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Liberalismo clássico, conservadorismo e democracia

por Samuel de Paiva Pires, em 19.03.12

Aqui fica o meu artigo publicado no número 1 da popcom, a nova publicação do Gabinete de Estudos Gonçalo Begonha, da Juventude Popular.

 

 

(Locke, Burke, Montesquieu, Hayek)

 

O liberalismo clássico é uma tradição política que representou uma ruptura com o que se designa por Ancien Regime, materializada concretamente nas Revoluções Atlânticas – Inglesa (1688), Americana (1776) e Francesa (1789). Estas encontram-se na origem daquilo que hoje denominamos por democracia liberal. Na verdade, a democracia liberal e os diversos entendimentos quanto a esta, podem dividir-se em duas grandes correntes, tendo como diferença essencial a forma como encaram o conceito de liberdade, que se encontra no âmago do liberalismo e em torno do qual existem complexas teorizações. Esta distinção permite-nos considerar que, na realidade, não há apenas um liberalismo, mas vários, embora o liberalismo constitua uma única tradição política.[1]

 

 

De um lado, os teóricos que inspiraram os revolucionários britânicos e norte-americanos, em especial John Locke e Montesquieu, respectivamente, convergem quanto ao cepticismo em relação ao exercício do poder, apesar de encararem o governo como um mal necessário, pelo que se preocupam essencialmente em arquitectar checks and balances que actuem como forma de difusão do poder, salvaguardando a liberdade individual da coerção por parte de terceiros, em especial do próprio estado. Por outro lado, os revolucionários franceses, em particular os jacobinos, inspirando-se em Jean-Jacques Rousseau e nas noções de bem comum e vontade geral, preferiram subscrever a ideia de soberania popular, em claro contraste com a ideia de governo limitado que é a base da tradição anglo-americana. Embora as três Revoluções visassem romper com o absolutismo monárquico e o Ancien Régime, os seus objectivos e o tipo de regime que propunham não era o mesmo. De acordo com João Carlos Espada, “Nos casos inglês e americano, tratava-se de restaurar um governo limitado, fundado no consentimento dos eleitores. No caso francês, tratava-se de substituir o antigo absolutismo monárquico por um novo absolutismo, popular e republicano.”[2]

 

A estas duas concepções corresponde o que se pode denominar por liberalismo velho e liberalismo novo, ou liberalismo clássico e liberalismo contemporâneo, respectivamente.[3] Friedrich Hayek, um dos principais autores liberais do séc. XX, insere-se na primeira tradição, de carácter evolucionista e anti-construtivista, que encontra nos Old Whigs britânicos (facção que se viria a assumir no seio do partido político que tomava o nome Whig, contra outra que tinha adeptos da acepção liberal continental) e nos autores do iluminismo escocês os seus principais expoentes. A segunda concepção, por seu lado, deriva de uma abordagem filosófica racionalista e construtivista, baseada nos ensinamentos de René Descartes, mas também de Thomas Hobbes, e encontra em Rousseau e Voltaire os seus principais teóricos.[4]

 

Estas duas tradições, embora encontrem algum grau de concordância quanto a determinados postulados, em particular no que concerne às liberdades de pensamento, expressão e imprensa, assim como no que diz respeito à crença na liberdade individual de acção e em algum tipo de igualdade entre os homens, têm, na realidade, concepções muito diferentes quanto aos conceitos de liberdade e igualdade, utilizados com significados opostos pelos seus exponentes. Conforme faz notar Hayek, “Enquanto para a velha tradição britânica, a liberdade do indivíduo no sentido da protecção pela lei contra toda a coerção arbitrária era o valor principal, na tradição continental era a procura pela auto-determinação de cada grupo em relação à sua forma de governo que ocupava o lugar mais elevado”,[5] Embora a tradição britânica tenha raízes na Antiguidade Clássica, John Locke e Edmund Burke foram dois dos seus autores principais, dando-lhe um corpo teórico com algum grau de sistematização, desenvolvendo desta forma a doutrina Whig. A mesma foi desenvolvida pelos iluministas escoceses, em especial Adam Smith, David Hume, Adam Ferguson e Bernard Mandeville, e também por Montesquieu, Lord Acton e Alexis de Tocqueville.

 

Foi com John Locke, o teórico da Revolução Gloriosa, que, pela primeira vez, os elementos centrais do liberalismo foram teorizados e articulados de forma coerente. Ao nível da prática, segundo John Gray, o liberalismo inglês compreendia um forte parlamentarismo sob a rule of law, i.e., o que normalmente designamos por estado de direito, contra o absolutismo monárquico, em conjunto com uma enfática defesa da liberdade de associação e do conceito de propriedade privada, o que dá corpo ao conceito de sociedade civil, “A sociedade de homens livres, iguais perante a lei, unidos por nenhum propósito comum para além da partilha do respeito pelos direitos de cada um.”[6]

 

Considerando Locke que o primeiro direito de propriedade é o direito de propriedade pessoal, ou seja, a capacidade de podermos dispor de nós próprios, das nossas capacidades e talentos – embora, para Locke, essa liberdade devesse enquadrar-se na doutrina dos direitos naturais, enquanto criaturas de Deus –, há então uma relação inegável entre o direito de propriedade pessoal e a liberdade individual.[7] A característica central e a mais importante contribuição de Locke para o liberalismo inglês é, sem dúvida, a percepção clara de que a independência pessoal e a liberdade individual pressupõem a propriedade privada, protegida pelo estado de direito.[8]

 

Hayek tem precisamente a mesma concepção que Locke quanto à ligação entre a lei, a propriedade e a liberdade individual. O reconhecimento da propriedade privada é essencial para assegurar a justiça, já que, como Locke assinala, “onde não há propriedade não há justiça”.[9] Ao contrário de Jeremy Bentham, para quem a lei constituía uma infracção contra a liberdade, para Locke, como para Hayek, conforme nota André Azevedo Alves, “a liberdade em sociedade não é, nem pode ser, ilimitada, antes consistindo na sujeição à lei em alternativa à submissão a um poder arbitrário”[10], tratando-se, em suma, da acepção lockeana de que “onde não há lei, não há liberdade.”[11]

 

Para Locke, a actividade política é um instrumento que visa criar um enquadramento e condições de liberdade para que os fins privados de cada indivíduo possam ser alcançados na sociedade civil. Sendo os indivíduos, em última análise, os melhores juízes dos seus próprios interesses, as áreas de actuação do governo têm que ser restritas e o exercício do poder constrangido, para permitir o maior grau de liberdade possível a cada cidadão.[12] Para tal, um governo limitado e o respeito pela lei são elementos indispensáveis.

 

Locke dá às instituições liberais as suas bases técnicas, esboçando os modernos regimes contemporâneos, ou seja, a monarquia constitucional, o parlamentarismo e o presidencialismo.[13] Feroz inimigo de qualquer dominação absoluta, introduz o princípio da separação de poderes, ou melhor, teoriza com maior rigor aquilo que já Aristóteles havia distinguido – a deliberação, o mando e a justiça. Para Locke, há três domínios de acção: “o da lei, a disposição geral; o da aplicação da lei pela administração e pela justiça; e (...) o das relações internacionais, o poder «federativo».”[14] Além do mais, é necessário que não sejam os mesmos indivíduos a elaborar e executar as leis. Ao parlamento caberá o poder legislativo e a outras instituições o poder executivo. Finalmente, a separação em três poderes reverte, na prática, a dois, já que o federativo se junta ao executivo, no que concerne à condução das relações externas.[15] De acordo com Hayek, embora, do ponto de vista filosófico, Locke se preocupasse em justificar a legitimidade do poder, de um ponto de vista mais prático, pretendia prevenir que o titular do poder o utilizasse de forma arbitrária, incerta e inconstante.[16]

 

É, no entanto, de notar que apesar de Locke ser considerado um precursor da democracia liberal, esboçando muitos dos aspectos que se viriam a tornar centrais nesta, como sejam os direitos individuais, a soberania popular, a regra da maioria, a separação de poderes, a monarquia constitucional e a representatividade por via de um sistema de governo parlamentarista, estas ideias se encontram no seu pensamento de forma ainda algo rudimentar.[17]

 

No decurso do século XVIII estas ideias, que compuseram a doutrina Whig, tornaram-se características da doutrina britânica no geral e foram amplamente divulgadas e desenvolvidas, por exemplo, por Montesquieu, que elaborou em maior detalhe a teoria da separação de poderes, na sua obra Do Espírito das Leis. Partindo da sua famosa proposição de que “todo o homem que tem poder é levado a abusar dele”[18] indo até onde encontra limites, considerou que “Para que se não possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder trave o poder”[19], o que nem sempre é conseguido por intermédio das leis “dado que estas sempre podem ser abolidas, como mostraria a experiência dos conflitos entre as leis e o poder, onde este sai sempre vitorioso.”[20] Socorrendo-nos aqui da articulação que José Adelino Maltez faz (a partir de uma edição francesa da obra de Montesquieu), citamos o mesmo na íntegra: “Assim, visionou um sistema de pesos e contrapesos, tratando de limitar o poder no interior do próprio poder, onde, para cada faculdade de estatuir (estatuer), o direito de ordenar por si mesmo ou de corrigir aquilo que foi ordenado por outro, deveria opor-se uma faculdade de vetar ou de impedir (empêcher), o direito de tornar nula uma resolução tomada por qualquer outro. Deste modo, considerava que, para formar um governo moderado, é preciso combinar os poderes (puissances), regulá-los e temperá-los.[21]

 

E enquanto os iluministas escoceses, para quem a sociedade e as suas instituições são o resultado de um processo de crescimento cumulativo em que a ordem social é um produto da interacção entre instituições, hábitos, costumes, lei e forças sociais impessoais, iam desenvolvendo a doutrina Whig, coube a Edmund Burke não só elaborá-la em termos filosóficos, mas também institucionalizá-la e demonstrá-la com aplicações práticas dos seus princípios, na qualidade de Member of Parliament, por exemplo, defendendo a emancipação das colónias americanas e criticando violentamente a Revolução Francesa.

 

Burke é também considerado como o fundador do conservadorismo moderno. Na realidade, existem pontos em comum mais do que suficientes para justificar empreender um exercício de conciliação entre liberalismo e conservadorismo, pese embora algumas divergências que impedem uma síntese acabada e sem dilemas filosóficos ao nível da coerência teórica interna.

 

O liberalismo e o conservadorismo partem do pessimismo antropológico, baseando-se nesta acepção para perspectivar as relações humanas e a sociedade a partir do pior cenário possível, questionando, por exemplo, como se comporta o mercado quando os homens são homens – e, portanto, imperfeitos – e não anjos.[22] Tendo na liberdade individual um princípio primeiro, é desta forma que procuram transformar a ganância humana, algo tido como moralmente pejorativo, numa contribuição efectiva para a sociedade no geral, tornando vícios privados em bens públicos através do mercado livre, que já incorpora uma moral tradicional, como veremos. Ambas as correntes são também apologistas do Direito Natural, com o qual o estado deve estar em consonância, visto que consubstancia direitos que são pré-políticos, anteriores ao próprio estado. Não admira, por tudo isto, que se oponham veementemente ao socialismo e ao planeamentismo característico deste, assim como à crença moderna nas ideias de revolução e progresso.

 

Entre Burke e Hayek, as parcas diferenças parecem ficar a dever-se ao credo religioso, sendo o primeiro seguidor do cristianismo e o segundo agnóstico. Embora esta diferença se reflicta em diversos autores, a verdade é que ambas as correntes têm visões similares quanto à natureza humana, a sociedade, o papel da razão e as tarefas do governo. Para liberais e conservadores, as condições para que uma sociedade floresça consubstanciam-se no necessário respeito e compreensão pelas forças que mantêm a ordem social, que não deve ser alvo de manipulação e controlo por parte de teorias que pretendam acabar com ela, sendo o desejo de apagar o que existe e desenhar a sociedade de novo apenas a demonstração de uma profunda ignorância quanto à natureza da realidade social. Esta mesma acepção inspira a forma como encaram o papel da razão, considerando que a civilização não é uma criação resultante de uma construção racional, mas o imprevisto e não intencionalmente pretendido resultado da interacção espontânea de várias mentes numa matriz de valores, crenças e tradições não racionais ou supra racionais, o que não significa que o liberalismo e conservadorismo sejam irracionais, mas apenas que não o são no sentido cartesiano, socialista, preferindo reconhecer limites ao poder da razão humana e considerando o “homem não como um ser altamente racional e inteligente mas sim muito irracional e falível, cujos erros individuais são corrigidos apenas no decurso do processo social.”[23]          

 

Ademais, a divergência quanto à religião não constitui obstáculo a uma defesa da tradição e do mercado livre, inclusivamente em termos morais. Em Hayek encontramos a defesa da tradição, do costume e de uma moralidade baseada no senso comum, de índole prática, como aponta Roger Scruton. Este filósofo conservador britânico assinala que Hayek encara o mercado livre como sendo parte de uma ordem espontânea alargada, fundada na livre troca de bens, ideias e interesses – o jogo da cataláxia, na terminologia hayekiana. Este jogo acontece ao longo do tempo e para além dos vivos tem nos mortos e nos ainda por nascer os restantes jogadores, como Burke também havia afirmado, que se manifestam através das tradições, instituições e leis. A assertividade dos argumentos apresentados por Scruton quanto à compatibilidade entre a tradição, a moral e o mercado é por demais evidente: “Aqueles que acreditam que a ordem social exige restrições ao mercado estão certos. Mas numa verdadeira ordem espontânea as restrições já lá estão, sob a forma de costumes, leis e princípios morais. Se essas coisas boas decaem, então de forma alguma, de acordo com Hayek, pode a legislação substituí-las, pois elas surgem espontaneamente ou não surgem de todo, e a imposição de éditos legislativos para a “boa sociedade” destrói o que resta da sabedoria acumulada que torna tal sociedade possível. Não é, por isso, surpreendente que pensadores conservadores britânicos – notavelmente, Hume, Smith, Burke e Oakeshott – tendam a não ver qualquer tensão entre a defesa do mercado livre e uma visão tradicionalista da ordem social. Eles puseram a sua fé nos limites espontâneos que o consenso moral da comunidade coloca ao mercado. Talvez este consenso esteja agora a quebrar-se. Mas esta quebra resulta, em parte, da interferência estatal, e é certamente improvável que venha a ser reparada pela mesma.”[24]

           

Por tudo isto, nada como terminar subscrevendo José Adelino Maltez, quando este afirma que partilhamos de “uma concepção do mundo e da vida anti-construtivista, anti-revolucionária e anti-estadista, segundo a qual não é a história que faz o homem, mas o homem que faz a história, mesmo sem saber que história vai fazendo.”



[1] John Gray, Liberalism, 2.ª Edição,Minneapolis, The University of Minnesota Press, 1995, p. xiii.

[2] João Carlos Espada, “Dois conceitos de democracia” in i online, 30 de Maio de 2009. Disponível em http://www.ionline.pt/conteudo/6601-madison-e-rousseau-dois-conceitos-democracia. Consultado em 19/02/2012.

[3] João Carlos Espada, “A tradição da liberdade e a sua memória: razão da sua importância” in João Carlos Espada, Marc F. Plattner e Adam Wolfson, orgs., Liberalismo: o Antigo e o Novo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2001, p. 17.

[4] F. A. Hayek, New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1990, p. 120.

[5] Ibid., p. 120.

[6] John Gray, Liberalism, op. cit., p. 13.

[7] John Locke, Two Treatises of Government,Cambridge,Cambridge University Press, 2010, pp. 287-288.

[8] John Gray, Liberalism, op. cit., p. 14.

[9] John Locke, Essay Concerning Human Understanding, in The Works of John Locke in Nine Volumes, Londres, Rivington, 1824, p. 112. Disponível em http://oll.libertyfund.org/index.php?option=com_staticxt&staticfile=show.php&title=762. Consultado em 20/06/2011.

[10] André Azevedo Alves, Ordem, Liberdade e Estado: Uma Reflexão Crítica sobre a Filosofia Política em Hayek e Buchanan, Senhora da Hora, Edições Praedicare, 2006, p. 35.

[11] John Locke, Two Treatises of Government, op. cit., pp. 305-306

[12] David Held, Models of Democracy,Cambridge, Polity Press, 2008, pp. 64-65.

[13] Marcel Prélot e Georges Lescuyer, História das Ideias Políticas, Vol. 2, Lisboa, Editorial Presença, 2000, p. 42.

[14] Ibid., p. 43.

[15] Ibid., p. 43.

[16] F. A. Hayek, The Constitution of Liberty, Londres, Routledge, 2010, p. 149.

[17] David Held, op. cit., p. 65.

[18] Montesquieu, Do Espírito das Leis, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 303.

[19] Ibid., p. 303.

[20] José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição, Lisboa, ISCSP, 1996, p. 148.

[21] Ibid., p. 148.

[22] Peter J. Boettke e Peter T. Leeson, “Liberalism, Socialism, and Robust Political Economy”, in Journal of Markets & Morality, Vol. 7,  N. 1, p. 100.

[23] F. A. Hayek, “Individualism: True and False”, in Individualism and Economic Order,Chicago, The University ofChicago Press, 1996, pp. 8-9.

[24] Roger Scruton, “Hayek and conservatism”, in Edward Feser (ed.), The Cambridge Companion to Hayek,Cambridge, Cambridge University Press, 2006, p. 219.

 

publicado às 23:21


9 comentários

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De Miguel Madeira a 20.03.2012 às 00:16

Eu (que não sou liberal nem conservador...) acho que essa tal sintese entre liberalismo e conservadorismo tem uma grande lacuna - o que é que o liberal-conservador faz se o acaso do nascimento o colocar numa sociedade sem tradições liberais? Numa sociedade esclavagista, p.ex.? Ou na França de 1788? Ou na Rússia de 1916/1991/2012? Ou na Arábia Saudita?

Parece-me que aí não tem saída - ou vai defender um modelos construtivista em ruptura com as tradições da sociedade (abandonando o conservadorismo), ou então vai ser obrigado a "por o liberalismo na gaveta", quiça adoptando uma atitude de "como era bom que o meu país tivesse tido uma História diferente, mas infelizmente não teve" (para falar a verdade, já li algumas coisas do Raymond Aron sobre a França que é mais ou menos isso).
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De Samuel de Paiva Pires a 20.03.2012 às 00:27

Até tem lacunas bem piores. O projecto do fusionismo falhou nos EUA, embora eu acredite que liberalismo e conservadorismo partilham de muitas premissas e moderam-se um ao outro (como diria Reagan, "I believe the very heart and soul of conservatism is libertarianism). Sei que isto não é consensual (nem neste blog, por exemplo para o Corcunda). Edward Feser tem um bom artigo sobre o assunto em  http://www.ideasinactiontv.com/tcs_daily/2007/02/hayek-and-fusionism.html

Quanto à segunda parte, perspectivando a liberdade como a condição natural humana, à La Boétie, um liberal é, como diz o Prof. José Adelino Maltez, um conservador do que deve ser, não necessariamente do que está. E antes uma vivência absurda, de homem revoltado camusiano, que uma resignação acrítica em que passaria a sobreviver e não a viver, deixando verdadeiramente de existir. Vários exemplos existiram entre os anti-comunistas, vindo desde logo à minha mente Kundera ou Havel.
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De Miguel Madeira a 20.03.2012 às 00:49

Já agora, ainda a respeito desse tal "liberalismo antigo vs. moderno": essa divisão entre, de um lado, defensores do governo limitado e do evolucionismo, e do outro defensores da soberania popular e do construtivismo racionalista parece-me não ter grande base lógica (mas isso de querer que as coisas tenham base lógica é provavelmente sinal do meu racionalismo construtivista).

Afinal, porque é que não há de poder haver defensores do governo limitado que sejam "racionalistas construtivistas", ou pelo menos que nao sejam evolucionistas (para falar a verdade, penso que pensadores tão diversos como Henry Thoreau, Stuart Mill, Ayn Rand*, etc. facilmente poderiam constar num quadrante "radicais pelo governo limitado"; mesmo os "orleanistas" franceses, liberais anti-democráticos, apesar de apoiarem um ramo da família real, penso que não ligavam muito a tradições). Ou, pelo contrário, evolucionistas defensores da soberania popular (ainda que aqui não me ocorra exemplo nenhum, pelo menos dentro de um campo compatível com o liberalismo)?

*atenção que só li Thoreau, o que escrevo sobre os outros é de ouvir-dizer
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De Miguel Madeira a 20.03.2012 às 10:03


Explicando melhor o que quis dizer no comment anterior (que ficou um bocado confuso) - as dimensões "soberania popular vs. governo limitado" e "construtivismo vs. evolucionismo" parecem-me largamente independentes uma da outra, e fundi-las numa única dimensão "liberalismo moderno vs. antigo" parece-me um salto um bocado grande (e um bocado uma tentativa de dar à sintese liberal-conservadora um pedigree histórico maior do que efectivamente tem).

Indo ainda à Revolução Francesa, e à identificação dos jacobinos com as teses construtivistas e de soberania popular: e os revolucionários de 1789 e depois os girondinos, onde ficam nesse esquema? Creio que eram muito mais defensores do governo limitado, da separação de poderes, etc. do que da soberania popular; mas pareciam ter quase tanta vontade como os jacobinos e os revolucionários de 1792 de construir um novo regime político a partir do nada com base em teorias abstractas (afinal, as Reflections de Burke foram escritas contra a revolução ainda nessa fase) - tinham era teorias abstractas diferentes das dos jacobinos.
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De Samuel de Paiva Pires a 20.03.2012 às 10:15

Miguel, esta formulação não é originalmente minha, como sabe. Mas o ponto que levantou deu-me que pensar e em vez de estar a dar uma resposta breve, permita-me guardar para mais logo (à noite) uma reposta mais elaborada, ok?
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De Miguel Madeira a 20.03.2012 às 19:38

Para complicar um bocado a coisa, eu entretanto... mudei de ideias (mais ou menos).

Isto é, o problema aqui é que há uma certa ambiguidade em expressões como "governo limitado": "governo limitado" tanto pode ser visto como o oposto de "governo omnipotente", que põe e dispõe a seu bel-prazer, ou como de "governo omnipresente", que se mete em todos os detalhes da vida dos seus súbditos.

Há partida, as duas coisas não estão necessariamente ligadas - podemos ter governos todo-poderosos mas que até deixam os súbditos largamente à vontade (hoje em dia, talvez seja o caso dos emires do Dubai ou do Qatar); e podemos ter governos submetidos a uma carrada de "checks and balances" (separação de poderes, bicameralismo, leis eleitorais feitas para impedir maiorias, diálogo obrigatório com os parceiros sociais, possibilidade de parar uma decisão do governo ou do parlamento metendo uma providência cautelar num tribunal de província, etc, etc.) mas em que haja montes de leis e regulamentos estatais a interferir com a esfera privada, e em que o papel prático dos checks and balances acaba por ser, exactamente, tornar mais díficil a revogação dessas leis e regulamentos (a Europa ocidental é capaz de ser parecida com isto).

Bem, e porque é que mudei de ideias? Porque (como se pode deduzir pelos autores citados) os meus posts anteriores foram escritos a pensar em "governo limitado = governo que se mete pouco na vida dos cidadãos" (e nesse sentido, mantenho o que escrevi - que pode haver perfeitamente radicais idealistas defensores do "governo limitado", ou até de governo nenhum); mas, se definirmos "governo limitado = governo sujeito a checks and balances" (e, relendo o post, parece ser mais essa a ideia), realmente já faz um certo sentido que a defesa do "governo limitado" esteja associado ao gradualismo, aos compromissos caso-a-caso, etc., em detrimento das "grandes visões".
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De Samuel de Paiva Pires a 20.03.2012 às 21:48

Obrigado pelos comentários e por me fazer pensar e questionar o que escrevi. Temo que seja obrigado a estudar exactamente a noção de governo limitado, pois a meio do dia, enquanto pensava nisto, ocorreu-me exactamente a ideia de que era necessário precisar o que se entende por isso. É o problema de às vezes falarmos e discutirmos sem operacionalizar os conceitos. Seja como for, quanto a Hayek, creio que é precisamente no sentido deste último comentário que ele faz a tal distinção. Vou tentar aprofundar noutros autores e ver se preparo um texto sobre o assunto.
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De zedeportugal a 20.03.2012 às 01:08

Um artigo muito legível (coisa sempre difícil num texto tão extenso) e com ideias bem encadeadas. Talvez merecesse um aprofundamento da fundamentação e da argumentação, mas isso obrigaria certamente a uma redacção mais demorada e mais extensa, o que obrigaria à divisão do texto em 2 ou 3 partes.
.
Vá lá, merece como prémio esta boa notícia (do ponto de vista dos monárquicos, claro):
http://englandexpects.blogspot.pt/2011/12/most-modern-form-of-government.html
Bem visto, hã? Image
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De Samuel de Paiva Pires a 20.03.2012 às 10:09

Obrigado, Zé! Na verdade, este artigo é uma versão reduzida de um outro que está por publicar, com o triplo da dimensão.

Pois, nada que não soubéssemos Image

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