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Do "novo capitalismo de Estado"

por Samuel de Paiva Pires, em 20.01.20

Ontem, na TVI, incorrendo em vários erros de análise a respeito do acordo comercial entre EUA e China, Paulo Portas não conseguiu explicar que tipo de economia é a chinesa, ficando-se pela clássica dicotomia entre capitalismo e planificação centralizada. Ora, actualmente, não existem economias puramente capitalistas nem socialistas na acepção da planificação centralizada. Se colocarmos as diferentes categorias e países num espectro, percebemos que o que diferencia as economias mistas de países a que tendemos a chamar de capitalistas das de países a que tendemos a chamar de socialistas, é o grau e a forma da intervenção estatal. Enquanto nas primeiras a intervenção do Estado é geralmente encarada como temporária para remediar problemas económicos ou confinada a algumas indústrias consideradas estratégicas, bem como destinada a fazer face às externalidades negativas e providenciar bem-estar social, nas segundas temos o que tem sido designado por "novo capitalismo de Estado", em que a intervenção na economia e o controlo de grandes empresas são encaradas como políticas de longo prazo conducentes ao sucesso económico que escapam ao fracasso do comunismo e da autarcia por combinarem o controlo estatal com uma maior abertura ao comércio global. É assim na China, Rússia, Arábia Saudita ou Angola, ainda que recorrendo a diversas formas constantes do quadro que aqui deixo (Dolfsma, Wilfred e Grosman, Anna. ”State Capitalism Revisited: A Review of Emergent Forms and Developments”. Journal of Economic Issues LIII, n. 2 (Junho de 2019): 579- 86.) Se nos mantivermos agarrados a velhas categorias e dicotomias, não conseguiremos perceber o que irá acontecer em muitos destes países e continuaremos a não querer admitir que privatizações em países Ocidentais ganhas por empresas detidas pelo Estado chinês têm reflexos políticos, ou que Portugal - políticos, justiça, empresários e media - tem servido quer para escamotear as más práticas de políticos e empresários angolanos, quer enquanto joguete nas lutas políticas entre os diversos capitalistas de Estado de Luanda. De resto, a melhor obra sobre este tema do "novo capitalismo de Estado" é esta.

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publicado às 11:26

In Memoriam - Sir Roger Scruton (1944-2020)

por Samuel de Paiva Pires, em 12.01.20

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Há 8 anos tive o privilégio de assistir a uma conferência de Sir Roger Scruton, em Lisboa, dedicada essencialmente à temática do Estado-nação como resposta às crises que vamos vivendo e em que o filósofo britânico não deixou de tecer críticas ao processo de integração europeia, um tema recorrente nas suas reflexões e a que dedicou parte de um dos livros que mais o deu a conhecer em Portugal, As Vantagens do Pessimismo. Diria até que se Nigel Farage, Boris Johnson e Dominic Cummings foram os principais artífices do Brexit na praxis política, Scruton terá sido quem mais fez por esta causa no plano das ideias, especialmente atendendo à sua apaixonada defesa de uma certa ideia de Inglaterra que tantas vezes lhe causou dissabores ao longo da sua tumultuosa carreira académica. Da conferência em Lisboa, guardo a memória não só do seu brilhantismo intelectual, mas da sua simpatia e genuíno gosto pelo debate de ideias, numa tarde em que se dispôs a partilhar as suas reflexões com uma dúzia de académicos portugueses, alguns dos quais, aliás, se têm dedicado a estudar o seu pensamento - como é, de resto, o meu caso, figurando Scruton como um dos autores conservadores cujas ideias sobre os conceitos de tradição, razão e mudança analisei na minha tese de doutoramento.

Tratando-se de um herdeiro de Burke e de Hegel, de um crítico do liberalismo mas que coincide parcialmente com autores como Hayek (outro herdeiro de Burke) no que à teoria social concerne, Scruton é um dos pensadores contemporâneos responsáveis por desconstruir o mito de que ser conservador é igual a ser-se imobilista. Só um incauto poderia ser surpreendido pela sua afirmação tipicamente burkeana, em How to be a Conservative, de que o “desejo de conservar é compatível com toda a forma de mudança, desde que a mudança também seja continuidade”. Dificilmente se pode concordar com tudo no seu pensamento - é, também, o meu caso -, ainda para mais tratando-se de um autor tão prolífico, mas é impossível lermos Scruton e não nos sentirmos desafiados e estimulados a reflectir sobre os mais diversos temas. A minha evolução intelectual é parcialmente devedora do seu trabalho, que me permitiu compreender melhor as falhas do liberalismo e as potencialidades do conservadorismo, quer na teoria quer na acção política. A sua morte, hoje, aos 75 anos, é uma notícia triste e representa uma perda inestimável para a reflexão política dos conservadores - bem como dos seus adversários, alguns dos quais analisados em Fools, Frauds and Firebrands, uma das suas obras mais polémicas e cuja primeira edição, em 1985, com o título Thinkers of the New Left, lhe valeu o repúdio de boa parte da academia britânica. Afinal, numa época de ortodoxias e dogmatismos vários, à esquerda e à direita, a sua moderação foi quase sempre vista como herética. Partiu prematuramente, mas o seu trabalho e as suas ideias continuarão a florescer e a resistir ao teste do tempo.  

Nesta hora, e para terminar, permitam-me relembrar o que creio ser uma das passagens mais emblemáticas de How to be a Conservative e que resume a sua posição moderada a respeito do papel do Estado. Para Scruton, e em tradução livre da minha lavra, este

é, ou deve ser, tanto menos do que os socialistas requerem, e mais do que os liberais clássicos permitem. O Estado tem um objectivo, que é proteger a sociedade civil dos seus inimigos externos e das suas desordens internas. Não pode ser meramente o Estado ‘night watchman’ defendido por Robert Nozick, visto que a sociedade civil depende de relações que devem ser renovadas e, nas circunstâncias modernas, estas relações não podem ser renovadas sem a provisão colectiva do bem-estar. Por outro lado, o Estado não pode ser o fornecedor e regulador universal proposto pelos igualitários, visto que o valor e o compromisso emergem das associações autónomas, que florescem apenas se puderem crescer de baixo. Ademais, o Estado só pode redistribuir riqueza se a riqueza for criada e a riqueza é criada por aqueles que esperam ter uma parte dela.”

Descanse em paz, Sir Roger Scruton.

publicado às 21:45






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