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Em "O Amor na Sociedade Portuguesa - Trechos de um estudo de psicologia nacional", Ramalho Ortigão descrevia assim o homem lusitano acometido da maleita do cupido:
«O impulso amoroso no coração lusitano, em vez de impelir a fantasia a voejar por instantes no país do azul, excita apenas o temperamento a marrar a fundo, espesso e resfolegante, nas trevas.
A emoção, que deveria ser acariciadora e risonha, adejante e leve como as asas duma abelha, o português converte-a numa espécie de vesânia de carácter fúnebre, parada e fixa como um espantalho, vigilante e sinistra como uma coruja, pesando esmagadoramente em chumbo irremovível sobre o destino da criatura eleita.
Onde toca o nosso amor fica uma cicatriz ou uma contusão. Desde que nos enamoramos caímos em paixão mórbida. Apodera-se de nós uma espécie de hipocondria erótica, morde-nos o sangue numa ponta esbraseada de satiríase, comprometem-se-nos as funções digestivas, engorgita-se-nos o fígado, vêm-nos olheiras, desenvolvem-se-nos gases e dói-nos a barriga.
Na evolução patológica dos sentimentos o amor é o antraz maligno da nossa raça. Uma vez apaixonado, o português é um enfermo, é quase um irresponsável. Perde a faculdade de estar alegre e de estar atento. Torna-se estúpido e sombrio. Devora-o um ciúme permanente, e para o alimentar promove ele mesmo toda a espécie de crises: mexerica, intriga, mente, calunia; e, para que verdadeiramente se convença de que exprimiu ao objecto amado o sentimento que este lhe inspirou, precisa de lhe ter batido.
Somos inacessíveis à galanteria... Bem sei o que disse Montesquieu: a galanteria não é o amor, é a delicada, a leve, a perpétua mentira do amor. Mas pergunto eu - pobre de mim - o que fica do amor, além das mais profundas e das mais horríveis penas da vida, desde que dele se arranque a leve, a perpétua, a delicada flor de que fala o moralista, e que não é tanto como parece uma mentira, uma vez que é um facto psicológico, uma realidade do espírito, concebida, criada, alimentada e vivida na fantasia do homem?
Amar - como deve ser - sucessivamente e simultaneamente todas as mulheres amáveis - não com toda a alma, que não é preciso e é inconveniente, mas com esse cantinho de alma terno, bondoso e galante de que todo o homem bem conformado tem obrigação de dispor para estas coisas -, amar, rendido interinamente e in partibus pela espiritualidade de um olhar, pela frescura de um sorriso, pela flexibilidade de uma estatura, pela maneira de pôr ao peito uma rosa ou de envolver no pescoço uma renda, por qualquer enfim dessas múltiplas formas superficiais e efémeras em que se revela o mimo e o encanto periférico da mais linda metade do género humano; amar assim, unicamente por amar, unicamente para retribuir, unicamente para agradecer à mulher a contribuição que por cada um dos seus dotes de simpatia ela traz ao aumento da graça e da doçura com que à providência benéfica aprouve atenuar o áspero rigor da existência, sem lhe pedir outra qualquer coisa, além de que se deixe ser o que é, como as demais coisas belas da natureza, como as flores e como as estrelas; amar assim - digo - é negócio inteiramente incompatível com a arrevesada da constituição da nossa natureza sensitiva e cerebral.
A haste de que brota em nossa alma a frágil e delicada flor do afecto é refractária à flexibilidade: tocando-lhe o capricho duma borboleta, ou persiste insensível, inabalável e inerte, ou tem uma convulsão de terramoto. No triste destino extremo do nosso coração, destas duas coisas uma: ou insensiblidade absoluta, ou derrocada completa. Victor Hugo escreveu esta lindra frase: Fremir n'empèche pas la branche de fleurir, mas escreveu a propósito dos tremores de Terra na Andaluzia, nos tremores da sensibilidade no coração português o ramo esgalha e não torna a dar flor; desde que a paixão o sacode e o esteriliza, o mais que ele pode dar é lenha.»