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Alarvidades de início do ano: da ilegalização da pobreza

por Samuel de Paiva Pires, em 02.01.11

socialism_poster.jpg

 

Noticia hoje o Sol que a «CAIS, uma associação de apoio aos sem-abrigo, vai apresentar uma proposta aos partidos com assento parlamentar para que a pobreza seja ilegalizada e o Estado seja multado por não conseguir reduzir o número de pobres em Portugal».

 

Obviamente, tamanha alarvidade só pode vir de uma mente ferida de morte pelos males do construtivismo social e da engenharia social utópica; de alguém que deposita uma confiança inexplicável na legislação e na burocracia estatal para resolver problemas que não padecem de ser solucionados por tais instrumentos. De boas intenções, como se costuma dizer, está o inferno cheio. E o que é certo é que qualquer política tem sempre resultados imprevistos à partida. Neste caso, contudo, não é difícil de prever algumas das incongruências e dificuldades com que nos poderíamos deparar, se tal legislação fosse adoptada (estou em crer que não o será, se prevalecer o bom senso, o que é sempre difícil em épocas de crise, propensas à demagogia populista de uns quantos).

 

Este tipo de medidas inspiram-se nos  chamados direitos sociais e económicos, também conhecidos por direitos de segunda geração, que foram tratados por João Carlos Espada, na sua tese de doutoramento intitulada "Direitos Sociais de Cidadania". Na introdução, diz-nos o autor que "estes direitos implicam pretensões (claims) relativamente a determinados bens sociais, económicos e culturais, tais como, educação, segurança social, habitação, cuidados de saúde e, de um modo geral, um nível de vida considerado decente. Enquanto pretensões  a determinados bens, são frequentemente denominados direitos «positivos», por oposição aos direitos «negativos», que são os direitos civis e políticos tradicionais (...)"1.

 

Os direitos sociais constituem parte integrante da Declaração Universal dos Direitos do Homem, tendo sido alvo de uma forte crítica por parte de Friedrich Hayek (no apêndice ao capítulo 9 ("Social or Distributive Justice") do vol. II ("The Mirage of Social Justice"), da sua obra "Law, Legislation and Liberty", sob o título "Justice and Individual Rights"), sobre quem João Carlos Espada se debruça na primeira parte da sua tese. Resumidamente, Hayek faz notar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem padece de uma forte imprecisão e abstracção, visto que se limita "a decretar direitos sem se preocupar como seriam aplicados e quem os faria cumprir"2, para além de assinalar que estes direitos, partindo do pressuposto que originam obrigações reais atribuídas a agentes reais, "levariam à destruição da ordem liberal que permitira que os direitos tradicionais florescessem, bem como à destruição da riqueza material a ela associada"3.

 

O mesmo é dizer que, para além deste tipo de direitos serem apenas fruto de uma retórica oca, já que não atribuem obrigações reais a agentes reais, se se proceder a uma tentativa de correcção deste vazio, o resultado será ainda pior, já que "o espaço anteriormente ocupado por uma retórica oca dará lugar ao totalitarismo e à pobreza"4, dado que para satisfazer as pretensões destes direitos, será necessário substituir a ordem espontânea da sociedade liberal, por uma organização dirigida, obviamente recorrendo à coerção, passando a ocorrer uma intromissão inaceitável à luz dos tradicionais direitos políticos, na esfera de liberdade individual de cada indivíduo. E embora a abolição da coerção não seja possível, como o próprio Hayek salienta, importa ter em consideração, para evitar que os fins passem a justificar os meios, que "se quisermos preservar uma sociedade livre, é essencial que reconheçamos que o facto de um determinado objectivo ser desejável não constitui justificação suficiente para se usar de coerção"5.

 

Tudo isto para dizer que, a adoptar-se tal projecto de lei, estaremos em face de uma política digna de um Estado totalitário, ao criminalizar-se um fenómeno social como a pobreza, fazendo impender sobre o Estado a responsabilidade por indivíduos que efectivamente sejam considerados pobres - à luz de um qualquer critério que o tal projecto de lei deverá conter. A acontecer, tal contará com o apoio da burocracia estatal e com base em prolixa legislação saída das cabecinhas de quem vê o Estado como o principal fornecedor de bem-estar - enquanto haja dinheiro dos contribuintes para desbaratar, claro está. A mensagem que se estará a dar, mais uma vez, é que é mais fácil ficarmos quietinhos, sem trabalhar e produzir riqueza, à espera que o Estado, agora até criminalmente responsável pela nossa condição de pobreza, nos acuda, dando ainda mais poderes e autoridade moral a este para interferir a seu bel-prazer na vida de todos os cidadãos. E se formos efectivamente pobres, podemos esquecer aquela velha ideia de recusarmos a ajuda do Estado, de nos recusarmos a sair das ruas onde dormimos, já que o Estado sentir-se-á legitimado pela lei a fazer tudo ao seu alcance para evitar as medidas sancionatórias previstas em caso de incumprimento desta.

 

É que, segundo os autores da proposta, a criminalização nem sequer resulta a favor dos indivíduos, i.e., os cidadãos menos afortunados não podem processar o Estado. A originalidade é bem maior, resultando apenas em que o Estado seja obrigado a aumentar o valor das transferências para as ONG e IPSS - o que é algo discutível, mas pode ser motivo de debate noutro post, embora importe dizer que, em larga escala, bastaria, de facto, o aumento das transferências, mas é nas prestações sociais directas, que é o contrário do que o Estado Socialista tem vindo a fazer, ao mesmo tempo que vai injectando milhões em bancos decrépitos que já nem deveriam existir, o que representa uma contradição moral insuperável. Simultaneamente, a CAIS reconhece a existência de basta legislação, em parte proveniente da legislação comunitária, que, na sua opinião, ou não está a ser cumprida ou não é suficiente. Portanto, na lógica destes, se a legislação existente não está a ser cumprida, nem sequer vale a pena tentar fazê-la cumprir, bastará produzir mais legislação caracterizada pela criminalização do fenómeno e por uma inaceitável coerção.

 

Que a pobreza é um flagelo que deve ser erradicado, ninguém duvida e só uma mente retorcida pode dizer o contrário. Mas não é com instrumentos desadequados como a burocratização e a excessiva legislação e com este tipo de medidas demagógicas, cujos efeitos nefastos escapam à compreensão dos propositores, que chegaremos lá. Assim, só chegaremos a mais um inaceitável patamar no Caminho para a Servidão.

 


 

1 - Cfr. João Carlos Espada, Direitos Sociais de Cidadania, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997, p. 18.

2 - Cfr. Idem, ibidem, p. 32.

3 - Cfr. Idem, ibidem, pp. 32-33.

4 - Cfr. Idem, ibidem, p. 34.

5 - Cfr. F.A. Hayek, The Constitution of Liberty, 1960, London, Routeledge & Kegan Paul, p. 87 apud João Carlos Espada, ob. cit., p. 45.

publicado às 17:00


2 comentários

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De Anónimo a 03.01.2011 às 13:12

A pobreza em Portugal é legal. Merece uma placa de homenagem, como aquela que se vê nos hospitais em noutros lugares, com os nomes de quem inaugura.

Seria interessante homenagear o maior fazedor de pobres em Portugal, agora onde colocar a placa? São tantos os lugares.

Talvez um muro simples, de cimento, com os feitos de Sócrates e seu staff, junto ao aeroporto, já que ele gosta tanto de dar nas vistas.
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De Samuel de Paiva Pires a 03.01.2011 às 20:00

Desde que não se esqueçam de mencionar as manifestações exteriores de riqueza do dito cujo, síndrome de país terceiro-mundista...

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