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Fátima Bonifácio realiza hoje um exercício que tem tanto de intelectualmente desonesto como de revelador. Diz-se uma conservadora liberal burkeana defensora do reformismo gradualista ao mesmo tempo que defende a perturbação da ordem social e política pelo Chega, um partido que, na tipologia de Jaime Nogueira Pinto, em A Direita e as Direitas, anda algures entre a direita revolucionária e a autoritária, esta última uma corrente da direita conservadora. Ainda seguindo JNP, dentro da família conservadora temos uma segunda corrente, a liberal, que é a das Revoluções Atlânticas que nos deram a democracia liberal, a do conservadorismo anglo-saxónico, onde se inclui Burke, e da democracia cristã. Esta corrente é a antítese da direita autoritária, onde pontificam populistas vários. A literatura recente sobre o populismo mostra que o aparecimento deste (seja de esquerda ou de direita) em democracias liberais consolidadas leva invariavelmente à erosão democrática e, no limite, à quebra da ordem demo-liberal que a historiadora defende. A mesma historiadora que não se inibe de aplaudir o Chega pela possibilidade de terraplanar a ordem política vigente. Tamanha confusão e incoerência só é passível de ser compreendida se levarmos em consideração a enésima vez em que alguém da direita protofascista aventa os fantasmas da alegada supremacia da esquerda a que a direita liberal andaria constantemente a tentar agradar. Boa parte da discussão espoletada pelo artigo dos 54 no Público não é intelectualmente séria, porquanto a direita protofascista é informada por percepções e vieses psicológicos que atestam uma tormenta permanente em relação a um papão esquerdista, seja ele do PS, do BE ou do PCP, o que justificaria todos os meios, inclusivamente entendimentos com extremismos à direita, para desalojar a esquerda do poder. É certo que a política não é só racional, tem muito de emoção. Mas assim sendo, ou bem que deixam a teoria política de lado para não incorrerem em contradições várias, ou assumem a filiação na direita revolucionária ou na autoritária para serem intelectualmente coerentes. Foi esta, no fundo, a clareza que defendemos, contra a amálgama patente no artigo de Fátima Bonifácio. De resto, para os que temem o papão, sugiro que, na hora de irem dormir, comecem a deixar uma luz de presença ligada.
Negacionismo foi a designação encontrada pelos meios de comunicação social para apontar todo aquele que nega ou não acredita na pandemia de SARS-COV-2. Para além destes existem, ainda, os conspiracionistas e os fascistas, designações mais antigas e correntes que apontam um largo espectro de cibernautas ou comentadores.
Estamos perante um fenómeno em nada novo. O espaço cibernético abriu caminho a uma longa trupe de indivíduos que encontrou o lugar ideal para defender, difundir e confirmar as suas teorias, muitas delas alimentadas ao longo dos anos pelo cinema de Hollywood e por nomes famosos da literatura esotérica, de consumo fácil e atractiva pelos elementos nela contidos: explicações simples para o misterioso, o incógnito ou o inexplicável.
Acreditar que a pandemia é, ou uma patranha, ou não acreditar nela é uma idiotice fácil de desmontar. Primeiro, ninguém acreditaria verdadeiramente que alguém produzisse um vírus para o «soltar» na humanidade, com intuito de prejudicar selectivamente países ou culturas.
Depois, porque todos nós vivemos, desde Março, uma experiência que dificilmente poderia ser uma farsa. Todos vimos nas televisões os camiões com caixões em Itália, a contagem dos já milhões de óbitos, as urgências cheias, os profissionais de saúde exaustos e os confinamentos por todo o mundo. Não há imaginação que planeasse este panorama, nem as televisões mentiriam de uma forma tão consistente e abrangente. Neste mundo de inverdades digitais as televisões foram o grande recurso para saciar as nossas eventuais dúvidas.
Verdade: nunca esta palavra foi tão reclamada. A Verdade, coisa tão subjectiva como o seu contrário, tem sido invocada por alguns para desmascarar a situação em que vivemos. Para alguns há uma narrativa oficial, política, científica que mente e que deturpa o tempo em que vivemos. Uns insistem na estranha origem do vírus, outros recusam a sua letalidade, outros ainda que não passa de uma “gripezinha”. Como foi possível surgir esta frente, hoje aficandamente combatida pela comunicação social e por alguns médicos, como o Doutor Gustavo Carona?
Creio que a explicação poderá ser encontrada na forma como a comunicação da pandemia tem sido gerida quer pelos cientistas, quer pelos políticos, quer pelos media. Desde o início que todos conduziram errónea e erraticamente campanhas diversas: primeiro a do “vai ficar tudo bem”, mensagem que alimentou as parangonas de jornais e revistas e ocupou o tempo de antena de chorosos pivots televisivos . Nunca na história recente da Comunicação Social se viu tamanha campanha sentimentalista que deixou os media fragilizados na sua função de imparcialidade e objectividade pedida a uma ocasião como esta. Seguiu-se-lhe uma falsa sensação de acalmia que derivou num verão quase tranquilo, sem surtos ou casos graves. Excepções atrás de excepções, políticos e jornalistas contribuíram para um discurso confuso, errático, por vezes imperceptível e pouco sério: eis a uma das explicações para o exponencial crescimento de movimentos “pela verdade”. De facto, ninguém detém a Verdade nesta discussão entre fanáticos conspiracionistas e hipocondríacos esquizofrénicos, mas quer de um lado quer de outro, o desvario tomou proporções incontroláveis devido a meses de uma infrene campanha de desinformação.
Neste momento, uma pretensa segunda vaga (ou a continuação da primeira, acentuada pelo crescente número de testes) colocou os hospitais numa situação de ruptura. Fala-se já em escolher quem vive e quem morre, num twist macabro e irónico quando a discussão sobre a Eutanásia está na ordem do dia.
Mas o reflexo de outras escolhas já está na rua, nas manifestações de ontem, no Porto, e hoje em Lisboa. É que se os médicos, os cientistas e os políticos se responsabilizam directa ou indirectamente pelas escolhas de quem vive ou morre nos hospitais, certamente nunca se responsabilizarão pela destruição da vida individual e colectiva de jovens que vêm os seus empregos eliminados pelas políticas aplicadas na contenção de uma doença que avança desenfreadamente mesmo com o estabelecimento de várias formas de controlo. Nem a comunicação social será responsabilizada por alimentar e alimentar-se desta frenética campanha de desinformação. Um autêntico frenesi de desespero que lhes é devolvido pelos teóricos da conspiração e negação e que os media exploram como apenas mais um sensacionalismo dos muitos que lhe garantem sustento. Infelizmente os media tornaram-se um poder absoluto sem qualquer tipo de oposição ou resistência.
Ora, sem vacina ou terapêuticas adequadas conter o avanço da pandemia é como segurar uma fuga de água com uma peneira. E se, como a Comunicação Social tem divulgado abundantemente, houver sequelas nos doentes covid-19, vislumbra-se um futuro de milhões de inválidos que contribuirão para o enfraquecimento dos Serviços Nacionais de Saúde.
Até vacina chegar à maior parte da população do planeta (um, dois, três anos?) entre formas de aplanar as sucessivas curvas, muitos milhões serão aplicados nestas medidas que apenas remedeiam, durante semanas ou meses, a destruição do tecido social e económico. Até quando um estado como o da República Portuguesa aguentará este tipo de investimento?
Não se pode colocar o dilema entre a saúde e a economia, como se a saúde de uma população fosse apenas uma doença que se trata no dia de hoje, ou a curto e médio prazo. O empobrecimento social resultará em graves problemas sanitários que saem da esfera meramente biológica, como o que vivemos hoje, contribuindo ainda mais para o acima descrito enfraquecimentos dos sistemas de saúde.
Por isso, o leque de escolhas é, como escrevemos, muito mais alargado: não se decide apenas pela vida no imediato, nos cuidados intensivos, decide-se pela vida de milhões de pessoas, algumas delas tão jovens que, ou ainda em formação, ou no início do seu período de empregabilidade já viram truncadas as suas esperanças próximas futuras.
O panorama parece desolador e é-o de facto. Mas entre a desinformação e a errância dos actos, convinha respirar fundo e pensar a longo prazo. Pois o tempo que o vírus veio para ficar e as ondas de choque da sua chegada serão sentidas daqui a muitos anos. Era importante que começássemos a preparar um futuro mais saudável e não um presente remediado, investindo em mais recursos humanos e equipamentos sanitários. Bem vamos precisar destes quando já nos tivermos habituados à presença do Sars-cov-2 mas as consequências da sua chegada ainda se fizerem sentir entre nós.
É importante, em momentos como o presente, defender a democracia liberal. Integro, por isso, o conjunto de subscritores deste importante texto, difundido pelo Público.
A título estritamente pessoal, acrescento apenas o seguinte:
Tenho-vos visto, lido e ouvido.
Desde há uns tempos a esta parte que recuso participar deste teatro de egos protagonizado pela expressão da parca auto-estima daqueles que se escondem atrás de um avatar como miseráveis bullies. Biltres de cadeirão. Se do debate nasce a luz, do Facebook apenas se vislumbram as trevas, motivo pelo qual também me fascina, admito.
Por aqui, tenho assistido ao crescente acantonamento das posições políticas e ideológicas. Aquilo a que muitos preferem chamar debate ou confronto é, na verdade, um exercício de regurgitamento visceral por quem só quer ver o mundo a arder.
Eu sei muito bem quem vocês são e prefiro ver-vos de perto. É que, ao contrário das vossas tão firmes convicções de que são uma espécie de Übermensch, a vossa flacidez de carácter não me faz sombra, não me assusta. Chego até a sentir alguma pena do estado deplorável a que alguns de vós chegaram.
A vossa fascinação quasi-erótica por líderes facínoras e autocratas não é coisa recente e motiva parte da vossa retórica iliberal contra aquilo que vão apelidando como a “direita fofinha”, “direita cobarde”, “direita moderada”. Eu cá não tenho vergonha nem pejo de chamar as coisas pelos nomes e ajudo a desmistificar, a bem da necessária clareza: aquilo que vocês querem destruir é a democracia porque a solução que vocês preconizam é autoritária. O que vocês querem é, escudados pelos direitos, liberdades e garantias de que são titulares e que devem a pessoas verdadeiramente heróicas que há cerca de 40 anos lutaram pela liberdade e pela democracia em Portugal, instituir um regime autoritário. Fazem-no de forma dissimulada, escamoteando a vossa agenda e intenções. Desenganem-se, meus caros, afinal os cobardes são vocês. Não são a “direita musculada”, vocês não são nada. Não têm ideologia. São débeis. E ainda têm o dislate de apelidar os que defendem a pluralidade, a democracia, de “cobardes”? Ganhem vergonha. A vossa retórica gongórica só vos dá direito a emojis. O 25 de Abril não se fez ao som das teclas.
Muitos de vós experimentaram os partidos à direita, à esquerda e acabaram de birra no canto da sala, porque “afinal não era bem aquilo” e encontram agora conforto na solução que sempre quiseram, o Chega. É curioso observar que vocês seriam as primeiras vitimas do sistema que tanto ensejam. Falta-vos consciência de classe e de condição. Falta-vos também perspectiva. É que eu conheço alguns de vós e sei, meus caros, que se odeiam mutuamente. Não há partido nem movimento que consiga dar resposta aos vossos anseios antagónicos. Vocês, juntos, têm apenas coerência no distanciamento radical de todas as estruturas, sistemas e métodos liberais e democráticos, motivo pelo qual se unem contra estes como meninos de coro com síndrome de Tourette. Não há ninguém que vos diga? Vocês não são especiais, são mesmo muito idiotas.
A democracia é-me cara mas também me lixa o juízo. Foi a democracia que permitiu que Hitler ascendesse ao poder na Alemanha, Bolsonaro no Brasil, Trump nos EUA, etc. Mas eu dependo da (e defendo a) democracia porque só com ela alcanço os meus objectivos. A História ensinou-me importantes lições e, ao contrário de vós, não vejo o mundo quando me olho ao espelho. Sei que devo o que tenho hoje como garantido à coragem dos meus antepassados e, se é certo que no quadro do combate político demoliberal, o lado que eu defendo nem sempre ganha, é igualmente seguro que um dia ganhará. Em democracia, não há uma verdade única e as minorias de hoje são as maiorias de amanhã. Mas o que vocês querem não é isso. O que vocês querem é forçar-nos a sucumbir àquilo que é a vossa mundividência, sempre temperada com doses q.b. de teorias conspiracionistas. JAMAIS.
Mas se o advento e eleição de partidos populistas nos ensinou algo é que, acima de tudo, a democracia é frágil e precisa de ser protegida. Temos problemas gravíssimos e é urgente reconhecer que algumas críticas tecidas por estes partidos estão correctas, mas não as soluções preconizadas. Em vez de deixarmos que a História se repita como tragédia ou farsa, o importante é trabalhar na resposta aos problemas reais e cada vez mais prementes, que em momento algum passará por regimes políticos autocráticos.
É que o conforto de uma cadeira e a capacidade de teclar tudo aquilo que vos passa pela cabeça, não é sinal de coragem, de músculo, é a definição não apenas de alienação mental mas da mais abjecta cobardia. Afinal, a direita cobarde é outra.
Assumam-se, seus protofascistas.
Durante os últimos quatro anos, os partidários portugueses de Trump e quejandos líderes e movimentos populistas não só ignoraram como se regozijaram com os inúmeros ataques do ainda Presidente dos EUA aos fundamentos da democracia liberal e às mais elementares regras de decência e civilidade. Aprenderam com Trump uma táctica discursiva de contornos bastante simples, assente em duas fases, que temos observado nos últimos dias: acusam os adversários daquilo que, na verdade, são as práticas dos próprios acusadores, e quando confrontados recorrem invariavelmente à vitimização. Isto em registos constantemente marcados pela grosseria e ofensas gratuitas ao mesmo tempo que se arvoram em adeptos da elevação no debate. São constantes os ataques vis protagonizados por Trump, as acusações de que os adversários fizeram X ou Y que, na realidade, é o que o próprio faz, e a sempre previsível vitimização perante o confronto. A estratégia de Trump para as eleições é, aliás, elucidativa quanto baste a este respeito. Entre os seus aprendizes, um exemplo particularmente ilustrativo foram as críticas a Joe Biden por ter chamado “clown” a Trump no primeiro debate presidencial, tecidas por quem ignorou olimpicamente o facto de ter sido Trump a levar o debate para a lama. Mais uma vez, escamotearam a conduta miserável do seu querido líder e alguns, sem terem visto o debate, concentraram os seus ataques sobre esse momento, não tendo sequer a noção de que Biden revelou capacidade de contenção numa situação em que muitos nivelariam a sua postura pela de Trump ou abandonariam o debate.
Entretanto, por cá, à direita, a divisão entre democratas liberais e populistas tem-se tornado cada vez mais visível, sendo célebres, dos trumpistas nativos, várias ofensas, desde as mais patéticas (“a direita cobarde”, “os moderados cobardes”, “a direita fofinha”, “a direita Haddad”) às mais directas e em registo taberneiro. Recorrem com uma inusitada frequência a este estilo pela simples razão de que atrás de um computador, e no tempo das redes sociais, a propensão para a agressividade é particularmente acentuada. Ao vivo, perante aqueles que apelidam de cobardes, não se atrevem, como já pude observar várias vezes, a adoptar um vislumbre da retórica ofensiva a que recorrem nas redes, até porque a frontalidade e a coragem moral e física de muitos é inversamente proporcional à que demonstram no mundo virtual, da mesma forma que a sua noção de civilidade também é inversamente proporcional à que fica patente na internet - felizmente! Talvez mais interessante que a fase das ofensas, é a fase da vitimização. Revela a mesma postura moral do bully no recreio da escola que, quando confrontado, choraminga e vai fazer queixas aos professores e aos pais. São os Eric Cartman da direita portuguesa.
Mas esta semana trouxe-nos uma novidade nas práticas discursivas. Às acusações, ofensas e vitimização vieram acrescentar a cereja no topo do bolo: o gongorismo proclamatório em declarações sobre o fim da civilização, do debate público elevado e, no limite, da humanidade como a conhecemos. Descartados os óbvios exageros de quem se leva demasiado a sério, há que mostrar alguma compreensão. Estão desnorteados com a eventual queda do querido líder e com o que esta significaria para o futuro dos movimentos nacional-populistas. Agora que os EUA poderão entrar numa fase de regeneração, por cá a direita radical ainda está na fase de crescimento. Quando a direita radical lusa atingir o auge, em muitos outros países já os populistas estarão no espelho retrovisor. O populismo é a antítese da democracia liberal. Em vez de harmonizar contrários, alimenta-se da tribalização e da polarização. Mas quando chegarmos à fase de síntese, isto é, quando algumas críticas dos populistas tiverem sido absorvidas e respondidas pelo mainstream que descarta as soluções anti-liberais, os "moderados-fofinhos-cobardes" cá estarão, na sua infinita paciência, tolerância e, em muitos casos, caridade cristã, para acolher os que os têm ofendido.