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Kissinger, os Açores e velhos projectos

por Nuno Castelo-Branco, em 22.11.10

D. Carlos e Dª Amélia nos Açores (Julho de 1901)

 

Parece existir uma certa surpresa pela notícia hoje divulgada pelo Público e que se refere a um projecto de ocupação dos Açores pelos EUA, durante o auge do PREC de 1975.

 

Esta possibilidade existe há perto de 120 anos e a primeira vez que dela se ouviu falar nas chancelarias europeias, foi nos finais do século XIX, quando após uma rápida guerra de surpresa contra a Espanha, os americanos arrebataram Porto Rico, Guam e as Filipinas, ao mesmo tempo que estabeleciam um protectorado em Cuba.  A Doutrina de Mahan, bem alicerçada naquela outra que serviu e ainda se faz valer no Hemisfério Ocidental, impôs a ascensão dos Estados Unidos à condição de grande potência naval. A aquisição de bases que servissem como perímetro de defesa, foi talvez a primeira consequência da vitória sobre os espanhóis, também impedindo aquilo que já se tornara num princípio básico do sucesso de qualquer esquadra em batalha: a logística e o controlo das rotas marítimas intercontinentais. De facto, a distância que separava as armadas europeias dos seus portos metropolitanos, consistia no problema que durante séculos obcecou todas as potências marítimas, tendo sido Portugal, a primeira delas a construir um rosário de pontos de apoio costeiros e insulares que pontilharam o Atlântico, Índico e Pacífico ocidental. A Inglaterra compreendeu o conceito e estendeu o seu domínio a Gibraltar, Malta, o Chipre, Suez, Freetown, Golfo da Guiné, Santa Helena, Ascensão, Cabo, Zanzinbar, o Hadramaut, Bahrein, Ceilão, Penang, Singapura e Hong-Kong.

 

Mahan compreendeu o aspecto vital que o comércio marítimo representava para a Europa e os estrategas de Washington desde cedo encararam os Açores como uma base absolutamente essencial à intercepção das rotas que uniam o velho continente às suas possessões no além-mar. Numa época em que a Royal Navy era a incontestável soberana de todos os oceanos, o princípio britânico de possuir uma esquadra "second to none", impunha a garantia da utilização de portos amigos, ou directamente controlados por Londres. Os primeiros-ministros ingleses tinham como ponto fundamental da sua agenda internacional, o princípio de Lisboa ter forçosamente de ser, uma base amiga da Grã-Bretanha. A partir daqui, a própria política externa da Monarquia Portuguesa pós-Ultimatum, sentiu-se com a confiança reforçada para o grande e oneroso projecto daquilo a que se designou de Campanhas de Pacificação em África, antes de tudo tendo como objecto, a garantia e alargamento das fronteiras das colónias que a Inglaterra tinha condescendido em deixar ao dependente aliado português. A vantagem do "Estado tampão" que para mais era aliado e importante parceiro comercial, foi um dos aspectos mais notáveis do espantoso sucesso da permanência portuguesa na África austral, hoje a parte de leão dos PALOP, detendo pontos estrategicamente tão relevantes como Lourenço Marques, a Beira, a desembocadura do Zambeze, a partilha da soberania do Rovuma e do Lago Niassa com a Alemanha, e os territórios que hoje fazendo parte de Angola, se encontram sobranceiros à foz do Rio Congo.

 

Nos finais do século XIX, correram rumores acerca de um possível confronto naval anglo-americano e os Açores estavam de imediato, na possível linha da frente do conflito, servindo como esteio essencial a ambas as armadas. Os ingleses jamais permitiriam contra Portugal, qualquer aventura bélica ao estilo canhoneiro de Theodore Roosevelt. Isso significaria o desencadear de acontecimentos de consequências desastrosas, desde a perda dos arquipélagos atlânticos - Açores, Madeira, Cabo Verde -, até a uma forçosa partilha das colónias da África austral, levando a Alemanha de Guilherme II até ao Zambeze e à absorção de uma boa parte de Angola, alargando o então Sudoeste Africano Alemão. A Visita Régia que D. Carlos I e a Rainha Dª Amélia efectuaram em Julho de 1901 aos Açores e à Madeira, inseriu-se nessa política de manifestação da soberania portuguesa, aliás acompanhada pela presença de unidades navais britânicas que prestaram as devidas honras às Majestades, aproveitando para enviar um forte sinal a espanhóis, alemães e americanos.

 

A I Guerra Mundial demonstraria a importância do arquipélago, no momento em que a arma submarina manifestava toda a sua potencialidade como factor de disrupção do comércio marítimo. A construção de uma base americana ficou decidida e bem serviu durante um breve período, pois o conflito terminou em 1918. Os anos imediatos transferiram a atenção dos EUA para o Pacífico, onde um Japão em ascensão imperial ameaçava os interesses coloniais e comerciais norte-americanos, desde a China às Filipinas e Pacífico central.

 

Em plena II Guerra Mundial e mesmo antes do ataque a Pearl Harbour - quase reeditando desta vez contra os EUA, os acontecimentos de Cavite e de Santiago de Cuba (1898) - , os Açores parece terem sido uma constante preocupação por parte dos ingleses e durante algum tempo, aventou-se a hipótese de a célebre surtida do Bismarck e do Prinz Eugen, ter sido gizada como um primeiro indício de uma ocupação preventiva do arquipélago. O chamado "buraco negro do Atlântico" acabaria por ser colmatado quando do acordo, via Londres, entre Portugal e os Estados Unidos da América. Evitou-se assim, aquilo que a belicosa e impaciente administração Roosevelt pensava seriamente realizar, quanto a uma simples e total ocupação sem declaração de guerra. Após 1945, os Açores consistiram numa das principais bases aeronavais americanas e até hoje assim se mantêm, tendo desempenhado um importantíssimo papel durante os conflitos israelo-árabes e no período da Guerra Fria, quando os russos finalmente criaram uma enorme esquadra de alto mar e estenderam a sua influência a Cuba e a numerosos países africanos.

 

Os EUA jamais pensaram poder perder os Açores e qualquer acto irreflectido por parte de Lisboa, ou a possibilidade do desaparecimento de Portugal como Estado independente, significarão a imediata secessão, ou a anexação da sentinela atlântica. Desta forma, os Açores são para todos os efeitos, um importante pilar da independência de Portugal, país marítimo por vocação ditada pela geografia e pela história. Toda a política de alianças, deverá sempre ter este evidente aspecto em boa conta, pois tal como na Londres de 1890, Washington jamais suportaria a hipótese de um dia, Lisboa e Ponta Delgada serem portos hostis. Tal não acontecerá, mesmo que qualquer aventureiro transitoriamente instalado em Belém ou S. Bento e imitando 1975, consulte miraculosos oráculos ou xamãs.

publicado às 23:24


6 comentários

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De Carlos Velasco a 23.11.2010 às 02:07

Caro Nuno,

Você é a primeira pessoa em Portugal que vejo a citar o Alfred Thayer Mahan, personagem sem o qual qualquer análise da ascensão militar americana parece um resultado acidental de duas guerras mundiais.
Há um ponto interessante no livro mais importante dele, o "The Interest of America in Sea Power, Present and Future", que é uma junção de vários artigos. É a possibilidade de uma união anglo-americana, à qual ele se manifesta favorável no artigo "Possibilities of an Anglo-American Reunion", escrito em Julho de 1894.
Por cá, no mundo luso, qualquer conversa em torno do tema União Lusófona é vista com desdém pelos idiotas que desde tenra idade os senhores que mexem os cordelinhos das bolsas que mantém os partidos tratam de promover. Não passam de uns meninos inofensivos e não é por acaso que lá fora somos todos motivos de piada.
Quando olhamos para o Atlântico Sul, é incrível constatar que há tantos cegos que ainda não viram que aquilo pode ser o Mare Lusitanorum, ainda mais considerando qual foi o eixo secular da política seguida pelos nossos antepassados.
Só de pensar na conversinha em torno de dois subs de m..., que junta no mesmo saco os liberaloídes e os fãs da intifada, dá vontade de desistir!

Um abraço.
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De Nuno Castelo-Branco a 23.11.2010 às 14:41

Carlos,

Parece-me que anda muita gente distraída com aquilo que pensa ser "um acaso" ditado por acontecimentos imprevistos. Muito há para dizer, começando pelo cuidadoso planeamento da queda da Monarquia russa, que após Tsushima, recuperou de uma forma tão fulminante que predizia uma clara hegemonia europeia já para a década de vinte do século passado. Daí o financiamento de Trotsky pela city novaiorquina, os subsídios a Lenine, etc. Para mais, a prova final seria a "derrota" ocidental na guerra civil russa. Passará pela cabeça de alguém, a hipótese do caótico "Exército Vermelho" de 1918-21, poder sequer imaginar vencer a França, a Inglaterra ou até, a Itália? Este impedir da ascensão russa, também era partilhado por Berlim, pois bastará olhar para o mapa da Europa de 1914 e perceber a exiguidade dos chamados Império Centrais e das dificuldades que teriam inevitavelmente de enfrentar no caso de uma conflagração, ou seja, precisamente o que veio a acontecer. O governo do Kaiser estava alarmado e a construção eficiente e rápida de uma frota de couraçados e cruzadores russos logo a seguir a 1905, colocou os alemães perante o dilema da guerra que remediaria a questão da prometida hegemonia de S. Petersburgo, ou da paz que transformaria toda a Europa central em aliada forçada dos planos russos. Escolheram a guerra, como não podia deixar de ser.

Os americanos souberam forjar o seu império e fizeram-no de forma competente, agressiva nos meios e em avassaladora propaganda urbi et orbi. Controlo efectivo, através da difusão de uma mensagem de modernidade e de libertação. De facto, a presença americana vinha acompanhada com todo o arsenal de frases feitas, bem plasmadas no seu hino nacional, a Land of the Free, etc. Nada há para criticar, porque a competência e determinação deve ser recompensada, tal como aconteceu com Portugal num curto período da história. Ainda hoje vivemos e poderemos renascer devido a esse longínquo legado.

Mahan foi um génio, especialmente se o lermos - em notas soltas, pois não tenho qualquer obra sua disponível - à luz da realidade do seu século. Apesar disso creio conseguir entender razoavelmente o todo do do seu pensamento, de tal forma lógico que é por si, a garantia do sucesso, se para mais acrescentarmos o potencial humano e industrial dos EUA. Mahan viu para lá do horizonte de várias gerações e de facto, continua actual em múltiplos aspectos. Talvez "obcecado" pela era dos couraçados - como alguns lhe criticam a posteriori - mas há que ver o que estes vasos representaram desde o final do século XIX, até ao eclodir da II Guerra Mundial. Mahan continua a ser um caso para estudo e se estivesse activo no Pentágono, decerto seria o grande impulsionador da construção de porta-aviões nucleares, que por si, valem qualquer esquadra estrangeira. Os EUA possuem 18, creio eu e neste aspecto, o que dizer da Europa? A França construiu um, cheio de problemas e prevê-se que o R.U. possuirá dois, um esforço gigantesco para os ingleses, mas compensado pela relevância que o país tem na cena internacional. Creio mesmo que "a Inglaterra" é a única verdadeira potência militar europeia e isto, devido à citada união anglo-americana que não existe de jure, mas parece ser um indesmentível facto.
Oxalá um dia algo de parecido surja entre o Brasil e Portugal, mas sinceramente, coloco as minhas dúvidas. A grande política não pode ser contingenciada por períodos eleitorais de quatro anos, a menos que o pessoal político mude radicalmente de mentalidade e de praxis quotidiana. Na verdade, não existe um sentido de Estado e nisto, a oposição é tão infeliz quanto o governo. Acabadas as cimeiras, voltamos ao mesmo de sempre. Infelizmente.
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De Carlos Velasco a 24.11.2010 às 14:27

Caro Nuno,

Pois é, o pessoal anda distraído e nos dias de hoje o desprezo pela História é gritante. Quanto aos apoios de “capitalistas” aos vermelhos, há um livro muito bom do economista inglês Anthony Cyril Sutton que tenho a impressão que você conhece: Wall Street and the Bolshevik Revolution. Penso que lá está relatado inclusive um episódio estranho acerca da detenção de Trotsky no Canadá, quando ia a caminho da Rússia a partir de Nova Iorque. A ordem para a libertação desse revolucionário pelas autoridades canadianas partiu de Londres, cujo interesse, em princípio, seria apoiar o seu aliado russo na grande guerra. Até a guerra russo-japonesa de 1905 está cheia de “episódios esquisitos”. Mas basta investigar quem emprestou dinheiro aos japoneses para saber o que realmente estava em jogo.
Quanto à hegemonia americana, acredito que ela já só existe na retórica esquerdista e nos jornais. Do que tenho estudado, os únicos sectores em que os EUA ainda são superiores militarmente, como na marinha de guerra, podem facilmente se tornar mais uma dor de cabeça. Noutro dia estava a conversar com um amigo sobre a capacidade dos mega-estaleiros chineses (+ de 200.000 Ton) e sobre o programa de construção naval em curso. Quando eles quiserem, constroem uma frota maior que a americana num período máximo de dez anos. Só para dar um exemplo, a capacidade chinesa de produção de aço está a volta do 900 milhões Ton, enquanto a americana vai nos 100 milhões e continuar a cair.
No caso dos porta-aviões, os EUA já pensam em reduzir o número para 9 ou 8 (de 11) enquanto os russos anunciam a construção de 6 a 8 e os chineses estão a planear algo em grande. Os últimos parecem estar a aprender a arte da construção e do desenho de porta-aviões e a desenvolver uma doutrina aeronaval para os utilizar com eficácia, no que contam com o auxílio do Brasil (há oficiais chineses sendo treinados no São Paulo)!
Infelizmente, se nada mudar a médio prazo, penso que estamos lixados. Seria bom que ao menos o nosso mundo lusófono pensasse por si e se preparasse para não ser apanhado com as calças nas mãos se as coisas se complicarem, como tem sido habitual.

Um abraço.
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De PPA a 23.11.2010 às 15:55

Magnifico post no dia dos meus anos e sobre a minha terra!

A visão global deste texto reflecte a mais absoluta verdade histórica sobre a importância político-estratégica destes nove belíssimos pedaços de terra espalhados pelo Atlântico.

Saudações e consideração.

Nota - Vou partilhar.
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De Nuno Castelo-Branco a 23.11.2010 às 16:07

Parabéns pelo aniversário, PPA.

*É assim mesmo que vemos os Açores.
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De PPA a 23.11.2010 às 18:06

Obrigadissimo Nuno!
Tudo de bom para si!
Abraço.

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