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Primeira cena, de manhã
Num cemitério de Lourenço Marques, uma jovem mulher debruça-se sobre a campa de reluzente mármore branco onde jazia o seu pai, falecido há pouco mais de três lustros. Todos os anos e invariavelmente num sábado quente, as letras eram retocadas com tinta da China, aproveitando-se para compor os jarros de flores e fazerem-se as limpezas necessárias. Ali mesmo ao lado, dois miúdos distraíam-se, percorrendo as ininterruptas fileiras de túmulos, lendo os nomes, olhando e comentando caras que as fotografias esmaltadas diziam pertencer a alguém para sempre desaparecido.
Naquele dia, um rotineiro levantamento de campa despertou a curiosidade das crianças. Os coveiros tratavam duma exumação e foi com o sempre vivaz interesse pela morte alheia que foram sendo retirados os ossos, criteriosamente colocados numa caixa cujo destino seria o gavetão ou um jazigo familiar. Chegada a hora do almoço, os diligentes técnicos de desenterro foram proteger-se da canícula, decerto saboreando o sempiterno puré de farinha de mandioca, acompanhado pela carne guisada suculentamente boiando num molho ocre e picante.
Segunda cena, à tarde
Os fins de semana, os crepúsculos no nº 40 da Rua Dr. J. Serrão, foram sempre momentos muito agradáveis. As visitas chegavam, preparava-se um lanche que de tão prolongado, acabava sempre como um jantar até às tantas. Era a esperada oportunidade para as habituais conversas sobre a política que alguns ainda hoje, noutro compartimento da história e a milhares de quilómetros daquelas paragens, insistem em dizer que fora "matéria da qual não se podia pronunciar palavra". Bem pelo contrário, pronunciavam-se nomes, dissecavam-se reputações, aventavam-se intenções mais ou menos esperadas. Em África falava-se e lia-se, o inverno da política era muito ameno. Se a coisa pública consistiu o sacramento tão certo como para alguns sempre fora a missa e domingo, por vezes as conversas enveredavam para as novidades do momento, fossem elas alguns ditos mais ou menos roçando a intriga, concertos, os filmes em exibição, ou longas, muito longas discussões sobre um ou outro autor que as estantes acolhiam como corpo presente em papel.
Lá para o fim daquele dia, a sala estava cheia, falava-se animadamente em dizeres cruzados. Subitamente, o silêncio impôs-se pela pachorrenta entrada do cocker spaniel Barine, um lindo cão de família, de pelo louro torrado, longas orelhas quase rentes ao solo e coto de cauda sempre a dar-a-dar. Trazia na boca um osso longo, amarelado e que só os muito distraídos poderiam não conseguir identificar a pertença.
- "Chiiii, Barine, dá cá essa porcaria! Onde é que foste buscar isso? Que nojo! Este cão é terrível, passa a vida a trazer lixo da rua! Mas que raio de osso é este?
- Grrrrrrrrrr-ão! ão! ão! Grrrrrrrrrrrrrrrrrr! Nhac!
Metia medo. Aquela pacífica criatura era conhecida como impiedoso guardião de ossos, malgas com comida ou quaisquer guloseimas que lhe pusessem à frente, mesmo tratando-se de fraldas de bebé pouco limpas. Uma temível e imprevisível fera.
A dona da casa desistiu do injusto confisco e poucos minutos depois, daquela já bem descalcificada ruína, apenas restaram umas pobres migalhitas bem depressa varridas e depositadas na lata do lixo.
Acto contínuo, uma trovoada de risotas. Alí estavam os dois miúdos rebolando na alcatifa, corados e de alegres lágrimas escorrendo livremente pelas faces.
Subitamente, incredulamente contabilizando os momentos do dia, a mãe entendeu o que se passava e a contragosto quis confirmar a razão daquela explosão de alegria.
- "Mamã, havia tantos... e trouxemos um para o Barine"
Profanação de cadáver, lá dizia a a Mrs. Marple. Não se ralem, o crime prescreveu. Apenas esperamos que os antigos egípcios não tivessem razão nas suas crenças acerca da integridade dos corpos destinados à segunda oportunidade de vida. Mas isso fica lá para as bandas de Orion.