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Por mão amiga e por ver alguns elogios que lhe são dirigidos, cheguei a este texto de Tom G. Palmer sobre a forma, supostamente cabal, como a visão libertária responde à crítica comunitária. Por razões óbvias, e para não incorrer no mesmo erro de Palmer de misturar as tradições comunitárias progressistas e tradicionais, secularizadas ou jusnaturalistas, vou apenas escrever sobre as embaraçosas confusões do autor sobre o conservadorismo tradicional e o jusnaturalismo cristão e a disparatada forma como este escapa aos assuntos reais.

 

Quando Russell Kirk ataca os libertários por serem contra todo o tipo de tradição ou constrangimento ao indivíduo, não está a afirmar que não existe uma tradição liberal de pensamento ou que estes são defensores de quaisquer formas de anarquia. O que está a afirmar é a inexistência de um ponto geométrico nessa forma de pensar que possa, extra-comunitariamente, servir como fonte de consagre essa mesma limitação. Como é evidente, se não existe esse ponto e se a normatividade política não é mais do que a consequência política de um entendimento social, não existe qualquer comunidade que se possa considerar liberal, uma vez que com a mudança do entendimento do que deve ser a lei poderão emergir formas de despotismo. Os liberais clássicos tinham uma fórmula teórica para combater essas formas de degenerescência, o jusnaturalismo secular, que esgrimiram durante alguns séculos. Mas hoje são poucos os que acreditam nessa fórmula, dado que os liberais de hoje não conseguem imaginar fundar as suas teorias em concepções teóricas que nada fazem senão replicar formas secularizadas de protestantismo religioso. O Estado de Natureza de Locke, apesar de aventado como pressuposto teórico e verificável pela razão, não é mais que uma história de embalar protestante. Retirando-lhe a narrativa pessoal e a obsessão pelo conceito de propriedade, esse pressuposto teórico não é mais que um sonho de perpetuar pela ideologia algo que começava a estar em perigo. É claro que os liberais podem sempre dizer que partilham esse sonho e que esta é uma proposta de sociedade entre outras, mas recaem aí no paradoxo dos “neos”. Defendem os mercados, a propriedade, as liberdades individuais, deixando cair o carácter arbitrário e supra-comunitário da visão de Locke, mas esquecendo que sem esse mesmo carácter a articulação da sua posição tem o mesmo valor que quaisquer outras obsessões sociais, vulgo ideologias. Hayek, por não ser um desses liberais jusnaturalistas, fundou toda a sua teoria nas areias movediças de uma prosperidade e de um progresso que os outros não corroboraram. O resultado é claro. Há muitas boas razões para não se desejar o progresso ou a maximização económica. Esta falha gerou a morte teórica de Hayek e do neoliberalismo. Essa é uma história que não voltará atrás.

 

Há ainda a propósito de Kirk um outro erro no texto. Palmer refere que o tradicionalismo é incoerente uma vez que existem várias tradições e que estas conflituam entre si. A ideia é agradável pelo seu simplismo e apelativa para qualquer pessoa que se depare com as ideias de tradição modernas, dos românticos ingleses e alemães ou de Oakeshott p.ex. Mas infelizmente para a arrumação de ideias em rótulos simples que o dito parece apreciar, as ideias tradicionalistas de Kirk são alicerçadas numa compreensão normativa que ordena o papel das tradições. Existem muitas tradições comunitárias, mas a sua adequação normativa é resultado de uma hierarquia de bens alicerçada numa filosofia e numa religião, ou seja, numa cosmovisão. O argumento não só é disparatado (o mesmo que dizer que o liberalismo não tem validade por existirem várias definições de liberdade), demonstra pouco senso (a ideia de que um pensamento com séculos se desmonta com um axioma que uma criança de cinco anos poderia elaborar), como revela pouco conhecimento de uma tradição de pensamento que, diga-se o que se disser, é ainda bastante importante na teoria política.

 

Há ainda um ponto que é particularmente importante e a que o liberalismo e os liberais falham em dar uma resposta minimamente razoável. Palmer reflecte sobre as maravilhas de uma sociedade que dá aos seus cidadãos normais a capacidade de fazerem o que desejam na sua esfera privada. O conceito relevante aqui é a questão da normalidade e a forma como este sempre foi utilizado para determinar quem tem lugar a ser ouvido na esfera pública. Locke determinou como anormais os ateus e os católicos, incapazes de disporem de si próprios numa sociedade ordenada. Depois foram os socialistas. Depois os fascistas, nazis e racistas. Para uma teoria de abrangência e liberdade, não está nada mal e é muito interessante ver a forma como a oposição a pressupostos teóricos do liberalismo acarretam imediatamente a desclassificação enquanto ser normal. Este monopólio da exclusão (a que as outras ideologias se arrogam sem estranheza) acompanha o liberalismo na sua ascensão, sem que nenhum liberal questione que a panaceia da liberdade se alimente de tantos silenciamentos.

 

Nota: Texto editado por Samuel de Paiva Pires apenas ao nível da formatação do tipo de letra, com autorização do autor.

publicado às 10:40


2 comentários

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De Cristina Ribeiro a 08.11.2011 às 23:56

" Palmer refere que o tradicionalismo é incoerente uma vez que existem várias tradições e que estas conflituam entre si. A ideia é agradável pelo seu simplismo e apelativa para qualquer pessoa que se depare com as ideias de tradição modernas, dos românticos ingleses e alemães ou de Oakeshott p.ex. Mas infelizmente para a arrumação de ideias em rótulos simples que o dito parece apreciar, as ideias tradicionalistas de Kirk são alicerçadas numa compreensão normativa que ordena o papel das tradições. "
      Que saudades que tinha de textos com esta profundidade, que nos faz ler uma e outra vez até atingirmos o que deles podemos extrair e aprender. Muito bem-vindo Corcunda, uma contratação de luxo!
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De Samuel de Paiva Pires a 09.11.2011 às 00:01

Secundo o comentário da Cristina. Já tínhamos saudes dos teus textos. Fazes-me debruçar sobre uma série de livros e, com o pouco tempo com que estou, não consigo por agora esboçar uma réplica minimamente sustentada, até porque estou em acordo com grande parte do texto, excepto no que diz respeito a Hayek. 

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