Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]




Amor Líquido na era da Modernidade do Estado Educador Sexual

por Samuel de Paiva Pires, em 28.06.10

Eu que sou terminantemente contra a imposição da obrigatoriedade das aulas de educação sexual - mais uma vez se coarcta a liberdade de escolha dos pais - dei por mim a ler um autor que talvez não fizesse mal aos que de forma muito progressista vão conseguindo banalizar ainda mais aqueles que são alguns dos instintos e actos que de forma mais acentuada caracterizam o ser humano: Zygmunt Bauman, sociólogo que cunhou o conceito de modernidade líquida, considerando que na época em que vivemos tudo é efémero e a vida um amontoado de escolhas fragmentadas e diversos projectos que vamos encetando consoante as circunstâncias e contextos em permanente mudança acelerada. É também o autor de um interessante livro onde aplica o mesmo conceito às relações humanas. Para Bauman, os laços humanos padecem, na actualidade, de uma imensa fragilidade derivada de duas forças contraditórias que levam os indivíduos a criar laços, ao mesmo tempo que os pretendem manter flexíveis. Desta forma, considera que a modernidade líquida, e passo a citar a contracapa, "ameaça a capacidade de amar e os crescentes níveis de insegurança, tanto nas relações amorosas como nas familiares, e até no convívio social com estranhos".

 

 

Aqui fica uma breve passagem de Amor Líquido, editado pela Relógio D'Água, com o subtítulo Sobre a fragilidade dos laços humanos, (páginas 66 e 67) :

 

«Como que antecipando o padrão que iria prevalecer na nossa época, Erich Fromm tentou explicar a atracção do «sexo em si» (do sexo «pelo sexo», praticado separadamente das suas funções ortodoxas), referindo-se à sua qualidade como uma (enganosa) resposta ao desejo, demasiadamente humano, de «fusão total» por meio de uma «ilusão de união».

 

União - porque é exactamente o que homens e mulheres procuram ardentemente no seu desespero de escapar à solidão de que já sofrem ou que temem estar por vir. Ilusão - porque a união alcançada no breve instante do clímax orgástico «deixa os estranhos tão distantes um do outro como estavam antes», de tal modo que «sentem o seu estranhamento de maneira ainda mais acentuada». Neste papel, o orgasm sexual «assume uma função que o torna não muito diferente do alcoolismo e do vício em drogas». Tal como estes, ele é intenso - mas «transitório e periódico».

 

A união é ilusória e, no final, - a experiência tende a ser frustrante, diz Fromm, por ser separada do amor (ou seja, permitam-me explicar, do tipo de relacionamento fürsein: de um compromisso intencionalmente duradouro e indefinido para o bem-estar do parceiro). Na visão de Fromm, o sexo só pode ser um instrumento de fusão genuína - em vez de uma efémera, dúbia e, em última instância, autodestrutiva impressão de fusão - graças à sua conjunção com o amar. Qualquer que seja a capacidade geradora de fusão que o sexo possa ter, ela vem da sua «camaradagem com o amor».

 

Desde que Fromm escreveu sobre a questão, o isolamento do sexo em relação a outros domínios da vida tem avançado mais do que nunca.

 

Hoje o sexo é a própria síntese, talvez o silencioso/secreto arquétipo, daquele «relacionamento puro» (um paradoxo, com certeza: os relacionamentos humanos tendem a preencher, infestar a modificar todos os recessos e frestas, por mais remotos, do Lebenswelt, de modo que podem ser tudo menos «puros») que, como indica Anthony Giddens, se tornou o modelo alvo/ideal predominante da parceria humana. Agora espera-se que o sexo seja auto-sustentável e auto-suficiente, que se «mantenha sobre os próprios pés», para ser julgado unicamente pela satisfação que possa trazer por si mesmo (ainda que, em regra, ela seja interrompida bem antes da expectativa gerada pelos media). Não admira que também tenha crescido enormemente a sua capacidade de gerar frustração e de exacerbar a própria sensação de estrangulamento que se esperava que curasse. A vitória do sexo na grande guerra da independência tem sido, na melhor das circunstâncias, uma vitória de Pirro. Os remédios maravilhosos parecem produzir moléstias e sofrimentos não menos numerosos e comprovadamente mais agudos do que aqueles que prometiam curar.

publicado às 00:33


11 comentários

Sem imagem de perfil

De Si a 28.06.2010 às 11:05

Gostei imenso desta sua reflexão sobre a fragilidade das relações humanas.
De facto, é isso mesmo que eu sinto, instintivamente, e sem qualquer veleidade de análise profunda sobre os comportamentos sociais.
E é neste sentido que deixo uma questão que me parece pertinente: tendo como ponto de partida este estudo, parece-me correcto concluir que a base das fragilidades estará no núcleo familiar, onde as relações entre pais e filhos estarão cada vez mais confusas na distinção dos papeis, com uns e outros a descartar as suas responsabilidades, as referências, os exemplos, o diálogo, as regras, a noção de autoridade e respeito mútuos.
Se assim é, e não podemos negar que a maioria das famílias é construída sobre este 'castelo de cartas', será responsável deixar que sobre elas recaia a função de educar sexualmente os seus filhos?
Imagem de perfil

De Samuel de Paiva Pires a 28.06.2010 às 11:48

Mais logo terei tempo para reflectir e comentar, Si.
Sem imagem de perfil

De Silvia Vermelho a 28.06.2010 às 11:45

Não acho que o sexo se tem vindo a banalizar, acho que tem ganho é visibilidade, pois antes fazia-se de boca fechada e atrás de paredes espessas. A Idade Média, ela mesma, foi pródiga no sexo por sexo e nas violações nunca contadas, relatadas, reveladas.
A afirmação das mulheres como seres igualmente detentoras de prazer sexual próprio - e receptoras, em vez de unicamente produtoras - veio trazer visibilidade a relações escondidas, a quecas de cortina fechada.
O sexo faz hoje parte da "coisa pública" porque está intimamente relacionado com "saúde pública". As ISTs/DSTs, as gravidezes indesejadas, as consequências de actos de violação, de violência no namoro, dizem respeito a tod@s. Esperar que as famílias sejam capaz de gerir sem uma doutrina orientadora aquilo que se transferiu para a praça pública, é uma fantasia irreal, que perpetua comportamentos sexuais desiguais. Diferentes pessoas com diferentes consciências acerca da sua sexualidade, resulta numa anarquia total em termos de *comportamento sexual público*, isto é, um desequilíbrio fenomenal na consciencialização dos efeitos que o nosso comportamento sexual pode provocar no todo social.
O Estado deve promover a educação sexual, massificá-la. Resta conseguir assegurar que haja formação efectiva de RH para o efeito.
Imagem de perfil

De Samuel de Paiva Pires a 28.06.2010 às 11:48

Discordo em toda a linha mas não tenho tempo agora para argumentar, fica para logo. Ademais, o principal ponto do post não é esse...
Sem imagem de perfil

De Silvia Vermelho a 28.06.2010 às 12:12

O único ponto do texto que comentei realmente foi o primeiro parágrafo, o resto são, recorrendo à gíria das conversas de café pouco eruditas, "filosofia(s)"...
Imagem de perfil

De Samuel de Paiva Pires a 28.06.2010 às 12:32

Talvez. Ainda bem que temos muita gente que não se dedica a "filosofia(s)"...Deve ser por isso que somos muito progressitas neste país...
Imagem de perfil

De Manuel Pinto de Rezende a 28.06.2010 às 13:32

Confunde-se muito a sexualidade da Idade Média com a atitude puritana perante o sexo.
Da mesma maneira que é impossível provar que o Homem Medieval violava mulheres rotineiramente (mais do que actualmente, onde as paixões parecem bem mais descontroladas que na altura), também é impossível provar a demonização do prazer sexual (se virmos a Idade Média como uma época católica, e visto que o catolicismo numa demonizou o prazer sexual) se deu a outro nível que não o de algumas camadas intelectuais que até o poderiam fazer (sem grandes repercussões).

Basta estudar um pouco o folclore, a cultura medieval popular para se perceber que há muitas referências a relações sexuais, e até claras alusões a comportamentos promíscuos por parte de homens e mulheres igualmente, como também há nessa época a sublimação de valores altamente filosóficos e superiores, como o auto-controle das paixões, o celibato, a lealdade e a fidelidade por uma causa, uma mulher.
O amor cavalheiresco da alta idade média não é chamado de platónico a título gratuito. Atitude mais humana em relação ao sexo que a de Galaaz não conheço, pelo menos em comparação à atitude instintiva de Marta Crawford.
Não se pode fundamentar uma teoria sobre a falta de liberdade medieval na dureza das leis para o adultério, ou no direito do homem a matar a mulher no caso deste. As barbaridades dos sistemas penais chegaram até ao século XX, e países conservadores como o Império Austríaco tinham molduras penais bem mais permissivas que a Liberal Inglaterra.

Visto que as doenças sexualmente transmissíveis, as gravidezes indesejadas, os comportamentos sexuais desviantes conheceram especial boom nos países que adoptaram a visão progressista das quecas de cortina aberta, parece-me que a educação sexual é só mais uma brincadeirinha suicida de nos levar a todos pelo mesmo caminho. As objecções que os principais teóricos do movimento dos anos 60 de educação sexual fazem, actualmente, à educação sexual, devia educar os que a defendem. Pensar que as crianças reagirão como estudantes universitários perante a exposição de coisas que só a cada um, e individualmente, dizem respeito e interessam em particular altura, isso sim é atentar contra o equilíbrio emocional dos mais novos.
A fantasia irreal do comportamento sexual público é digno da Rússia Soviética, e a sua teorização dogmática é tão perigosa quanto o hedonismo que o Samuel tão bem aqui criticou.

Além de destruir a diversidade do comportamento sexual nas sociedades (sim, porque ao contrário das forças progressistas, os sectores católicos não impõem a outras culturas a obrigação de aprenderam a intelectualizar a sexualidade conforme os cânones ultrapassados do progressismo vulva e glande) a uniformização de algo tão íntimo apenas levará, em último lugar, à sua definitiva banalização.

Com todo o respeito pela posição da Sílvia, que eu não conheço mas respeito, esperar que o Estado crie os fundamentos básicos para a sexualidade é criar os fundamentos básicos para o controlo da alcova. Sei que está na moda, entre os sociólogos e psicólogos modernos, dar Graças pelo fim das famílias tradicionais.

Como a dita família progressista é uma solução sem treino, sem estudo científico credível e de objectivos cada vez mais falhados, acredito que dentro de umas décadas, estando ainda vivos, assistiremos à definitiva substituição destas taras de Novo Homem (e Mulher) Sexual.
Sem imagem de perfil

De Silvia Vermelho a 28.06.2010 às 14:17

É claro que o catolicismo na Idade Média não demonizou a sexualidade - a masculina! A feminina, à excepção das alcoviteiras, sempre úteis, foi remetida para os silêncios das donzelas desvirginizadas. A própria Renascença também não conheceu um catolicismo puritano, óbvio, com Alexandre VI regozijando-se com os seus dois filhos e as suas orgias organizadas em S. Pedro. Mas claro que o pecado original é uma demonização da Eva sexual.
Dizer que a cortina aberta é responsável pela proliferação de ISTs/DSTs e gravidezes indesejadadas é uma apropriação indevida da "visibilidade" vs "realidade". Eu, que nasci e cresci num meio onde, nas devidas proporções, se pode afirmar que as cortinas estão mais corridas que noutras zonas do país, vou ouvindo - para além das cortinas, as portas também são fechadas - acerca das certidões de óbito e dos registos médicos que são passados omitindo o VIH, para o descanso eterno da honra do/a senhor/a, a medicação comprada em farmácias de outros concelhos, os casamentos apressados e os abortos clandestinos. Responsabilizar a cortina aberta pelo suposto aumento de incidência de ISTs/DSTs é ignorar a sífilis de cortina fechada, a candidíase de cortina fechada, o HPV de cortina fechada, as lavagens vaginais com sumo de limão a título de pílula do dia seguinte e a inserção de batedeiras eléctricas na vagina para efeitos abortivos. A saúde não pode cheirar a bafio porque dele não é feito.
Como da dita família tradicional há experiências suficientes que nos permitem afirmar, categoricamente, que nunca demonstraram servir melhor os interesses de todas as partes constitituintes do que qualquer outro tipo de família, nunca identificarei esta como o agente principal na defesa da saúde sexual e reprodutiva de mulheres e na saúde sexual dos homens. A família surge, como qualquer outro agente de socialização, como um apoio à concretização de uma doutrina efectiva de responsabilização sexual pela saúde. Outros tipos de responsabilização sexual que fiquem a cargo das famílias, das igrejas, dos cultos, dos grupos de pares etc. Agora a saúde, como primado da sobrevivência humana, necessita de um chapéu maior do que a confiança cega na multiplicidade de padrões valorativos sempre falíveis e não universais - ao contrário da saúde. E digo-o sem preconceitos ou alusões à Russa Soviética ou coisa que o valha porque, na realidade, a última coisa que me ocorre quando vejo o cancro do colo do útero como uma das principais causas de morte das mulheres em Portugal, é a Rússia Soviética... ;)
Imagem de perfil

De Manuel Pinto de Rezende a 28.06.2010 às 20:02

O pecado original não está unicamente ligado à mulher, e não é uma "interpretação modernaça" da história de Adão e Eva que faz com que todos os problemas ligados à mulher na época da Idade Média finalmente deslumbráveis.

A teologia barata não faz boa ciência e serve apenas para vender livros a escritores do Nobel.
Penso que a Sílvia não quer ir por essa rua escura.
No que toca à validade do argumento, penso que as histórias da intimidade do Papa Alexandre não são dados válidos, visto que o Santo Padre tinha os seus defeitos, com certeza, mas inimigos suficientes para os empolar.
Da mesma maneira que a experiência de vida da Sílvia não irá, nunca, e isto não é nada pessoal, servir para me fazer mudar de ideias.

Estudo no Porto, já vivi lá, e tenho uma casa em Cinfães do Douro. Eu, que prefiro as cortinas corridas da minha terra às escancarados do meu local de estudo, digo-lhe que nunca vi uma única menina que engravidasse fora do casamento. Até porque desafio qualquer rapaz chegar perto dessa forma de uma mulher como as da minha terra. Exércitos foram feitos com massa menos forte.

Discordamos em matérias de princípios, mas ao menos sejamos todos correctos uns com os outros (não que a Sílvia tenha sido incorrecta comigo, claro).
Imagem de perfil

De P.F. a 29.06.2010 às 18:52

"As ISTs/DSTs, as gravidezes indesejadas, as consequências de actos de violação, de violência no namoro, dizem respeito a tod@s."

Quando a vida privada se transforma em siglas parece que por magia se torna em "coisa pública". Que raio tenho eu a ver com os "namoros" e respectiva e putativa violência?

Comentar post







Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2014
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2013
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2012
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2011
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2010
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2009
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2008
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2007
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D

Links

Estados protegidos

  •  
  • Estados amigos

  •  
  • Estados soberanos

  •  
  • Estados soberanos de outras línguas

  •  
  • Monarquia

  •  
  • Monarquia em outras línguas

  •  
  • Think tanks e organizações nacionais

  •  
  • Think tanks e organizações estrangeiros

  •  
  • Informação nacional

  •  
  • Informação internacional

  •  
  • Revistas