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Muitas razões há para que a escola realista continue a predominar na Teoria das Relações Internacionais. Talvez por ser a mais simples e, simultaneamente, a mais elegante, logo, com maior poder explicativo. Por estes dias, em que o mundo está expectante em relação ao que se seguirá no Egipto, reler A Morte da Utopia, de John Gray, é um exercício saudável e recomendável (Lisboa, Guerra e Paz, 2008):
«Precisa-se de um novo pensamento, mas este tem de renovar uma velha tradição. A prossecução da Utopia tem de ser substituída por uma tentativa de enfrentar a realidade. Não podemos voltar aos escritos dos pensadores realistas do passado com a esperança de que estes resolvam todos os nossos dilemas. A raiz do pensamento realista é a perspectiva de Marquiavel de que os governos existem e devem atingir todas as suas metas num mundo de conflito incessante que nunca esteja longe de um estado de guerra. Apesar da distância entre a Itália da Renascença e o presente, isto continua a ser verdade; mas as implicações da perspectiva de Maquiavel mudam de acordo com as circunstâncias e, mesmo no seu tempo, as teorias realistas de gerações recentes tinham graves defeitos. Todavia, é com o realismo, mais do que com qualquer outra escola, que podemos aprender a pensar acerca dos conflitos actuais.
O realismo é o único modo de pensar sobre questões de tirania e liberdade, de guerra e paz que pode afirmar verdadeiramente não se basear na fé e, apesar da sua reputação de amoralidade, o único que é eticamente sério. Esta é, sem dúvida, a razão pela qual é visto com suspeita. O realismo exige uma disciplina de pensamento que pode ser demasiado austera para uma cultura que preza o conforto psicológico acima de tudo, e é razoável perguntar se as sociedades liberais ocidentais são capazes do esforço moral que envolve pôr de lado as esperanças de transformação do mundo. As culturas que não foram moldadas pelo cristianismo e pelos seus substitutos seculares albergaram sempre uma tradição de pensamento realista, que, provavelmente, será tão forte no futuro como foi no passado. Na China, a Arte da Guerra, de Sun Tsu, é uma bíblia de estratégia realista e as filosofias taoísta e legalista contêm fortes correntes de pensamento realista, enquanto, na Índia, os escritos de Kautilya acerca da guerra e da diplomacia ocupam um lugar semelhante. Os escritos de Maquiavel foram um escândalo porque subverteram as reivindicações da moralidade cristã. Não tiveram a mesma força explosiva em culturas não cristãs, onde o pensamento realista ocorre mais facilmente. Nas democracias liberais pós-cristãs, foram as elites políticas e intelectuais, mais do que a maioria dos eleitores, que defenderam a guerra como instrumento para melhorar o mundo; mas a opinião pública ainda acha o pensamento realista desagradável. Poderá a tarefa de prevenir males perenes satisfazer uma geração desacostumada de sonhos irrealizáveis? Talvez esta prefira o romance de uma busca sem significado a enfrentar dificuldades que poderão acabar por nunca ser vencidas. Mas nem sempre foi assim e, tão-só há um par de gerações, o pensamento realista permitiu que os governos ocidentais prevalecessem em conflitos de longe mais perigosos do que qualquer dos que já tenham tido de enfrentar no século actual.» (pp. 256-257)
(...)
«Os realistas não aceitam que as relações internacionais consistam mais em problemas solúveis do que a vida humana em geral. Há situações em que, seja o que for que se faça, a acção contém erros - por exemplo, a situação que foi criada pela intervenção norte-americana no Iraque. Certamente, pode evitar-se a multiplicação dessas situações: podemos ter de provocar mortes em massa para derrotar Hitler, mas não precisamos de persistir na democratização do mundo pelo sangue. O realismo é uma «navalha de Occam» que funciona para minimizar escolhas radicais entre males. Não nos pode permitir fugir a essas escolhas, pois são próprias dos seres humanos.» (p. 258)
(...)
«Os realistas têm como adquiridos vários factos acerca do modo como o mundo funciona. Porém, por mais conversa fiada que possa haver acerca do fim da era westfaliana, os estados soberanos continuam a ser os actores centrais nos assuntos mundiais. Instituições transnacionais como a ONU são dispositivos de moderação das rivalidades entre potências soberanas e não formas embrionárias de governação global. Neste sentido, o mundo dos estados é um reino de anarquia e assim continuará. Claro que os estados aceitam muitas restrições, incluindo as que são impostas pelos tratados internacionais, como a Convenção de Genebra, que estabelecem normas de comportamento civilizado, e, em certa medida, o comércio mutuamente benéfico e as tradições sociais podem substituir o conflito destrutivo pela concorrência e a cooperação. Mas essas convenções e práticas são frágeis e, a longo prazo, a guerra é tão vulgar como a paz.
Os realistas deviam rejeitar visões teleológicas da história. A crença de que a humanidade está a caminhar para uma situação em que já não haverá conflito sobre a natureza do governo é não só ilusória mas também perigosa. Basear políticas no pressuposto de que um processo misterioso de evolução está a levar a humanidade para uma terra prometida conduz a um estado mental que não está preparado para o conflito intratável.» (pp. 259-260)