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Nos últimos meses, o meu avô materno, com quem aprendi a tomar atenção à política desde tenra idade, com quem partilho longas horas de conversa sobre tudo e mais alguma coisa, e em cuja biblioteca me fui instruindo até começar a fazer a minha própria, deixou pura e simplesmente de falar comigo sobre política. O meu avô, que andou muito tempo envolvido em política a um nível micro em Lisboa, ainda no tempo do salazarismo, que conheceu Fernando Pessoa ainda em criança por intermédio de um tio amigo de Pessoa e que ficava a ouvir os debates entre eles - que lhe serviram até para brilhar na escola -, que conviveu com muitos artistas do teatro de revista, que levava os cartoons do Stuart Carvalhais, com quem tinha acesos debates, para o DN, na década de 50 do século passado, que pouco tempo antes do 25 de Abril de 1974 mudou-se para Ferreira do Zêzere, onde veio a tornar-se uma das personalidades mais conhecidas da vila, em grande parte pelo seu pensamento político e crítico, plasmado muitas vezes nos recortes e comentários que afixava no portão de casa, lidos e discutidos por muita gente, sendo assim um precursor do que hoje chamamos blogs, e tendo também sido convidado a integrar vários partidos (até o MPT, quando este quase ganhou as eleições para a Câmara Municipal no início dos anos 90), o que sempre recusou, perdeu a chama pela política que tanto me inspirou.
A tristeza de ver o país no estado em que está abateu-se sobre ele de uma maneira que eu julgava impensável. O meu avô trabalhou uma vida inteira (nunca para o estado), até mesmo depois de se reformar e tem uma reforma com a qual eu não conseguiria viver - e eu nem levo uma vida que se possa sequer considerar minimamente luxuosa (não tenho casa própria, não tenho carro e sou cada vez mais frugal nos gastos, que se resumem a roupa, comida, livros, despesas domésticas e actividades de lazer como ir jantar fora, assistir a um concerto ou beber um copo com os amigos).
Esta semana contei-lhe que ia fazer algo que até há bem pouco tempo eu julgaria impensável: participar numa manifestação. O meu avô alegrou-se um pouco e disse-me estar satisfeito por eu ter tomado esta decisão. Hoje, depois de chegar a casa, por volta das 20h, não me tendo juntado aos manifestantes que decidiram seguir para S. Bento, liguei-lhe, julgando que ele estaria a acompanhar pela televisão o que estava a acontecer. Mas não estava. Há muito que deixou de ver televisão com frequência, preferindo a companhia dos livros nas longas noites em que quase não dorme. Voltou a dizer-me que está triste com o nosso actual momento colectivo e que cora de vergonha quando pensa nos governantes que temos, tendo-se tornado intolerante a ouvir quase todos os políticos. Tinha-se até esquecido da manifestação. Foi então que decidi provocá-lo. Disse-lhe para ligar a televisão, pois estava a perder uma das maiores manifestações de sempre no país. Disse-lhe o que aqui publiquei quando ainda estava na manifestação. Disse-lhe que quando eu ainda estava a sair da Praça José Fontana, já a frente da manifestação tinha chegado à Praça de Espanha. A voz dele mudou completamente. Estava feliz por ver o país sair estrondosamente do torpor em que se deixou cair. Continuou a seguir a situação. Um pouco mais tarde, foi ele que me ligou, quando estava a assistir aos comentários dos Professores José Adelino Maltez, Viriato Soromenho Marques e Carlos Amaral Dias na RTP1. Ficámos alguns minutos a falar sobre política, meses depois da nossa última conversa sobre política.
Só por isto, para mim já valeu a pena ir à manifestação. Mas não só por isto, hoje sinto vergonha de partilhar o mesmo espaço ideológico e político com alguns dos bloggers d'O Insurgente, do Blasfémias e o Miguel Castelo-Branco, blogs que leio assiduamente como mais nenhuns outros, desde que me lembro de ler blogs. Nos primeiros dois, entre muita ignorância do que está para lá da economia, com especial destaque para o mais recente spin doctor ao serviço do governo, João Miranda, contradições evidentes com posições defendidas num passado recente e os devaneios de wishful thinking de Helena Matos, fica patente uma total incapacidade de perceber o que está a acontecer na sociedade portuguesa. Repetindo o que escrevi, a vida das pessoas não se faz de números e modelos macroeconómicos. Há um solo comum que é a pátria onde a revolta supera ideologias, partidos e estratos sociais. Ou não faria sentido sermos uma nação e um país. Já quanto ao Miguel, também defensor do passismo, não consigo perceber o que pode levar alguém a dizer que as imagens na televisão mostraram que não estariam presentes mais de 10 mil pessoas - e, já agora, depois de ver alguns comentários do Miguel a respeito de quem vai divertir-se para o Bairro Alto, sempre aproveito para dizer que fui a um jantar de despedida de uma amiga que, tal como eu, emigrará nos próximos dias, embora o jantar não tenha sido em nenhum restaurante do Bairro Alto, até porque na sua maioria não são conhecidos por serem baratos.
Aprendi com o meu avô e com o Professor Maltez a casar a honra com a inteligência. Sou daqueles que prefere quebrar a torcer, e, como costuma dizer o Professor Maltez, viver como pensa em vez de pensar como vive. Para mim, os princípios não são sacrificáveis em função da situação política. Ser liberal é muito mais do que aquilo a que muitos ditos liberais reduzem o liberalismo. Ser liberal é, também, preferir estar sozinho, especialmente quando o ambiente que nos rodeia nos asfixia a consciência. E é por tudo isto que o liberalismo tem em muitos ditos liberais os seus principais inimigos. Tomara que esta situação pudesse ser superada. Talvez se começassem mesmo pelos comentários desta noite que também animaram o meu avô.
Leitura complementar: Um rebelde é um homem que diz não; Provavelmente, nunca mais um governo consegue unir o país assim; Os maiores inimigos do liberalismo em Portugal são...; Interpretações de quem não sabe do que fala