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Desde ontem à noite que grande parte do meu feed de notícias no Facebook se digladia em relação às afirmações da presidente do Banco Alimentar, Isabel Jonet. O vídeo pode ser visto aqui. Pela minha parte, não pretendendo entrar em grandes considerandos sobre os hábitos de vida dos portugueses, até porque qualquer amostra de qualquer um de nós nunca será representativa e significativa (conhecemos os hábitos da nossa família e amigos mais próximos, pouco mais), permitam-me salientar o que me parece ser mais importante.
Quando Passos Coelho afirmou, há sensivelmente um ano, que só sairíamos desta crise empobrecendo, eu fui um dos que concordou com o Primeiro-Ministro. Mas na minha mente, talvez ingenuamente, acreditei que isto se aplicaria de forma justa, começando no estado, o que não tem acontecido. O mito falacioso do "viver acima das possibilidades" verifica-se essencialmente no estado. Quando um indivíduo vive acima das suas possibilidades, mais cedo ou mais tarde irá à falência. O indivíduo assume a responsabilidade e enfrenta as consequências das atitudes que entendeu por bem tomar. Assim é quando o ambiente do sistema em que o indivíduo se movimenta se mantém estável, podendo o indivíduo prever os encargos que decorrem da sua actividade - trata-se, claro, de um sistema em que vigora o livre mercado e o Estado de Direito.
Agora, quando há uma crise no estado, este tem várias opções antes da bancarrota. Uma delas, como todos temos experimentado, é o aumento de impostos. Isto obriga a um ajustamento das famílias e empresas, que já se vinham ajustando ao ambiente de crise económica - o desemprego é um sinal deste ajustamento. Mas se este ajustamento serve essencialmente para manter o status quo no estado, não se verificando um real ajustamento deste às possibilidades dos contribuintes, então aquele ajustamento torna-se imoral e quebra qualquer nexo de justiça no centro do contrato social. Advogar o empobrecimento generalizado de uma nação sem falar num processo idêntico no aparelho estatal, é simplesmente injusto e imoral.
Dito isto, os exemplos práticos que Isabel Jonet aponta e a tentativa de ensinar os outros a gastar o seu próprio dinheiro revelam uma personalidade que presume arrogantemente ter conhecimento de forma representativa dos hábitos de consumo de 10 milhões de pessoas. Como é óbvio, não tem este conhecimento, acabando por realizar generalizações sem base para tal. Pior, dado que Isabel Jonet não se refere ao estado, acaba, talvez sem se aperceber, a fazer a apologia da pobreza, o que se reflecte na frequente auto-congratulação pelo trabalho desenvolvido pelo Banco Alimentar. É certo que é um trabalho importantíssimo e que tem de ser valorizado. Mas aquilo que temos todos de procurar é que seja cada vez menos necessário recorrer ao Banco Alimentar. Aqui, entram em choque duas visões que de forma simplista denominamos como sendo de esquerda e direita. A primeira defende políticas sociais emanadas a partir do estado, ao passo que a segunda defende a acção da sociedade civil, neste caso, a caridade. Tendem, infelizmente, entre os seus apoiantes, a excluir-se. Eu acho que a virtude está no meio, e que estas duas visões não só não podem ser exclusivas, como se complementam. Um estado moderno não pode deixar de ter políticas sociais com o objectivo de não deixar cair os indivíduos abaixo de um determinado limiar de dignidade humana. E a caridade enquanto amor e serviço ao próximo, é essencial para a coesão de qualquer sociedade.
O problema não está em nada disto. O problema está, voltando ao início do post, no facto de ser o estado a viver acima das possibilidades de todos nós. Continuar o ajustamento injusto que tanta tensão tem gerado, além de empobrecer os indivíduos, fomenta nestes um sentimento de revolta em resultado da injustiça gritante a que muitos já não conseguem assistir impavidamente. Infelizmente, o actual governo desbaratou um momento único, em 2011, quando a esmagadora maioria dos portugueses tinha noção que todos tínhamos que empobrecer, mas, como eu, pensavam que isto seria um processo justo em que a reforma do estado e cortes significativos na despesa pública teriam lugar. No fim, como Pacheco Pereira já várias vezes apontou, vamos ter um estado ainda mais forte e mais interventivo. E isto não augura nada de bom.