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Que um estado ocidental, que se diz demo-liberal, se arrogue a autoridade de violentar a sociedade e os indivíduos que a compõem, redesenhando, sem mandato para tal, uma instituição que não lhe pertence - a língua -, parece ser algo que nem nos meus sonhos mais grotescos conseguiria imaginar. Às vezes ainda tenho dificuldade em acreditar que aquilo que se passa seja real. Ler este artigo de André Abrantes Amaral recordou-me que já Orwell, na sua intemporal distopia, tratou de temática semelhante, a que se referiu como novilíngua.
Entretanto, continuo a não perceber como é que este repulsivo acordo vai avançando com um envergonhado silêncio ruidoso e opressivo por parte de quem nos governa. A desculpa de que é um acordo internacional não colhe. Ainda que o princípio de pacta sunt servanda seja um imperativo através do qual os estados se dão ao respeito na arena internacional, não é menos verdade que a política externa, embora seja assunto que à esmagadora maioria dos portugueses não interesse sumamente, é, ou pelo menos deve ser, reflexo de consensos generalizados na sociedade. Ora, se, como é mais do que audível e visível, a esmagadora maioria dos portugueses é contra este acordo, alguém me explica porque continua o Governo a fazer ouvidos de mercador, perante tamanha revolta em face deste acto digno de um regime totalitário?
Leitura complementar: Contra o processo de apagamento da identidade portuguesa em curso, de que deixo aqui o parágrafo em que me refiro ao A.O.:
Não pretendo estender-me numa análise do género da que muitos têm feito, e bem, sobre as incoerências linguísticas do próprio acordo ou os errados critérios e interesses que o norteiam, como Pedro Mexia salientou num excelente artigo publicado no Expresso de 14 de Janeiro de 2012. E não o pretendo fazer porque, antes de mais, fazê-lo é aceitar a existência do próprio acordo. É aceitar que o estado é dono da língua. É aceitar que, sem que ninguém lhe tenha conferido esse mandato, o estado se pode arrogar a possibilidade de fazer o que quer com a língua. No caso em apreço, é aceitar que o estado pode convocar um grupo de alegados iluminados e permitir-lhes redesenhar a língua de milhões de pessoas a seu bel-prazer. Escapa a estes iluminados, provavelmente herdeiros da filosofia cartesiana que incorre no racionalismo construtivista – um ignóbil produto da modernidade que inspirou totalitarismos assentes no princípio de que é possível desenhar ou redesenhar uma sociedade complexa a partir de cima, ou seja, do aparelho estatal – uma coisa tão simples quanto isto: a língua é uma das instituições humanas originada e desenvolvida espontaneamente, i.e., através da interacção de milhões de indivíduos ao longo do tempo. A língua originou-se através da natural evolução humana e é por via das interacções que se registam numa comunidade ou sociedade que se vai modificando, de forma lenta, gradual e sem coação estatal. A língua não é produto nem pode ser apropriada por um aparelho cuja fundação é posterior ao momento de origem da língua da sociedade de onde aquele emana. Sinto-me ultrajado com este acordo e pela violentíssima forma como o estado tem avançado para o impor. Raras vezes tenho sentido uma revolta tão grande, uma revolta que cada vez mais me custa calar e que é, com toda a certeza, partilhada por milhões dos meus compatriotas. É difícil, mas não impossível, resistir ao rolo unidimensionalizador da única instituição que detém o monopólio da força legítima. Mas não resistir é aceitar a coação estatal num domínio que é nosso, dos indivíduos e da sociedade, dos portugueses, não do estado. E é por isto que sou terminantemente contra a existência de qualquer acordo ortográfico. Este ou outros (e sim, sei que se fizeram vários ao longo do século XX e sempre por razões políticas). Não discuto os critérios do acordo porque, por uma questão de princípio, este nem sequer deveria existir.