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A respeito dos motins em Inglaterra

por Samuel de Paiva Pires, em 10.08.11

 (Fotografia do Telegraph)

 

É curioso assistir ao debate ideológico quanto aos distúrbios em Londres. A maior parte dos analistas não vai além da superfície nem se apercebe que o seu quadro explicativo está pelo menos ultrapassado, se não mesmo errado, distorcendo a realidade para que esta se possa encaixar nas suas lentes redutoras e interpretações guiadas por motivos de carácter pessoal e agendas políticas pouco escondidas, para que se possam justificar as teorias baseadas no mito do bom selvagem e na falácia do nascido livre.

 

Ler John Gray (“Gray’s Anatomy”, que referi, por exemplo, aqui) e Roger Scruton (“As Vantagens do Pessimismo”) ajuda a perceber o que se está a passar, especialmente este último, que no capítulo intitulado precisamente “A falácia do nascido livre” evidencia a degenerescência do sistema educacional britânico, fruto da sujeição às progressistas teorias do eduquês, onde o professor não é professor, não lhe competindo transmitir conhecimento e muito menos valores éticos, mas simplesmente ser amigo e compreensivo para com as expressões individuais dos alunos, como se estes não tivessem que ser enquadrados pela sociedade, devendo ser esta a curvar-se perante os seus caprichos.

 

Obviamente que, juntando a isto a guetização social promovida pela social-democracia, esta é a receita perfeita para criar indivíduos que vivem mentalmente à margem da sociedade, não acolhendo os valores desta e desrespeitando-a sem qualquer pudor. Não deixa de ser paradoxal, como Scruton assinala, que os valores liberais fossem responsáveis por um sistema de educação que promovia verdadeiramente a tão propalada igualdade de oportunidades – ele próprio exemplo disso, sendo de origens humildes, tendo frequentado um liceu público e conseguido entrar na Universidade de Cambridge –, ao passo que as modernas teorias progressistas, quando acolhidas no sistema educacional britânico, foram a pedra de toque para a degenerescência deste, que fica bem patente naquele que é o melhor texto que li até ao momento sobre o assunto.

 

Entre a violência inerente ao Homem em que os pessimistas antropológicos crêem, o hobbesiano estado de natureza onde a violência e o desrespeito pela propriedade privada e alheia são a regra, e a teorização de Le Bon e Freud sobre as multidões, talvez a explicação para o que se passa em Londres seja mais simples do que crêem as esquerdistas teorias sociológicas de literatura de justificação, que nem chegam a ser de explicação mas apenas de desculpabilização – as mesmas que são responsáveis pela já referida degenerescência do sistema educacional, pelo relativismo moral, fragmentação ética e desrespeito pela autoridade.

 

Recordo as aulas do meu primeiro ano de licenciatura, quando aprendi que Le Bon e Freud explicaram que nas multidões acontece uma perda de discernimento e da vontade própria individual, dissolvendo-se os indivíduos numa massa, acabando estes por regredir até um estado mental primitivo onde predomina o inconsciente, que permite aceitar sem entraves as ideias que passam dos líderes para a massa. Freud explica este processo pela regressão da libido, em que cada indivíduo acaba por estar relacionado com os outros através de laços libidinais. A massa adquire desta forma um sentimento de invencibilidade, precisamente pela regressão mental que ocorre, sendo extremamente sugestionável, pelo que tão facilmente pode ser heróica quanto criminosa.

 

As teorias esquerdistas que pretendem explicar fenómenos como os de Londres centram-se em generalizações assentes no descontentamento social gerado pela exploração do indivíduo pela sociedade capitalista, como se cada indivíduo pudesse ser reduzido a um perfil assente em meia dúzia de traços de carácter e introduzido num grupo composto por outros indivíduos com experiências pessoais idênticas, perfis similares e, derivado disto, propósitos comuns e bem definidos, ou seja, uma ordem de organização. Mas aquilo a que assistimos é a uma ordem espontânea de violência e pilhagem, onde há perfis individuais muito diversos e onde não há uma causa, um propósito comum bem definido para o qual todos os elementos da ordem trabalham, mas apenas um objectivo abstracto que pode nem se encontrar articulado e explícito na mente de muitos dos indivíduos que compõem a massa: desafiar a autoridade do Estado. O que se observa são indivíduos que se consideram na liberdade de fazer tudo (a falácia do nascido livre), destruindo e pilhando propriedade alheia, acabando esta ordem espontânea por reconciliar os propósitos isolados de cada um deles. Uns roubam produtos electrónicos, outros roubam cosméticos, outros obrigam quem se lhes atravesse no caminho a despir-se e roubam as roupas. Outros há que preferem descarregar a sua fúria nos agentes policiais, nos carros que encontram e nas montras, partindo tudo. No meio disto, a desculpa de que a violência foi gerada pela morte de um criminoso às mãos da polícia, apresenta-se como muito fraca e mesmo inválida se pensarmos que Londres é uma cidade com um elevado grau de criminalidade, onde diariamente ocorrem homicídios.

 

Por outro lado, muitos, em especial à direita, preferem apontar o multiculturalismo como estando na origem deste fenómeno, proclamando o seu fim. Na minha modesta opinião, parece-me precisamente o contrário e que, aliás, estamos perante um triunfo do multiculturalismo. É curioso que observemos jovens brancos e pretos juntos nestes distúrbios a destruírem indiferenciadamente as montras que lhes aparecem pela frente, de onde não escapam, por exemplo, as lojas de indianos. Por outro lado, vemos também indivíduos das mais diversas etnias juntos em operações de limpeza da cidade. Julgo, por isso, que o multiculturalismo não é tido nem achado neste fenómeno, a não ser para evidenciar o seu triunfo. Neste caso, o multiculturalismo não explica as clivagens e a violência, que também apenas em parte podem ser explicadas em virtude das condições sociais e falta de perspectivas de emprego. Se é certo que alguns destes jovens terão razões para tal, também é certo que adolescentes de 13 ou 14 anos não têm qualquer consciência sobre isto, assim como muitos dos participantes que já foram detidos são estudantes universitários ou até já têm emprego.

 

Resumindo e finalizando, talvez as teorias explicativas clássicas, à esquerda à direita, com as suas generalizações não aplicáveis neste caso, estejam desactualizadas e não nos permitam explicar e compreender de forma significativa o fenómeno dos tumultos em Inglaterra. Trata-se apenas de uma amálgama de jovens que se sentem invencíveis e cheios de adrenalina ao desafiar a autoridade do Estado e violar e pilhar a propriedade privada e pública, o que é um sub-produto do relativismo moral que se apoderou do sistema educacional, da demissão dos pais do processo de inculcamento dos valores da sociedade nos filhos e da guetização. David Cameron tem uma excelente oportunidade para mostrar do que é feito e enviar uma forte mensagem a todo o Ocidente. Aguardemos para ver as cenas dos próximos capítulos. 

publicado às 00:15


9 comentários

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De zedeportugal a 10.08.2011 às 12:51

Exactamente. Tirou-me as palavras da boca, como soe dizer-se. Fabricaram bandidos, é o que têm. O problema maior (para nós) é que por vai-se exactamente pelo mesmo caminho.

Vou aproveitar e sair para almoçar enquanto ainda se pode.
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De Samuel de Paiva Pires a 10.08.2011 às 13:52

Há anos que muita gente anda à espera de fenómenos semelhantes por cá, vamos ver...

Bom almoço!
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De Vinicius a 10.08.2011 às 15:06

1- Tunisia
2- Egito
3- Inglaterra
4- BRASIL??

Será mesmo? Que um dia teremos algo parecido?

Por que será q nao consigo achar blgos decentes sobre discução do caso da Inglaterra?
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De zedeportugal a 10.08.2011 às 12:53

... por CÁ vai-se...
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De BOS a 11.08.2011 às 01:32

Se há capítulo importante para o estudo deste caso no livro de Roger Scruton é o oitavo: “A Falácia da Agregação”, onde o autor defende que as políticas actuais de imigração provocam “fragmentação, tribalismo ou guerra civil”, prevenindo-nos contra “a instalação de culturas muito diferentes num único território”.


Scruton, avisadamente, explica que a educação multicultural faz que os ‘jovens’ sintam a “ordem que os rodeia como uma ordem à qual não pertencem nem podem pertencer, e com uma visão da cultura meramente derivada da negação de tudo o que o seu país natal tem para oferecer.”


Isto parece ter sido escrito adrede para explicar o comportamento dos amotinados.


Escrever, como faz o autor deste postal, que há “jovens brancos e pretos juntos nestes distúrbios a destruírem indiferenciadamente as montras “ e que há “indivíduos das mais diversas etnias juntos em operações de limpeza da cidade”, não esclarece nada. É óbvio que há gente decente e ordeira em todas as etnias, assim como há brancos criminosos que, aproveitando os motins, também pilham e tripudiam. Mas já não se pode negar a dimensão racial dos acontecimentos em Inglaterra. Até o “Libération” fala em “guerra racial” e no clima de confronto entre negros e muçulmanos ( http://www.liberation.fr/monde/01012353633-a-birmingham-les-pakistanais-demandent-des-comptes-a-la-police (http://www.liberation.fr/monde/01012353633-a-birmingham-les-pakistanais-demandent-des-comptes-a-la-police) ).


Se isto não é (também) uma questão de multiculturalismo, eu vou ali ler melhor o Enoch Powell e já venho.

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De Samuel de Paiva Pires a 11.08.2011 às 09:59

Bruno, eu não nego que o multiculturalismo, obviamente, tenha influência na degenerescência do sistema educacional. Quanto aos motins propriamente ditos, não é brandindo essa bandeira que vamos conseguir percebê-los e explicá-los, já que, como Ed West salienta em http://blogs.telegraph.co.uk/news/edwest/100100256/british-society-could-learn-a-lot-from-the-turks-of-dalston/: "There are heartening aspects, though. Citizens cleaning up yesterday’s wreckage, or bringing tea to police officers. Most impressive of all was the way that the Turks and Kurds of Dalston and Green Lanes drove away looters, reminiscent of the Pakistani communities of Balsall Heath and Lumb Lane in their heroic community spirit. (Elsewhere Bengalis in Whitechapel drove off looters attacking an Islamic bank.) For at a time when the word “community” is so misappropriated, they were the genuine thing – united, courageous and determined to face the hoodies down and make them scared. British society could learn a lot from the Dalston Turks."

Assim como o multiculturalismo pode ser uma das causas da degenerescência do sistema de ensino, também aparenta ter sido bem sucedido na integração de diversas etnias, visto que, pelas imagens que nos chegam, podemos observar que estão integrados no modus vivendi britânico, tendo apreendido os seus valores de respeito pela integridade física, pela propriedade privada e pública e pela ordem pública.

De resto, por estes dias troquei uns e-mails com Roger Scruton e, muito sucintamente, o que ele aponta, no sentido do capítulo que indiquei bem como do capítulo que o Bruno indicou, é que há uma combinação de vários factores que são causas deste problema. Em primeiro lugar a tal ausência de sentimento de pertença e responsabilidade pelo lugar, pessoas, comunidade e nação onde residem, em segundo, os pais que deixam as crianças à sua sorte e, por último, um sistema educacional que se dedica a reforçar atitudes anti-sociais.

E já hoje, como se suspeitava em resultado da detenção de vários jovens universitários nos últimos dias, saiu esta notícia que o Henrique Raposo indicou (http://clubedasrepublicasmortas.blogs.sapo.pt/896445.html) - http://www.telegraph.co.uk/news/uknews/crime/8694655/UK-riots-grammar-school-girl-is-accused-of-theft.html
Fica patente que há algo de terrivelmente errado com o sistema de educação britânico e com a forma como os pais educam os filhos.
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De BOS a 11.08.2011 às 13:34

Caro Samuel, concordamos no essencial. O sistema de ensino inglês tem responsabilidades, mas é inegável o papel do multiculturalismo nestas desordens. Repare que os acontecimentos começaram com os protestos contra a morte do líder de um gangue étnico, o Tottenham Mandem , gangue que com outros líderes já tivera responsabilidades nos motins de 1985.  Dedica-se ao tráfico de armas e drogas, com vários homicídios no currículo. Ora, o tal criminoso, chefe de gangue étnico, cadastrado, que estava armado quando foi morto pela polícia que o ia prender, foi logo apresentado pelos média como um "cidadão inocente", vítima do excesso policial. Queriam que a gente engolisse isto sem espinhas, do mesmo jeito que aduziam as explicações tradicionais: a "política social", os "cortes nos incentivos", o "desemprego", o "neoliberalismo"...


Como se lia também no mesmo The Telegraph, que o Samuel cita, mas desta vez pela pena do Damian Thompson: «This is what happens when multiculturalists turn a blind eye to gang culture».


Eu diria, em síntese, que numa primeira fase o multiculturalismo explica quase tudo: a morte do líder do gangue étnico, a reacção dos outros membros do gangue, os primeiros distúrbios provocados por outros gangues (Peckham Boys, Hackney Boys, etc.) Num segundo momento, estando já instalada a confusão e a "anarquia", talvez a educação possa responder pelos roubos praticados por universitários ou crianças de 10 anos.


No entanto, ao contrário do que Ed West sugere, temo que os ingleses não possam aprender nada com os turcos. Estão impedidos de o fazer. A polícia dispersou vários grupos de ingleses (em Eltham e noutros locais) que queriam, também eles, defender a sua comunidade. Como escrevia um amigo inglês no Facebook: «Turks, Pakistanis, Poles & Sikhs can defend their communities &  are lauded as heroes by media liars. But when our people do it we're scum & extremists».</span>

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De Luís Barata a 12.08.2011 às 00:54

    Não é por estarem presentes brancos e pretos que se trata de multiculturalismo. Só é multiculturalismo quando estão presentes duas culturas diferentes. No caso Inglês, como também acontece por cá, há muitos brancos cuja cultura é igual à dos pretos. Prova disso é o facto de terem a mesma linguagem, andar expressões etc.
    O multiculturalismo falhou e falhará sempre, quando duas culturas que não têm os mesmos princípios são obrigadas a conviver. Em rigor, nem se deveria usar a expressão multiculturalismo porque quase sempre a incompatibilidade se dá entre uma civilização e uma cultura. E é esse o caso Inglês e que também está  espalhado por toda a Europa. Constitui ele uma errada concepção da filosofia moderna que abarca hoje todos os países da União Europeia e não só.   
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De Anónimo a 20.08.2011 às 10:08


"Obviamente que, juntando a isto a guetização social promovida pela social-democracia(...)" não concordo inteiramente pois os guettos nao sao promovidos apenas por culpa desta, os guettos são criados pelo multiculturalismo e consequentes desigualdades culturais.  De qq maneira axo o ensaio muito bom.

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