o mesmo daquilo que já foi. E é neste compasso de arritmia que marchamos sem sabermos ao certo como corrigir a passada que ainda não demos.
Era mais do que esperado que o bromance de Donald Trump e Elon Musk acabasse à estalada. Ainda não sabemos que contornos assumirá o putativo America Party do secretário-geral da Tesla, do X e do SpaceX. Não vislumbramos sequer quais os camaradas libertários que poderão alinhar-se na comissão política do novo partido. Mas já atingimos o patamar da imprevisibilidade no qual todos os cenários são possíveis. Assim sendo, podemos imaginar uma coligação mais alargada que incluiria nomes coloridos como Larry Ellison (Oracle), Steve Davis (Boring Company) ou Tucker Carlson (anfitrião do programa televisivo Tucker Carlson Uncensored). Porque para criar mossa na armadura de Trump e inclinar a Casa Branca não bastam feijões, perdão, biliões. Para contrariar a devastação que certamente será infligida a Musk, o movimento-partido deve fazer valer várias frentes em simultâneo. O Big Beautiful Bill certamente que fará a sua parte na geração de ainda mais insatisfação em relação à administração americana, mas a política não é uma ciência exacta. Ninguém sabe ao certo que desfecho terá a Guerra das Tarifas na psique coletiva dos americanos que têm sido testemunhas silenciosas de tácticas indirectas, de insinuações e de ameaças. É necessário inaugurar uma sebenta para albergar a nova linguagem empregue pelo homem mais poderoso do mundo. Mas Musk já declarou que não deseja conquistar todos os eleitores americanos. Bastar-lhe-á um punhado de lugares electivos para servir de travão a certos objectivos políticos da administração Trump. Aguardemos com expectativa para assistir ao duelo de titãs — os SpaceXutos do Musk e os pontapés de Trump.
créditos fotográficos: France24
Eis-me, John August Wolf. Eis — Tristeza não tem fim, felicidade sim. O meu pai, John Howard Wolf, partiu a 20 de fevereiro deste ano. Mas antes, em Novembro de 2024, tive o privilégio da sua presença na defesa da minha tese de doutoramento (Ph.D.) na Nova School of Law em Campolide, Lisboa. A toga que trajei, a mesma por si utilizada na sua defesa de Ph.D., há mais de 50 anos na Universidade de Pittsburgh, havia também sido envergada pelo meu avô e seu pai, Howard August Wolf, quando fora agraciado com um doutoramento honoris causa nos anos 60 do século passado. Este cordão académico é mais do que um mero laço de (con)descendência e de titularidade, de geração em geração. É uma corrente ética e moral, com firmes alicerces na ideia da superação da nossa insignificância perante um mundo que se nos avassala sem misericórdia. E o senhor meu pai partiu intensamente amargurado pela paisagem disfuncional de uma ordem global em célere desagregação. O défice de civilização não é um fenómeno de pertença exclusiva a uma nação. O mal é uma doença degenerativa, um choque existencial que obriga à reescrita de pressupostos tidos como sagrados, intocáveis. Conceitos como ideologia, paradigma, crença, humanidade ou verdade perderam o seu valor intrínseco e a sua expressão facial. O mundo obitou-se, desistiu da genética positiva, como se o fim da história coincidisse com a perversão do futuro. Os atos vis oscilam numa balança que não corporiza a ideia de justiça ou de equidade. É esta a sina que sentimos, de um modo mais dermatológico ou no âmago da coluna política fissurada. A perda não é qualificável, assim como a dor que não é congnoscível. O torpor é uma vibração que atravessa os fusos humanos, percorre os vasos que canalizam a esperança que muitos dizem ser a última a querer morrer. E somos obrigados. Somos obrigados à arqueologia de razões, em busca de argumentos, de axiomas falidos que ditaram outros declínios, porque quisemos sempre imperar quando deveríamos singrar. A melodia sincopada navega o luto em luta, o esforço quiçá infrutífero que apenas nos levanta do chão naufragado para tornarmos a tombar com a mesma récita auspiciosa que passa de pais para filhos, e de filhos para tribos inteiras, num ritual bélico que almeja a obliteração da escuridão — que imagem críptica adequada. Mas não é o fim em si, nem a intromissão. Perguntemos; que deuses invocaremos para retornarmos à terra enrolados num imenso manto de pudor? Eis. Eis-nos. Earth.
Muitas lições e ilações podem ser retiradas dos resultados eleitorais de hoje. Os comentadores televisivos estão a focar-se nas lições e efeitos de curto prazo, especialmente os atinentes à formação de governo (será que a AD se coligará com a IL?) e à liderança do PS. Iremos ainda ouvir falar muito da taxa de abstenção e da incapacidade dos partidos centrais do regime responderem aos problemas do país, e assistiremos também a vaticínios sobre a duração do próximo governo. Além disto, continuarão todos, comentadores, jornalistas e partidos, a ignorar as mudanças estruturais na sociedade portuguesa que estão intrinsecamente relacionadas com o crescimento do Chega e que irão contribuir fortemente para a erosão do regime democrático.
A principal mudança prende-se com a penetração do Chega nas camadas mais jovens da população portuguesa, designadamente os adolescentes do ensino básico e secundário. Há um conjunto de factores que permitiu ao Chega fidelizar muitos membros deste segmento demográfico. A longa decadência do sistema educativo e a ascensão das redes sociais, a que veio mais recentemente juntar-se a emergência da Inteligência Artificial - que para qualquer sistema educativo representa um autêntico retrocesso civilizacional -, facilitaram muito o contacto do Chega com estes jovens, que estavam já à mercê de um ambiente digital tóxico.
O que o Chega tem vindo a fazer é um combate cultural de longo prazo focado naqueles que serão os eleitores do futuro, que estão muito mais vulneráveis à desinformação e manipulação do que quaisquer anteriores gerações estiveram. Continuar a ignorar este problema será dramático para o regime democrático. Aliás, filósofos políticos tão diversos quanto Platão, John Locke e Rousseau debruçaram-se particularmente sobre o tema da educação e a sua importância para os regimes políticos.
A este propósito, aqui ficam alguns excertos de uma entrevista que eu e a Professora Isabel David demos no ano passado ao International Journal of Iberian Studies:
SPP: (…). Chega, on the other hand, has broken that restraint, activating these prejudices and deeply polarizing both Parliament and Portuguese society. We are already seeing the effects. Culturally, academically, and socially, things are not as healthy as they were before Chega became a significant political force.
ID: Samuel’s point about social media strategy is crucial. This phenomenon isn’t limited to Portugal; it’s happening all over Europe, the United States and Brazil. Younger generations are drawn in by parties like Chega through platforms like TikTok, where they have a huge following. I’ve asked students why they find Chega’s social media appealing, and they say it’s because the content is dynamic, concise and speaks their language. Figures like Chega’s Rita Matias, who is young and relatable, know how to connect with them. However, Chega isn’t only appealing to younger voters. Like other populist right-wing parties, they attract older, less educated voters too. But it’s their effectiveness with the younger generation that’s particularly concerning. My generation and older ones don’t speak the same language as these parties, and that’s partly why we aren’t as effective at countering them. Parties like the Left Bloc may address young people’s concerns but aren’t as popular on social media. While the Socialists and PSD are trying to catch up, and the IL has a relatively strong social media presence, no one has managed to grow like Chega.
SPP: The IL is another party worth noting. They target young voters and are skilled at marketing, with strong messaging about taxes and affordable housing. Yet they lack the polarizing, anti-establishment appeal that Chega has. They’re more of a civil, centre-right party and they don’t engage in the kind of racist rhetoric that Chega does. There’s a pervasive idea in Portugal that the current regime is dominated by the left, and many right-wing intellectuals argue that political correctness stifles free speech. This is a key part of Chega’s appeal. They position themselves as the ones challenging political correctness and fighting against a supposed left-wing cultural dominance. For young people who feel disillusioned or rebellious, this message can be very attractive.
DK: In your opinion, how do you think education, particularly in the humanities, can serve as a counterbalance to the appeal of these right-wing movements?
ID: That’s a really tough question. I believe the task ahead is monumental. One of the main issues is the overwhelming dependence on social media. This brings us to the broader issue of the education system. It’s failing to provide the critical thinking skills and foundational knowledge that young people need. There’s too much reliance on gadgets and not enough emphasis on books and traditional learning. We need to reduce, if not completely eliminate, the use of mobile phones in the classroom. There needs to be a serious conversation about what is right and what is wrong. (…).
Many students have told me that until they got to university, they didn’t know the difference between right and wrong when it came to politics. They were heavily influenced by what they saw on social media, and it was only through academic debate and discussion that they started to form informed opinions. This problem isn’t limited to social sciences students. In fields like engineering and health, students are even more disconnected from political engagement. Many simply don’t care about politics, don’t trust politicians and get most of their information from social media, which leaves them vulnerable to misinformation. Addressing this requires a serious conversation involving universities, democratic institutions and families. We need to rebuild the connection between education, values and critical thinking, because the future of our democracies depends on it.
SPP: The impact of social media is very concerning. Jonathan Haidt, in his book The Anxious Generation (Penguin Press, 2024), and Michel Desmurget, in La Fabrique du crétin digital (‘The Digital Idiot Factory’) (Seuil, 2019), talk about how social media companies are effectively holding our children hostage. Ironically, the engineers who designed these platforms send their children to schools that don’t allow mobile phones or iPads because they know the harm they can cause. Yet, as a society, we allow children to be overexposed to technology. We need to push back against this.
Acaba de ser publicado o livro "Liberalismo - Da Teoria à Formação de Governos", resultante de um projecto de investigação liderado pelo Bruno Ferreira Costa, apoiado pelo Instituto Mais Liberdade e desenvolvido no PRAXIS - Centro de Filosofia, Política e Cultura da Universidade da Beira Interior.
Da minha parte, tive o gosto de contribuir com dois capítulos intitulados "Os fundamentos do liberalismo" e "As ramificações do liberalismo moderno e contemporâneo", nos quais procuro oferecer uma visão panorâmica, ainda que necessariamente selectiva, da evolução da teoria liberal, abordando as suas ideias e autores fundamentais.
O livro já está disponível no site das Edições Sílabo, bem como na Bertrand.
A primeira sessão de apresentação decorrerá no dia 21 de maio, pelas 15:00, no auditório 2.12 da Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior, e contará com a apresentação por parte de Carla Castro, que prefaciou a obra.
Luís Montenegro poderia ter-nos poupado ao penoso espectáculo desta tarde, cujo desfecho estava mais do que anunciado. Já se tinha percebido que o Primeiro-Ministro não tem respeito pela função (“circunstância”, nas palavras do próprio) que desempenha, mas foi particularmente ilustrativo do irregular funcionamento das instituições vermos o Governo a aventar uma proposta de Comissão Particular de Inquérito em que o escrutinado é que decidiria o tempo de que os escrutinadores disporiam, numa clara intromissão do executivo no poder legislativo. Ao actuarem quase exclusivamente no domínio da táctica, acabaram a violar princípios basilares da democracia liberal e do republicanismo. Verdadeiramente notável.
Entretanto, com a rejeição da moção de confiança, chega ao fim um Governo despudoradamente classista e elitista, que governou a pensar essencialmente em determinados grupos e faixas etárias e para o qual a generalidade da população entre os 36 e os 67 anos de idade serviu apenas para pagar impostos que financiaram medidas e políticas públicas socialmente injustas e fiscalmente desiguais, cujo objectivo principal foi fidelizar determinados segmentos do eleitorado que o anterior Governo do PSD e CDS tinha alienado. A tão propalada estabilidade política não passa de uma farsa com que o Governo tentou escamotear a tragédia da continuada decadência de sectores cruciais para o desenvolvimento do país e o futuro da população, como a saúde e a educação, a habitação e a justiça. Abre-se, agora, uma janela de oportunidade para que um novo Governo tente fazer mais e melhor - e, de preferência, que não tenha problemas de carácter ético e/ou legal que, pese embora aproveitem invariavelmente aos populistas desavergonhados, são sintomáticos da lamentável degradação do regime.
No próximo dia 28 de Novembro, Quinta-feira, pelas 16:30, decorrerá no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa uma aula aberta, no âmbito dos Research Seminars do Centro de Administração e Políticas Públicas, subordinada ao tema "Liberal socialism in the 21st century", que contará com a intervenção de Matthew McManus, Professor na Universidade do Michigan (EUA) e um dos protagonistas do debate acerca do futuro do liberalismo.
A 21 e 22 de Novembro a Secção de Relações Internacionais da Associação Portuguesa de Ciência Política irá organizar as I Jornadas de Relações Internacionais com o objetivo de recolher testemunhos e experiências de docentes e investigadores da área, e assim mapear as principais tendências que podem ser esperadas a curto e médio-prazo em diferentes domínios de aplicação. A participação é livre e todas as sessões terão lugar no seguinte link: https://bit.ly/4fEzcjg.
A propósito das declarações de Miguel Pinto Luz no Congresso do PSD, escrevo hoje no Observador:
Retornando às declarações de Pinto Luz, parece-me que este governo está cada vez mais parecido com os de António Costa. Confunde anúncios de medidas com a resolução de problemas, comunica a sua cartilha como quem vive num país das maravilhas que não tem correspondência com a realidade, e em relação à maioria da população activa, que só aparenta ter utilidade contributiva, não faz outra coisa a não ser, claramente, convidá-la a emigrar.
Este país não é para jovens, não é para velhos, nem para ninguém, a não ser para os mesmos de sempre, as elites políticas que continuam a viver na sua bolha politiqueira e a usufruir de um país permeado por instituições extractivas que alimentam a sua cupidez do poder, não se descortinando qualquer estratégia de desenvolvimento do país e de prossecução do interesse geral da comunidade.
Para mim, viver neste país assemelha-se cada vez mais a um esforço sisífico, em que não só não se vislumbra o topo da montanha, como esta é cada vez mais íngreme e a rocha cada vez maior. É excruciante viver em Portugal.
Se Miguel Albuquerque fosse Carl von Clausewitz, afirmaria sem pudor — "fogo é a política por outros meios". Mas não necessitamos de mais provas. Bastam dez dias de desterro político e administrativo para concluirmos que Portugal não se entende. Quem julgava que o Estado era um todo, parece estar equivocado. A autonomia da ilha da Madeira tomou o continente como refém (ou o seu inverso), e assaltou a república e as ideias de garantia e segurança do Estado. A batata assada da responsabilidade já viajou para aquele alibi disfuncional designado de União Europeia — o tal mecanismo para invocar quando os compadres andam à castanhada. Não se vislumbra a ponta do sol ao fundo do túnel de fumo espesso. Pensava eu que a AGIF (Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais) abrangeria a totalidade do território, incluindo as regiões autónomas. Mas não parece ser o caso. Parece que existem fronteiras políticas e administrativas que não podem ser abalroadas pela imperiosa necessidade de realizar a gestão criteriosa do território nacional na sua totalidade. Não sei se o "deixa arder" constitui ou não o indício de algo mais profundo, a vontade independentista, à laia daquela praticada por certos catalunhenses. A história é fértil em exemplos. O fogo de Smyrna, Turquia, ocorrido em 1922, na derradeira fase da Guerra Greco-Turca teve um papel fundamental nas aspirações nacionalistas quer da Grécia quer da Turquia, e em última instância levou ao estabelecimento do Estado moderno turco sob os comandos de Kemal Atatürk. Eu sei que esta analogia extrapolativa pode ser rebuscada, mas Canadairs no ar são, em tempos actuais, atos políticos. Os jornalistas gostam muito de usar dois termos quando o fogo lavra: "complicado" e "rescaldo". Mas esgravatam muito ao de leve na cinza que assenta arraiais nas reportagens. O que sucede é grave. Mas em Portugal quase tudo é inconsequente.
Narciso Cunha Rodrigues, antigo Procurador-Geral da República, na Grande Entrevista da RTP, a 28 de Fevereiro, explicou de forma cristalina que a demissão de António Costa não resultou de parágrafo algum, pois não se pode deduzir do comunicado do Ministério Público a obrigação ou sequer a sugestão de que o Primeiro-Ministro se devesse demitir.
Nada obrigou António Costa a demitir-se a não ser a sua própria conclusão de que, após um ano marcado por 13 demissões do seu governo, e tendo sido encontrados 75.800 euros em dinheiro no gabinete do seu chefe de gabinete, já não tinha condições políticas (políticas, sublinhe-se) para permanecer no cargo.
Passado cerca de um mês, o próprio António Costa, a máquina de propaganda do PS e boa parte dos comentadores na comunicação social começaram a ecoar a narrativa de que a demissão de Costa teria resultado do tal parágrafo. Em grande parte, são os mesmos que andam há anos numa sanha persecutória contra o Ministério Público, de que o infeliz manifesto dos 50 é apenas o mais recente episódio.
Hoje, nas páginas do Público, um ex-ministro de Costa, Pedro Adão e Silva, recorrendo ao teste do pato, volta à mesma narrativa e aventa até a possibilidade de se ter tratado de um golpe de estado. No mínimo é caricato, e no máximo um perigoso disparate, mas, sem dúvida, original. Seria interessante aplicar o mesmo teste a muitos que, pese embora até se possam afirmar defensores da democracia liberal, continuam a procurar erodir pilares desta, designadamente a separação de poderes e a autonomia do poder judicial. Se se parecem com autoritários e agem como autoritários, talvez sejam mesmo autoritários.
Daniel Oliveira é acérrimo defensor dos direitos, das liberdades e das garantias, um genuíno campeão da liberdade de expressão e intransigente adepto da democracia — porventura aquela forjada no 25 de abril. Mas não admite que, em nome da justiça e da transparência, alegados envolvidos em esquemas corruptos possam ser escrutinados. Prefere o debate de distração semântica que equipara as escutas à vigilância. Parece esquecer que foram as escutas de diversos serviços secretos que tornaram possível no século passado a derrota dos nazis. Quando a podridão é estrutural, o varrimento auditivo parece ser a única hipótese para realizar a distinção entre os falidos e os eticamente verticais. O Ministério Público é público por alguma razão. Tem a missão inabalável de ser garante da observação da lei. Segundo Oliveira, os políticos não devem ser controlados no exercício das suas funções. Estão acima de qualquer suspeita, imunes a qualquer forma de inquérito. Sabemos que a política é a arte do flagrante e da dissimulação. Só não percebemos o que têm a ganhar comentadores que gostariam de virar a cara às responsabilidades que decorrem da verdade e das suas consequências. Croquete, é o que me ocorre.
Com o spin em alta rotação a presentear-nos com leituras e interpretações dos resultados eleitorais para todos os gostos, observo que continuamos a ser uma democracia deficitária, com cidadãos menorizados a serem exclusivamente chamados a ratificar o que os directórios partidários decidem à porta fechada. Assim se explica que muitos dos eleitos do PS e do PSD sejam ilustres desconhecidos e/ou meros caciques e que as respectivas listas tenham sido encabeçadas por péssimos candidatos - por mais que os seus correligionários nos queiram convencer do contrário. Com a honrosa excepção do Livre - não obstante o resultado das suas eleições primárias ter desagradado a direcção -, o recrutamento político continua a fazer-se em circuito fechado, e para os partidos do centrão as eleições europeias servem para pouco mais do que promover alguns boys and girls e/ou incómodos reais ou potenciais para o chefe. Infelizmente, os nossos políticos de vistas curtas não sabem fazer melhor. Por último, destaco a descida do Chega e a vitória da Iniciativa Liberal, o único partido que cresceu quer em termos absolutos quer em percentagem e, portanto, o único, para além do PS, que se pode afirmar como vencedor nestas eleições.
O adjectivo feminino "efectiva" tem valor relativo em Portugal. Existe um nome masculino na Lusitânia que o afecta — refiro-me ao "recurso". Ou seja, as prisões efectivas de Manuel Pinho e Ricardo Espírito Santo não são uma certeza. Não são uma certeza judicial nem uma certeza linguística. Assistimos repetidamente, logo ali, à boca da barra do tribunal, no desenlace do transitado em julgado, a um espectáculo de ameaça jurídica, de declaração taxativa da parte dos advogados de defesa, de que os recursos seguirão dentros de momentos. Escutamos algo que soa a viatura híbrida — o cruzamento entre a amnistia instantânea e o indulto na hora. Quando todos referem que o sistema judicial de Portugal deve ser revisto, cai o cravo e a bondade, o mesmo sentimento-tabu de impossibilidade quando se sugere uma revisão constitucional. Quem sai a ganhar com as manobras congeminadas nas frestas e falhas dos códigos penais é o conceito de impunidade — a ideia de que a prática de crimes em Portugal não gera ansiedade existencial. Os criminosos sabem muito bem que existe uma teia de buracos por onde pode escorrer a culpa. E a culpa não morre solteira. A culpa junta-se a tantas outras num rebanho de falências. Não queremos sangue. Queremos justiça. Aqui e acolá, em Portugal ou nos Estados Unidos. Os legisladores e os juizes são responsáveis directos pela defesa da democracia onde a equidade e aplicação das leis devem nortear as decisões, mas onde a sentença inexpugnável deve também reinar. Tenho sempre a mesma dúvida que me atormenta o espírito — quem paga os serviços jurídicos prestados por tão mediáticos advogados? Será que são borlas e a coisa paga-se a si mesmo? Pensava que os advogados estavam proibidos de fazer publicidade às suas sociedades. Nesse caso, teremos de implicar os media — a imprensa escrita, as televisões e em última instância, os senhores jornalistas que serão os geradores de dinâmicas de mercado. O preço a pagar é colectivo, mas alguém sai a ganhar com estas farsas judiciais. Deixemo-nos de ilusões. O timing é perfeito, a um dia das 24 horas de reflexão a que estamos obrigados por causa das europeias. Nada será como dantes. Será como sempre foi. Um pais de recursos infinitos.
O Partido Socialista (PS) que foi o inventor da disciplina de bancada, da lei da rolha e mais recentemente do traçado das "linhas vermelhas" — as tais que não poderiam ser transpostas para acomodar o Chega, acaba por se coligar ao partido de André Ventura. O princípio subjacente a esta dinâmica destrutiva é simples: não deixar fazer. Ou seja, sem olhar a meios, fazer tudo ao seu alcance para fazer cair o governo de Luís Montenegro. Portugal que se lixe. Que se lixem os portugueses. A bandeira que os socialistas estão a hastear é uma farpa de terra queimada, como se já soubessem que as europeias não vão servir para grande coisa. Pedro Nuno Santos vai sofrer nova derrota eleitoral e, por isso, nada tem a perder. Embora o PS queira defender a tese da coincidência de posições com o Chega, não é líquido que assim seja. Não sabemos se o PS pertence ao Chega, ou chega de PS. A tal ética republicana que se desdobra na máxima temida por todos: "não recebemos lições de ninguém", afinal não é bem assim. Se o PS não tiver cuidado, ainda será infiltrado por agentes do Chega, ou, num cenário ainda mais excêntrico, ainda veremos alguém da Ericeira filiar-se no Chega. A conclusão a que devemos chegar — a ideologia já não é o que era. Nestes tempos de mercados políticos de ocasião, vale tudo. Aguardemos por domingo para assistir a uma ficção eleitoral que em nada abala decisões já tomadas no fórum da União Europeia. Podem estrabuchar à vontade, mas em última instância quem determina as expectativas da classe média será o Banco Central Europeu, que decide a cor e o preço do dinheiro — amor e ódio numa campanha perto de si.
Há dias assistimos ao primeiro debate quinzenal do novo governo. Não posso deixar de dizer, em consciência, que Montenegro me pareceu em boa forma. Energia, confiança, preparação, resposta lógicas e na ponta da língua. Infelizmente, aqui e acolá, saltam sempre “bocas” desnecessárias para a oposição, muito na linha de apoucar os outros para ficar por cima. Este traço é transversal a todas as bancadas e já faz parte da pobre cultura parlamentar portuguesa – piadinhas, ar de gozo, sarcasmo, superficialidades, à partes, enfim, algo que só fica mal aos nossos representantes parlamentares. Está muito enraizado, já faz parte, dirão alguns conformados. É um estilo que conduz a sessões ricas em folclore, dignas de um país pequeno, pitoresco e com actores picarescos. Um país ocidental, lento e rural, dirão outros.
É pena não se conseguir sair deste registo para outro mais sério, mais construtivo e de maior respeito. Respeito para com os eleitores, para com as instituições e para com os próprios. Mas a húbris acaba sempre por falar mais alto. Eles não se contêm e fazem gala de pavonear uma suposta sagacidade e verve que julgam possuir. E por isso, tal como o corvo vaidoso de La Fontaine, que não resistiu ao charme da raposa, cantam de alto e deixam cair o queijo.
Nesse mesmo dia a famigerada decisão do aeroporto de Lisboa foi finalmente tomada. Mais de meio século depois do processo se ter iniciado. Certamente ninguém pode estar orgulhoso. Esta nódoa vai demorar a sair e só poderá ser lavada por um processo de planificação e de execução de obra exemplar, o que se antevê como algo muito difícil, conhecendo as nossas politiquices, burocracias e claro, a própria dimensão e complexidade do projecto.
A grande e poderosa lição que deveremos retirar, e que cabe neste momento à AD liderar, até pela sua necessidade de procurar consensos alargados para poder encarar a legislatura com maior estabilidade, é que é possível haver acordos em matérias estratégicas. Este deveria ser o precedente magno que sedimenta a possibilidade de promover um espaço de diálogo com a oposição para podermos todos beneficiar de uma plataforma de base que reúna o consenso estratégico para o país em matérias chave. Se assim for, não teremos de esperar duas gerações para tomar decisões que afinal, até não eram assim tão difíceis de tomar.
Para podermos ascender a esse patamar de evolução política necessitamos de lideranças agregadoras, de visão de longo prazo e de humildade. Por isso, gostei de ouvir Montenegro dizer que não sabe tudo. É o mote para uma boa conversa quando queremos ouvir e aprender. Mas já não gostei nada de ouvir um Núncio transmitir com soberba que este governo fez mais em 30 dias que o anterior em 8 anos. É um caminho pouco inteligente estar com este tipo de retórica. Se um núncio é por definição um diplomata, este não passa de um incendiário míope a querer queimar pontes por onde poderiam passar soluções para o país. Assim, continuamos a ver o país a arder na fogueira das vaidades de políticos neandertais.
Hoje é dia para dedicar singelas e parcas palavras à proto-europeia Marta Temido. A co-administradora das vacinas pandémicas quer inocular os eleitores nacionais de uma vez por todas para que fiquem contaminados com o bicho das intersindicais. Enquanto não escorre a verborreia da candidata, alinhada pelo Partido Socialusa — a organização política que enterrou o país nos últimos oito anos, permitemo-nos partilhar algumas considerações sobre a "ex-candidata à pressa" à Câmara Municipal de Lisboa. Ainda não conseguimos entender qual o fetichismo do Largo do Rato em relação à cabeça da pista europeia. Não percebemos qual a lógica da promoção de uma esquerdista radical trajada de moderada. Em termos políticos, saiu a fava à Temido. De repente tem de se fazer entendida e ser perita em questões de defesa, imigração, economia e finanças. Mas não é isso que está em causa. Os socialistas acreditam que a Temido pode ser a ponta de lança perfeita para defender o projecto europeu das direitas radicais. Mas o discurso extremista e radical passa ao lado da cabeça da cabeça de lista. Nunca se digladiou na arena das retóricas ideológicas. A funcionária operativa das vacinas não detém a profundidade requerida para estancar a realidade do descalabro europeu. E não detém argumentos para roubar votos quer à Esquerda quer à Direita. Fica-se ali pelo meio termo do banho Maria. Tal como aconteceu em relação ao delfim da Aliança Democrática, já foi gerada uma expectativa enorme em relação à putativa substância política da Marta Temido. Portugal fica assim servido pelos dois partidos que alternaram no que respeita ao poder governativo. E o povo sabe o que estas casas esbanjaram. Assim sendo, à laia do que se passou nas legislativas, devemos esperar outros desfechos que não os habituais. Marta não é temida nem no continente nem na Europa.
Sebastião Bugalho tem o peito inchado. Discorre sobre os grandes desígnios da Europa. A sua ambição é maior do que a própria União Europeia (UE). Apresenta-se como Secretário-Geral das Nações Unidas da Europa e refere diversos planos Marshall em simultâneo. Ao mesmo tempo faz lembrar o mito de D. Sebastião que surge por entre a neblina da ignorância para salvar as pobres almas lusas dessa condição fatal. Fala sobre um tudo para todos da ascensão económica e social, a possibilidade do apanhador da azeitona deixar de ser azeiteiro. O calceteiro que deve abandonar essa arte em nome da aeronáutica espacial. A peixeira tornada gourmet das ovas. Bugalho vai defender a democracia, mas omite que é um produto mediático fabricado sem provas dadas no mundo real onde contam mais as ações do que as palavras. Este embandeirar em arco é algo típico de regimes de seleções nacionais. A ideia dos Ronaldos da vida que podem resgatar equipas disfuncionais. É esse o seu cotovelo de Aquiles — a pose de estadista sem licença para governar. Mais uma vez os media servem-se do delfim para servir os seus propósitos: validar a ideia de que o embrulho vale mais do que o conteúdo. Se apenas escutássemos o Bugalho ficaríamos com a ideia de que o Sebastião é a Europa e o resto é paisagem, que os outros Estados-membros da UE não têm candidatos porventura amplamente mais competentes e capazes. De uma assentada, de repente, Bugalho domina todas as pastas políticas, todos os temas que ainda nem sequer foram inventados. Infelizmente, faz lembrar outro no qual depositávamos grandes esperanças para liderar a banda, mas que já demonstrou de um modo inequívoco e presidencial que descarrilou por completo. Os tiques sobranceiros da perda da auto-percepção já estão presentes neste jovem. O rapaz tem muita garganta, mas não sabemos muito mais. Sabemos que repete diversas vezes a expressão númerica em língua europeia: sixty-five. Para já não passa de um Bugalho e um par de botas.