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Há trinta e seis anos em Portugal e pela primeira vez fomos convidados para uma estreia na Cinemateca, tal se devendo à extrema amabilidade de Maria João Seixas e em atenção à minha mãe, trineta do escritor.
A actual cinematografia portuguesa, tem sido desconsiderada por um público sempre ávido dos conhecidos bang-bang visionados enquanto se mastigam umas pipocas, numa capciosa hegemonia do descartável destinado ao rápido esquecimento. Considerados como filmes chatos, longos e parados, são contudo apreciados por quem gosta de cinema, este mesmo que é em tudo distinto de uma simples banda desenhada ao estilo Manga, habilidosamente recheada de efeitos especiais passados ao video (?).
Não esperem assistir a planos que duram dez ou quinze minutos, nem a lacrimejares acompanhados por gritaria a lembrar um fado desesperado. Não. O chileno Raúl Ruiz rodou uma verdadeira obra prima, onde o interesse do espectador se mantém ao longo das quatro horas de intrincado enredo, numa riqueza de personagens onde os estudos de carácter e as diferenças ditadas por uma coisa nada fortuita que se chama nascimento, preenchem uma história que deverá ser vista num só fôlego. Estando prevista a transmissão sob o formato de novela RTP, cremos perder-se a clara intenção do realizador que sem confundir a audiência, consegue mostrar esta obra de Camilo como um todo bem coeso, de fácil acompanhamento e que sem surpresa, nos esmaga com a grandeza dos cenários criteriosamente escolhidos, música, guarda-roupa e o excelente desempenho dos actores. A nota dominante, é o irrepreensível profissionalismo. De facto, o trabalho de tantos e tão bons artistas que encarnaram as personagens, distingue-se pela coerência, nem sequer valendo a pena ressalvar este ou aquele nome, pois pelo que nos é prodigamente dado a ver, consolida-se uma certa forma de arte bem original e portuguesa, imediatamente identificável pelos cinéfilos mais inveterados.
Longe parecia a época dourada dos filmes que à meia-noite víamos no Caleidoscópio, onde os ciclos dedicados a Visconti, Antonioni ou Pasolini, emprestavam durante algumas horas, um transporte que conduzia a alfurjas abjectas, afinal não totalmente afastadas dos salões requintados onde brilhavam dourados e se faziam escutar os frú-frús dos cetins ou das sedas ostentadas por voluptosamente castas senhoras, de uma “alta” há muito desaparecida. EsteMistérios de Lisboa, nada tem a invejar a toda aquela pretérita grandeza italiana e bem pode ser o nosso O Leopardo.
Os tons pastel, a luz filtrada com mestria e os ciaro-oscuro que adensam o drama, tornam perfeito um ambiente já por si magistralmente fidedigno. Beleza palaciana de inaudito espanto – estamos mesmo num desconhecido Portugal? -, o mobiliário a autenticar o gosto nacional que já se julga eterno, o meticulososamente estudado vestuário que varia na perfeição e consoante as épocas em que a história decorre, não deixam ofuscar a profunda crítica social que Camilo legou à posteridade, percorrendo os principais acontecimentos do anoitecer do século XVIII e do nascimento daquele já nostálgico Oitocentos, a grande época das mais radicais transformações institucionais e materiais que o nosso país até hoje viveu. A injustiça do morgadio, a pecha do adultério e a vergonha da bastardia, compõem um quadro onde a nobreza, a burguesia e os extractos chãos, por vezes se confundem numa promiscuidade de espaços que ditam a interdependência.
Um extraordinário filme para rever.