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Não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti

por Samuel de Paiva Pires, em 20.07.11

 

Neste primeiro post na minha recente condição de titular do grau de Mestre em Ciência Política, aproveito para explanar brevemente sobre a confusão que se instalou na blogosfera em virtude de algo que já aqui dei conta, e a que o Felipe respondeu, tendo em referência alguns princípios que constam da minha dissertação de mestrado.

 

Quanto menos normas legislativas, regulamentos, deliberações e outros éditos do género existirem, em especial os que tenham propósitos coercivos, mais livres são os indivíduos numa sociedade. E isto serve tanto para o estado como para instituições sub-estatais que, quer sejam públicas ou privadas, inserem-se numa ordem alargada, numa sociedade. Qualquer sociedade complexa, sendo uma ordem abstracta que é o produto da interacção entre milhões de indivíduos, possui uma ética prática e em larga medida não explícita, e tem mecanismos próprios para a fazer evoluir, mecanismos imanentes que não carecem da direcção central e intervenção concreta, e que geram consensos quanto ao que é adequado ou não em determinadas situações, sem que seja necessário que alguém o explicite. Pelo contrário, quando se tenta intervir com comandos específicos em vez de regras abstractas, frequentemente provoca-se uma ruptura na ordem. Mais concretamente, quanto ao caso em apreço, importa desde já salientar que a Universidade Católica Portuguesa é uma instituição universitária da Igreja Católica, que faz parte da sociedade portuguesa. E independentemente do seu estatuto semi-privado/semi-público, quer queira quer não insere-se numa ordem alargada que é a realidade do ensino superior português, que por sua vez se insere na ordem da sociedade portuguesa em geral, na qual o estado – que por sua vez é uma ordem de organização, embora, dada a sua complexidade, possa assumir comportamentos próprios de ordens espontâneas – desempenha um papel essencial.

 

Ora,  é óbvio que todos nós avaliamos a indumentária de outras pessoas e se é adequada à situação e contexto em que nos encontremos. Se não for, essa pessoa ou se sentirá mal por não estar adequadamente vestida, ou acabará por o perceber porque o mercado da opinião pública tratará que assim seja. Ou mesmo o mercado de trabalho ou outro tipo de situações e contextos sociais que farão com que mais cedo ou mais tarde essa pessoa entenda a necessidade de se vestir consoante as ocasiões. Ademais, o critério do que é adequado ou não da minha pessoa, vale tanto como o de outra pessoa. E é por isso que esta é uma excelente razão para nos atermos a uma perspectiva de liberdade negativa – ausência de coerção por terceiros – ao invés de uma perspectiva positiva, que dá uma primazia exacerbada ao racionalismo construtivista, permitindo que se justifique a coerção aos indivíduos, em nome de um qualquer objectivo, que eles próprios prosseguiriam se fossem mais racionais e iluminados. E assim acho porque, muito simplesmente, como diz o provérbio, "não faças aos outros aquilo que não gostas que te façam a ti". Nenhum de nós gosta de ser invadido na sua esfera individual e de propriedade privada pessoal, como é a questão da indumentária. É uma matéria de gostos onde, reitero, a opinião de outra pessoa quanto ao que é adequado vale tanto como a minha. O que é que me legitima a utilizar instrumentos de cariz quase coercivo para decidir numa matéria destas? E pior, ao fazê-lo estou a legitimar intervenções posteriores com o mesmo tipo de instrumentos, eventualmente até contrárias ao que eu considere adequado. Pelo sim, pelo não, mais vale não utilizar estes instrumentos e deixar que as forças da sociedade a regulem por si.

 

Apesar de o estado utilizar a coerção para determinadas actividades como a cobrança de impostos, estas são previsíveis e gerais, aplicando-se a todos os indivíduos independentemente da forma como empregariam as suas energias em alternativa a estas imposições, e isto retira-lhes a carga valorativa negativa que normalmente reveste a coerção. Hayek, por exemplo, considera que fora do campo da tributação, “é provavelmente desejável que devamos aceitar apenas a prevenção de coerção mais severa como justificação para a utilização da coerção pelo governo. Este critério talvez não possa ser aplicado a cada regra legal individual mas sim ao sistema legal como um todo. (…) Mas toda a concepção de interferência ou não-interferência pelo estado assenta na assumpção de uma esfera privada delimitada por regras gerais impostas pelo estado”1. A moralidade de uma acção privada por parte de voluntários actores adultos que não afecte terceiros, não é passível de ser objecto de controlo coercivo pelo estado.

 

Passemos então a uma aplicação mais prática disto. O estado português e o ensino superior português não impõem às universidades qualquer tipo de obrigatoriedade de indumentária. Não existindo qualquer tipo de código positivado a este respeito, é a moda e a interacção entre os indivíduos que decide o que é adequado, em condições de liberdade. Também eu não gosto de ver pessoas de chinelos numa universidade, por exemplo, e a meu ver tal não é adequado. Mas se a universidade não consegue impedir isso sem regulamentos de cariz praticamente coercivo (já veremos isto, no próximo parágrafo), é porque ou algo já falhou a montante ou porque o critério do que é adequado que resulta da interacção entre os indivíduos não é o mesmo que algumas mentes, que por acaso até podem ser as que dirigem a universidade, consideram. Porque se o acham assim tão adequado, qual a razão que os leva a partir para a utilização de um instrumento quase coercivo em vez de tentarem dialogar racionalmente com os alunos, dando exemplos que permitam vislumbrar que são eles (a direcção) que estão certos? Estamos num domínio extremamente subjectivo, que deve ser deixado ao livre arbítrio. Porque se a indumentária de um estudante ou docente não for de facto a adequada, este sofrerá as consequências da pressão pública da comunidade académica.

 

Claro que não estamos em presença de coerção (ver este meu post), no sentido em que não existe uma ameaça que nos induza a um determinado comportamento, nem uma sanção caso não o façamos. Mas não estamos longe. O comunicado da UCP demonstra uma clara confusão entre lei abstracta, de um ponto de vista naturalístico, ou seja, em linha com o carácter das regras das ordens espontâneas, e legislação; e, pior, é uma péssima recomendação, porquanto não vai tão longe como provavelmente os seus autores gostariam. Se tivessem coragem, teriam definido o que entendem por “formas de vestuário dignas e convenientes”, e o que podem ou não ser considerados “modos de trajar e formas de apresentação próprias de locais de lazer e de desporto”. É que a ambiguidade deixada pela indefinição disto, deixa ao critério subjectivo de outros a consideração do que seja adequado, que se sentirão legitimados pelo terceiro ponto da recomendação da UCP a chamar a atenção de colegas quando não considerem a indumentária destes adequada. Estou em crer que a maioria dos discentes terá mais bom senso do que a Direcção, e não enveredará por aí. Mas há sempre uns parvos, em qualquer lado, que se regozijam com estes micro-autoritarismos.

 

Só para finalizar, permitam-me uma breve questão. Existe alguma relação comprovada entre indumentária e rendimento intelectual e aproveitamento académico? Que eu saiba não, certo? Vou dar, portanto, um exemplo muito concreto de uma realidade que conheci de perto. Em 2007, passei um semestre na Universidade de Brasília, que é uma das melhores universidades do mundo, sendo o curso de Relações Internacionais o mais reputado da América Latina. Futuros diplomatas do Itamaraty vão para lá de calções e havaianas. As universidades portuguesas em comparação à UnB aparecem mesmo onde? Pois. E quando muitos desses alunos começam a estagiar ou a trabalhar em organismos do governo brasileiro, passam a vestir-se todos os dias consoante essa situação, ou seja, de fato e gravata, o que significa precisamente aquilo que eu escrevi acima, que a sociedade se encarrega de fazer os indivíduos entender determinadas situações de forma consensual e não necessariamente explícita.

 

É este tipo de regras, que interferem na esfera de liberdade individual, e este apetite pela regulamentação e intervenção que caracterizam sociedades que, através da substituição da lei pela legislação, se vão tornando gradualmente totalitárias, recorrendo a instrumentos coercivos para impor a muitos aquilo que uns poucos pensam. A razão da força não se confunde com a força da razão, ao contrário do que estes poucos costumam pensar. E não há nada mais racional que a tradição e a selecção natural das tradições que o tempo opera. Deal with it.



1 - F. A. Hayek, The Constitution of Liberty, Londres, Routledge, 2010 , p. 127.

publicado às 01:10


6 comentários

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De Miguel Madeira a 20.07.2011 às 14:02

Bem, se percebo a posição de cada um, penso que o que o FA e o SPP estão a dizer não é necessariamente contraditório - o FA diz que a UC tem todo o direito de ter esse código (é essa a minha opinião acerca do consumo de heroína) e o SPP diz que a UC não deveria ter esse código (também é a minha opinião acerca do consumo de heroína).
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De Samuel de Paiva Pires a 20.07.2011 às 14:15

Sim, também me parece que é por aí, Miguel :) Lembro-me sempre daquela passagem de Hayek no Road to Serfdom onde diz que não há regras fixas e definitivas quanto ao liberalismo. Acaba por ser uma questão de perspectiva e, no caso, mesmo de opinião pessoal, que pode ser tão implícita e tácita que se torna difícil de verbalizar claramente. Percebo os dois pontos de vista, mas nesta tensão instituição-indivíduo, enquadrada na sociedade portuguesa, prefiro deixar às forças práticas e impessoais da sociedade, e não cair num certo legalismo que, em matéria de gostos, é necessariamente muito subjectivo.
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De Filipe Abrantes a 20.07.2011 às 14:34

Samuel,

Deixar às forças práticas e impessoais da sociedade é neste caso deixar a UCP fazer o que quiser. Estamos de acordo agora, talvez.
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De Samuel de Paiva Pires a 20.07.2011 às 14:45

Reitero, a UCP não é uma ilha, insere-se numa ordem alargada. E assim como existem instituições privadas, também existe a propriedade privada individual - que, aliás, desde Locke é a primeira a ser considerada em qualquer caso para a maioria dos liberais.
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De Filipe Abrantes a 20.07.2011 às 14:51


As palavras devem ter um mínimo de sentido. Se dizes que se deve deixar as coisas às forças impessoais, isso em jargão 'hayekiano' tem um significado preciso: deixar as entidades privadas definirem as suas próprias regras. Ou então sê claro e diz logo que queres o Estado a ingerir-se na organização da UCP.
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De Samuel de Paiva Pires a 20.07.2011 às 14:58

Em jargão hayekiano, complementado por Oakeshott e Scruton, quer dizer o que eu disse precisamente. E em lado algum eu falo em o estado ingerir-se na UCP.

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