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Samuel, reconhecendo a valia da reflexão do Mark Vernon, não deixo de sentir perplexidade com a abordagem quase utilitarista que tem da religião. A Fé não tem um propósito em si mesmo, no sentido em que não é proclamado que "o sujeito A deve ter Fé, para poder fazer uma melhor introspecção de si". Reconheço a valia do exercício, e admiro o exame de consciência e a noção das limitações que a proposta do texto potenciam. Mas não é um caminho de validação da religião: conferir-lhe uma utilidade. Precisamente porque a verdadeira Fé não procura ter uma utilidade.
Daí o meu desconforto com o texto anterior em que se citava o mecanismo: a salvação. Pobre daquele que tem fé porque acha que assim se salva. Tem-se Fé, no meu enquadramento religioso, que sabes ser católico romano, porque se adere à Graça: Deus confere-nos a possibilidade de acreditar, e acreditamos. Não esperando nenhum tipo de recompensa por acreditar. A Salvação é a aspiração de uma comunhão eterna com o Deus que amamos: o perpétuo mergulhar da alma no Seu Amor, nas palavras de Bento XVI. E deverá decorrer de uma vida em que se caminhe na imitação da vivência da Caritas. No modelo do Bom Samaritano, que, enquanto teólogo, Joseph Ratzinger, identificou com o próprio Cristo: Deus que se fez homem para vir assistir a sua criatura caída na estrada nesta existência terrena, vergada pelos pecados e males do mundo.
As limitações do humano face ao Criador são enquadráveis no seio da própria religião. Seria interessante, a meu ver, que Vernon reflectisse também sobre a natureza do pecado original. Que contrariamente ao senso comum, não tem uma acepção estritamente sexual: antes resulta do homem, Adão, que tentado a comer da Árvore da Sabedoria, não resistiu, porque iludido de que assim seria conhecedor das mesmas coisas que Deus. A tentação de Adão é querer substituir-se a Deus, podendo governar o mundo com o conhecimento de Deus. Vernon aponta correctamente para a percepção da humildade do homem face ao divino, mas ignora que a tradição judaico-cristã assimila desde o Génesis, essa mesma necessidade de humildade. Nas Escrituras, a condenação do homem não é pela percepção da nudez, mas pela necessidade de se substituir a Deus.
Cristo, que S. Paulo chama de Novo Adão, porque regenera a Humanidade, é capaz, enquanto verdadeiro Homem, de suplantar o erro inicial: tentado no Deserto a lançar-se de um edifício alto para ver se os Anjos o vinham salvar, resiste. Declara "Não tentarás o Senhor Teu Deus", e encerra o círculo sobre o erro inicial da Adão. Verdadeiramente humano, Cristo é capaz de acreditar que é Verdadeiro Deus, sem necessidade de colocar à prova mundanamente os seus poderes. Maria, sua mãe, responde ao Anjo da Anunciação, numa antecipação da Fé que o filho vem revelar: a jovem judia não tinha forma de compreender tudo o que lhe tinha sido dito, mas responde "Fiat Mihi Secundum Verbum Tuum!" (Faça-se Segundo as tuas palavras!).
A adesão de Maria, plenamente humana, e a adesão de Cristo, verdadeiro Deus mas verdadeiro Homem, marcam o Novo Adão e a Nova Eva. A humanidade é capaz de viver sem se querer substituir a Deus. Aderindo e aceitando a Sua Vontade. O sentido da petição do Pai Nosso "Seja feita a Vosssa Vontade", não é outro que não esse desejo de superarmos, nesta vida, a falha original de Adão. E assumindo a nossa limitação, e ignorância, manter a Fé. Não farei a exegése de Nietzsche, mas a proclamação da morte de Deus surge num contexto de aparente trinfalismo do positivismo e da técnica. Mais de um século volvido sobre o regresso de Nietzsche ao primeiro Adão, a evidência da necessidade da alma humana de procurar o seu criador mantém-se. Ainda que nem sempre pelos melhores caminhos...
O que me conduz ao último ponto. Não vou entrar pela discussão da demonstração da existência de Deus - seria tema de outra conversa. Mas quando Vernon sugere que se deve evitar esse assunto, tenho uma reacção curiosa, que parece-me iludir as pessoas, que não digo seja o teu caso ou o dele, que pedem provas da existência de Deus. Algo que as faça acreditar. Para mim, a ausência de uma tangibilidade física de Deus no mundo corrente (que seria o quê? Uma coluna de fogo subindo do mar para os céus??), é o maior sinal da existência de Deus. Porque o Deus em que os católicos acreditam é Amor. Ama e quer ser amado. Mas o Amor é necessariamente livre. Por isso nos é dada a liberdade de amar ou não a Deus. Se Deus se manifestasse como realidade óbvia, seria impossível ao homem resistir e não o amar. Só que isso seria uma amor forçado: falso! Provocado pela prisão do BELO! Ao não se manifestar na realidade física, Deus confere-nos o direito de o Amar em verdade, de forma genuína e livre. E só isso é amor. E só isso é coerente com um Deus que é Amor!
Deus pode manifestar-se no mundo ao longo da História, mas não tem de o fazer para acreditarmos N'Ele.