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Na luta pela desmistificação, contra o fanatismo e a intolerância, os meus parabéns ao José Maria Barcia pela iniciativa de entrevistar vários maçons e interessados. Dificilmente seria possível começar de melhor forma do que com esta entrevista ao Professor Maltez, que aqui transcrevo na íntegra com a devida autorização do Zé Maria:
Antes de mais, o que representa para si a maçonaria?
Tenho uma concepção do mundo e da vida típica da profunda tradição liberal, fiel aos valores de Espinosa, Montesquieu e Kant que, em Portugal, tiveram expressão na luta de ideias de Silvestre Pinheiro Ferreira, Vicente Ferrer de Neto Paiva e Alexandre Herculano. Gostava de redundar o Estado conforme o exemplo dos decretos de Mouzinho da Silveira, a moralidade de Passos Manuel, o entusiasmo de José Estêvão, o sinal do Código Civil do Visconde de Seabra e o pioneirismo da abolição da pena de morte, de 1867, bem como para manter a boa relação entre a política e a religião do presente regime, fundado quando os velhos carbonários defenderam a liberdade dos católicos no cerco ao Patriarcado ou no assalto à Rádio Renascença, em 1975, quando novos totalitarismos nos ameaçavam.
Apertos de mãos, protocolos, símbolos e significados. Porquê?
Não conheço nenhuma instituição que não tenha uma ideia de obra, manifestações de comunhão entre os seus membros e cumprimento de estatutos internos. No caso da maçonaria, que não é uma religião nem mera ideologia, onde se vivem e revivem lendas, alegorias e símbolos, através de rituais conhecidos, é mais intensa e formalizada essa dimensão, até com a procura do próprio sagrado. Logo, ver de fora qualquer comunidade de coisas que se amam pode levar muitos a dizer que todas as cartas de amor são ridículas. Mas como dizia Fernando Pessoa, é bem mais ridículo não se escreverem cartas de amor. Ou não responder a uma entrevista na blogosfera, só porque o interpelante tem manifestado óbvias divergências com a minha concepção do mundo e da vida, mas talvez seja capaz de reconhecer que comete erros, tem dúvidas e pode enganar-se, até na listagem de inimigos públicos.
Como é a reunião ideal dentro de uma Loja?
Segundo aquilo que estudei, não pode haver reuniões dentro de lojas, há reuniões rituais das lojas, onde é proibida a discussão de matérias de política e de religião, porque se tem de fazer maçonaria. Quando as lojas promovem reuniões abertas a não maçons, as sessões brancas, elas são como todas as outras reuniões de qualquer grupo. Daí que não se possa inferir que um convidado seja maçon, ou ligado à maçonaria, dado que até conheço casos de convites a antimaçons para manifestarem suas perspectivas junto de maçons.
Qual é, ou qual deve ser o papel principal da maçonaria num país como Portugal?
Contribuir para a regeneração de uma sociedade secreta iniciática fundada em 1140 e sucessivamente redundada, a república dos portugueses, que, durante séculos, foi governada por reis. Porque temos de a libertar do presente protectorado, com mais liberdade, mais sociedade e mais coisa pública. Isto é, contribuir para nova refundação de Portugal.
Em resposta à polémica instalada na Assembleia da República, devem os maçons serem obrigados a admitirem que o são?
Qualquer cidadão deve contribuir para que cada um possa viver como pensa. Mas como as leis são gerais e abstractas, julgo que há dificuldades normativas quanto ao cumprimento do princípio da não discriminação, consagrado pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente no artigo 11. Pelo menos, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já condenou a Itália em 2007 por um acto legislativo desse teor, emitido por uma das suas regiões.
Num país que considera a maçonaria um ''clube privado de amigos'' que lutam apenas pelo seu interesse, haverá fundo de verdade nesta crença popular?
No ambiente anglo-americano, as maçonarias são, sobretudo, modelos de "societies of friends" e a percepção externa liga-as a actividades de filantropia. Porque os valores que defendem são tão naturais como o ar que aí se respira. Em sociedades que sofreram a Inquisição, os autos de fé, Pina Manique, moscas, bufos, caceteiros e extinções, ainda há preconceitos e fantasmas, logo incompreensões resultantes de velhos conflitos entre política e religião, entre anticlericalismos ultrapassados e antimaçonismos requentados. Uns esquecem-se que o conservadorismo contemporâneo foi fundado pelo maçon Edmund Burke, outros, que, do anarquismo ao socialismo, de Proudhon a Antero de Quental, foi comum a coincidência maçónica, bem como na fundação do projecto europeu, de Winston Churchill a Jean Monnet. Por outras palavras, a civilização ocidental a que chegámos é o resultado da convergência do humanismo cristão com o humanismo maçónico, tanto à direita como à esquerda, de liberais a socialistas, unidos na luta contra a ignorância, o fanatismo e a tirania, nomeadamente contra as experiências totalitárias do século XX.
De acordo com a notícias actuais, a maçonaria é vista como um problema à democracia. A lealdade aos irmãos é superior à responsabilidade de cargos públicos?
Do que imperfeitamente sei, a maçonaria, em todos os tempos e em todos os sítios, nunca abdicará de ser uma sociedade iniciática, sob pena de perder a respectiva natureza. De acordo com as regras que a regem não pode ser uma sociedade secreta política em regimes de liberdade que não imponham o dever de resistência, definido pela própria escolástica católica. Assim, seria inconstitucional e antimaçónico qualquer anacronismo de clandestinidade política de maçons num regime como o nosso, onde todas as normas fundacionais do Estado de Direito corresponderam aos ideais expressos pelos maçons históricos, nomeadamente na Constituição. Basta recordar os símbolos e os exemplos dos maçons Adelino da Palma Carlos, o primeiro chefe do governo, da restaurada liberdade, de Emídio Guerreiro, líder do PSD, ou de Raul Rego, futuro grão-mestre do GOL, no PS.
Não sendo uma sociedade secreta mas sim uma sociedade com segredos, não há aqui um desvio à transparência exigida numa democracia?
O GOL, fundado em 1802, é a mais antiga sociedade demoliberal portuguesa, com continuada actividade. E sem ser por acaso é, em termos cronológicos, a segunda organização maçónica do mundo. Logo, é um dos elementos fundamentais do nosso património cultural que se perde nas brumas da memória, tal como a Igreja Católica. Isto é, tanto é um valor nacional, como é europeu e universal, e como tal é reconhecido tanto pela Comissão Europeia como pela própria ONU, participando, através do CLIPSAS, no Conselho Económico e Social da organização. Apenas se reconhece o óbvio, o próprio desenho maçónico que esteve na base da Sociedade das Nações em 1918, num processo onde participaram portugueses tão ilustres como o futuro prémio Nobel, Egas Moniz, ou o ex-chefe do governo, Afonso Costa, insignes maçons, por acaso inimigos políticos, no plano doméstico.
Será, de facto, fácil de admitir que a maçonaria sofreu uma degeneração dos seus princípios?
As coisas humanas, mesmo as que procuram o sagrado, tanto degeneram como se aperfeiçoam, tal como cada um de nós cai e se levanta. A perfeição apenas reconhece que cada um deve reconhecer a respectiva imperfeição para que possa procurar a perfeição. Segundo uma alegoria maçónica, chama-se a isso trabalhar a pedra bruta, para depois a polir e permitir a construção do templo interior.
Casos como o das secretas, não prejudicam gravemente a reputação da maçonaria? Deve haver limites à actuação dos membros ou mesmo castigos a quem usa em vão o seu posto de maçon?
Do que foi dito e tem aparecido, julgo que o principal problema está nos órgãos de investigação criminal do Estado português, nas leis por cumprir que regem a matéria e na falta de adequada fiscalização parlamentar. Não está nos bodes expiatórios e muito menos na eventual coincidência de alguns implicados em parangonas jornalística com sociedades maçónicas. E a transparência talvez exija que não manipulem a luta pela transparência, alimentando uma fumarada que pode ocultar lutas partidárias pelo poder político, ou lutas de grupos de negócios pelo poder económico, social e comunicacional.
Historicamente, a maçonaria teve um papel relevante em Portugal. Que mais se pode esperar?
Que os valores professados pela tradição liberal possam ser tão naturais quanto o ar que se respira num país livre, com homens livres. E que os maçons não esqueçam momentos dramáticos em que se dividiram em jogos profanos e dissidências politiqueiras, como foi flagrante com o cabralismo e a patuleia, ou no processo de decadência da Primeira República, com afonsistas, almeidistas, camachistas, sidonistas e outros istas da personalização poder, desrespeitando as fundamentais constituições da ordem. O que nos falta é uma nova maçonologia, isto é, uma actividade científica e não meramente apologética, que estude o fenómeno maçónico, não apenas no campo historiográfico, mas também nos domínios da filosofia, da antropologia, das belas artes, da literatura ou da arquitectura.
Em Portugal debate-se sempre constantemente o problema da corrupção. A maçonaria pode ter um papel contra este problema?
Tenho um artigo sobre a matéria no número um da nova série da Revista de Maçonaria, que congrega profanos e maçons de várias obediências. É exactamente a mesma coisa que tenho vindo a dizer em revistas científicas desde o século passado e que me levaram a estar associado à implantação em Portugal de duas experiências de introdução da Transparency internacional, finalmente consolidada com a associação cívica Transparência e Integridade, cujos princípios advogo militantemente.
O que se pode esperar da maçonaria para os próximos tempos?
Que seja liberdadeira, de acordo com as regras tradicionais da liberdade individual, da autonomia da sociedade civil e da integração dos valores da libertação nacional no cosmopolitismo, para que cada nação possa converter-se armilarmente na super-nação futura, a república universal. Isto é, que tenha saudades de futuro, conforme o sonho do maior dos símbolos maçónicos do século XX português, Fernando Pessoa.
"Dada a latitude desta definição, e considerando que por "associação" se entende um agrupamento mais ou menos permanente de homens, ligados por um fim comum, e que por "secreto" se entende o que, pelo menos parcialmente, se não faz à vista do público, ou, feito, se não torna inteiramente público, posso, desde já, denunciar ao sr. José Cabral uma associação secreta - O Conselho de Ministros. De resto, tudo quanto de sério ou de importante se faz em reunião neste mundo, faz-se secretamente. Se não reúnem em público os conselhos de ministros, também não o fazem as direcções dos partidos políticos, as tenebrosas figuras que orientam os clubes desportivos, ou os sinistros comunistas que formam os conselhos de administração das companhias comerciais e industriais." (Fernando Pessoa).