
Em plena I Guerra Mundial e para a imprensa directamente dependente dos grandes interesses económicos, dir-se-ia que a Rússia imperial não era aquele giganteso país cujos exércitos haviam salvo a França de uma fulminante derrota no Verão-Outono de 1914, repetindo a façanha em 1916, na Galícia, desta vez enfrentando o exército austro-húngaro. Os comentadores políticos e a generalidade dos articulistas, impregnados do sentido do politicamente correcto daquela época, invectivavam violentamente o regime czarista, apresentando-o sob as mais sombrias cores, mesmo reconhecendo a vital necessidade de preservação da frente oriental que dados os efectivos e a imensidão da Rússia, garantiam uma previsível vitória final contra a Alemanha.
Apenas alguns anos após a derrota de Tsushima, a Rússia surgia como um prodigioso polo de desenvolvimento, numa complementaridade de sectores apenas possível por uma imensa riqueza geológica, vastíssima superfície de boas terras aráveis e uma população em rápido crescimento e em acelerada fase de urbanização. Como exemplo, os ricos campos petrolíferos do Cáucaso prometiam igualar e até sobrepujar a extracção norte-americana, o que ameaçava directamente os conglomerados empresariais do sector, cerceando-lhes os lucros, concorrendo na distribuição e consequentemente, implicando um crescimento explosivo da indústria russa. No horizonte surgia a ameaça de um colossal concorrente comercial. Assim sendo, todo o estranho processo revolucionário que conduziu a dupla Lenine-Trostky ao poder, obedecerá a múltiplos factores: pela parte das Potências Centrais - oportunistamente acusadas após a guerra de terem sido as responsáveis pela introdução da "mala de bacilos" leninista na Rússia -, interessava a eliminação da frente leste que consumia uma enorme quantidade de efectivos militares, dada a extensão dos territórios onde os exércitos combatiam. O acesso às matérias primas, recursos agrícolas e o sempre presente jogo da geopolítica - onde imperava o princípio da prevalência futura do bloco Eurásia -, consistiram em factores não desdenháveis, dada a situação de estrangulamento imposto aos Centrais pelo bloqueio naval aliado. Os milhões de dólares vertidos nos cofres que financiaram a Revolução, a protecção a Trotsky nos EUA - muito assistido e rodeado de luxos cuja proveniência era ao tempo desconhecida - e finalmente, tudo o que decorreu após a 1ª revolução que conduziu Kerensky ao poder, indicia um claro interesse ocidental na subversão da ordem imperial. Caído o regime, a Rússia remeteu-se a um longo período de ruína económica, total dependência de fornecimento de máquinas e equipamentos industriais, colapso agrícola, maciça fuga de quadros técnicos e de gestão, turbulência política e purgas, selváticos morticínios e volatilização do país como agente de primeira grandeza na cena internacional. De facto, a subversão do regime de Nicolau II, a sua queda e o consequente atraso de décadas, cumpriram plenamente os objectivos ocidentais.
O Irão consiste num caso diferente, apesar de existirem algumas semelhanças num processo de alteração da ordem política, económica e social. Não possui nem de longe o peso da grande potência europeia cujas fronteiras ocidentais lhe permitem o exercício de esquemas de influência e de "direitos de reserva" na zona báltica, balcânica e do mar Negro. Embora seja com a China, o derradeiro sobrevivente dos impérios da Antiguidade - e isto significa muito para uma população orgulhosa do seu passado histórico -, o Irão apenas pode exercer uma certa hegemonia consentida naquela área do Médio Oriente, sem que tal signifique ombrear com as aparentemente declinantes potências europeias e muito menos, com a grande China, a imensa Rússia ou os EUA. O Xá caiu devido a uma multiplicidade de eventos e mais importante ainda, de factores a priori exteriores a qualquer acto político, económico e até de organização interna do seu regime. Deixou de interessar aos americanos, que neste caso parece terem querido imitar a teoria da Soberania Limitada de Brezhnev, aplicada pela URSS aos seus satélites do leste europeu. No auge da Guerra Fria e com uma interminável instabilidade nascida da independência e consolidação de Israel, parecia lógico e imprescindível, o apoio ocidental aos Pahlevi. O Xá surgia como a única garantia de um certo estilo de vida profundamente influenciado pelos euro-americanos do pós-guerra, segurança regional, poderosa intervenção no sentido de impedir o uso do petróleo como arma desorganizadora da economia de mercado, não sendo também possível negligenciar o factor militar que o quinto exército do mundo representava para a manutenção do status quo na zona. No entanto, os jornais e as televisões ocidentais saturavam os noticiários com denúncias de tortura, dispêndio de recursos com a defesa, "corrupção consumista de privilegiados", desrespeito pelas tradições de antanho, etc. Teciam-se as mais fantasiosas teorias acerca de um futuro mais ou menos distante, quando ameaçado de esgotamento dos lençóis petrolíferos, Reza Pahlevi decidisse apoderar-se dos campos situados nos países vizinhos, previsivelmente no Iraque, Kuwait e Arábia Saudita, fazendo ressurgir o extenso império persa dos tempos imediatamente anteriores a Alexandre.
O ocidente acolheu "exilados políticos", mimou a elite reaccionária religiosa com todas as garantias de sobrevivência e possibilidades de agir politicamente. De facto, a França consistiu num autêntico alfobre subversivo, a partir do qual Khomeiny fazia chegar as suas mensagens ao Irão, sem que as autoridades de Paris se preocupassem em impor as elementares regras de abstinência de qualquer actividade política contra um país com os quais mantinha normais relações diplomáticas e que podia ser mesmo considerado como um bom cliente e aliado. Tal como Lenine foi transportado num combóio da Reichsbann em direcção a S. Petersburgo, o Ocidente fez embarcar o aiatolá a bordo de um avião da Air France, arruinando-se assim cinco décadas de modernização imposta pelo regime imperial. Conhecem-se os resultados desastrosos, sobretudo para a segurança internacional na zona do Médio Oriente. Daquele avião saiu o agente que conduziria à rápida radicalização e sonhos expansionistas de Saddam Hussein, assim como uma pungente vaga terrorista que a partir de então assolou o mundo, ameaçou a segurança colectiva e internamente, fez o país retroceder muitas décadas naquilo que o progresso social pode significar. No entanto, a queda do Xá afastou por trinta anos, a consecução de um poder hegemónico que ameaçasse seriamente os grandes interesses do sector energético ocidental e toda uma indústria que dele depende.
Esmagada a ameaça iraquiana, volatilizado o Estado no país vizinho e normalizada a situação interna de consolidação do regime teocrático, o Irão preparava-se para subir um patamar julgado improvável há apenas uma década. Teerão tem o perfeito conhecimento do poder dissuasor que a arma final, a bomba atómica, significa para a generalidade da opinião pública americana e europeia, para não dizermos mundial. Um ataque ao estilo "Tempestade do Deserto" e as suas variantes de 2003, tornam-se senão impossíveis, muito problemáticas em termos de consequências imediatas, dado o correspondente desconhecimento do paradeiro de uma parte do arsenal nuclear da antiga URSS, a fuga de segredos tecnológicos militares e a contratação de especialistas por parte de quem almeja a conseguir a chamada arma final. Existindo arsenais nucleares em Israel, na Índia e no Paquistão, a proliferação poderá tornar-se incontrolável e especialmente catastrófica, devido à tentação em propiciar recursos nucleares a grupos terroristas internacionais, o uso da ameaça bélica para resolver conflitos fronteiriços ou o desencadear destes sob a protecção do guarda-chuva atómico.
O regime dos aiatolás promoveu afincadamente a latente situação de guerra no Líbano, patrocinou a criação de Jihads e Hezbollahs, além de claramente ser um dos intervenientes no conflito iraquiano, dada a importância da comunidade xiita neste país. Num momento em que a situação parecia destinada a um nítido aumento de importância da influência iraniana além fronteiras - impossibilitando qualquer solução para a longa crise israelo-palestiniana -, o regime de Khamenei e da sua excrescência civil, o sr. Ahmadinejad, encontra-se sob o crivo da chamada "opinião pública mundial" que há meses vem sido mobilizada de forma discreta mas persistente, no sentido de encarar benevolamente a outorga da condição de Estado pária a um ameaçador, retrógrado e belicoso Irão. O próprio poder instituído em Teerão, corresponde exactamente ao modelo que uma Europa há muito rejeitou, mercê de uma já secular campanha de laicização da sociedade que hoje, pode vislumbrar na antiga Pérsia, uma reedição de um anacrónico esquema organizacional da sociedade. Os ocidentais são por regra anticlericais e a actual legislação iraniana, a assumida desigualdade de género, os discursos grosseiros, provocadores e radicais de um Ahmadinejad, fazem muito pela criação do tal bem conhecido "estado de espírito" que prepara a opinião pública para a urgente remoção de um tumor maligno na política mundial. De facto, nem Khatami, nem Khamenei, Ahmadinejad ou Moussavi, possuem uma ínfima parte da bonomia, nem do cosmopilitismo refinado e modernizante do Xá, o que facilita enormemente a missão desagregadora a que os media ocidentais se dedicarão com cada vez maior veemência. O Xá, era "um como nós", autoritário, sem dúvida, mas seguro e moderno.
O Supremo Líder, o aiatolá Khamenei, acusa as potências ocidentais - nomeadamente os EUA e o Reino Unido - de promoverem uma campanha de desestabilização da situação interna iraniana. Sabe do que fala, até porque o seu poder deriva exactamente daqueles já longínquos dias de 1978-79, quando essas mesmas potências ocidentais ajudaram a promover a queda do Xá e indirectamente, o estabelecimento da república islâmica. Não só é possível que Khamenei esteja coberto de razão, como também é muito provável. Nesta conjuntura, o regime tal como o conhecemos, tem os dias contados. Agora, tudo se limita a uma simples questão de tempo.