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A ausência dos intelectuais da civilização do espectáculo

por Samuel de Paiva Pires, em 27.11.12

 

Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:

 

«Porque um facto singular da sociedade contemporânea é o eclipse de uma personagem que há séculos e até há relativamente poucos anos desempenhava um papel importante na vida das nações: o intelectual. Diz-se que a denominação de «intelectual» só nasceu no século XIX, durante o caso Dreyfus, em França, e as polémicas lançadas por Émile Zola com o seu célebre «Eu Acuso!», escrito em defesa daquele oficial judeu falsamente acusado de traição à pátria por uma conjura de altos comandos anti-semitas do exército francês. Mas, ainda que o termo «intelectual» só se popularizasse a partir de então, a verdade é que a participação de homens de pensamento e criação na vida pública, nos debates políticos, religiosos e de ideias, remonta aos próprios alvores do Ocidente. Esteve presente na Grécia de Platão e na Roma de Cícero, no Renascimento de Montaigne e Maquiavel, no iluminismo de Voltaire e Diderot, no romantismo de Lamartine e Victor Hugo e em todos os períodos históricos que conduziram à modernidade. Paralelamente ao seu trabalho de investigação, académico ou criativo, um bom número de escritores e pensadores destacados influiu com os seus escritos, pronunciamentos e tomadas de posição no acontecer político e social, como acontecia quando eu era novo, em Inglaterra com Bertrand Russell, em França com Sartre e Camus, em Itália com Moravia e Vittorini, na Alemanha com Günter Grass e Enzensberger, e o mesmo em quase todas as democracias europeias. Basta pensar, em Espanha, nas intervenções na vida pública de José Ortega y Gasset e de Miguel de Unamuno. Nos nossos dias, o intelectual esfumou-se dos debates públicos, pelo menos dos que interessam. É verdade que alguns ainda assinam manifestos, enviam cartas aos jornais e se envolvem em polémicas, mas nada disso tem repercussão séria no andamento da sociedade, cujos assuntos económicos, institucionais e até culturais se decidem pelo poder político e administrativo e pelos chamados poderes fácticos, entre os quais os intelectuais brilham pela sua ausência. Conscientes da desairosa situação a que foram reduzidos pela sociedade em que vivem, a maioria optou pela discrição ou pela abstenção no debate público. Confinados à sua disciplina ou afazeres particulares, viram as costas ao que há meio século se chamava «o compromisso» cívico ou moral do escritor e do pensador com a sociedade. Há excepções, mas, entre elas, as que costumam contar – porque chegam aos media – são as que se encaminham mais para a auto-promoção e para o exibicionismo do que para a defesa do um princípio ou valor. Porque, na civilização do espectáculo, o intelectual só interessa se seguir o jogo da moda e se se tornar um bobo da corte.

 

O que é que conduziu ao apoucamento e volatilização do intelectual no nosso tempo? Uma razão que deve considerar-se é o descrédito em que várias gerações de intelectuais caíram pelas suas simpatias com os totalitarismos nazi, soviético e maoista, e pelo seu silêncio e cegueira perante horrores como o Holocausto, o Gulag soviético e as carnificinas da Revolução Cultural da China. Com efeito, é desconcertante e esmagador que, em tantos casos, aqueles que pareciam ser as mentes privilegiadas do seu tempo fizessem causa comum com regimes responsáveis por genocídios, atropelos horrendos contra os direitos humanos e a abolição de todas as liberdades. Porém, na realidade, a verdadeira razão para a perda total do interesse da sociedade no seu conjunto pelos intelectuais é consequência directa da ínfima vigência que o pensamento tem na civilização do espectáculo.

 

Porque outra característica é o empobrecimento das ideias como força motora da vida cultural. Vivemos hoje a primazia das imagens sobre as ideias. Por isso os meios audiovisuais, o cinema, a televisão e agora a internet foram deixando os livros para trás, os quais, se as previsões pessimistas de um George Steiner se confirmarem, passarão dentro de pouco tempo para as catacumbas. (Os amantes da anacrónica cultura livresca, como eu, não devem lamentar isso, pois, se assim acontecer, talvez essa marginalização tenha um efeito depurador e aniquile a literatura do best-seller, justamente chamada lixo não só pela superficialidade das suas histórias e pela indigência da sua forma, como também pelo seu carácter efémero, de literatura de actualidade, feita para ser consumida e desaparecer, como os sabonetes e as gasosas.) 

 

Leitura complementar: O mito do individualismo extremo do nosso tempoA insustentável leveza da literatura do nosso tempoA banalização da políticaDa arte modernaDo erro da equivalência entre culturas à difusão da inculturaDa proliferação de Igrejas à substituição da religião pela alta cultura e aos escapismos contemporâneos; Da libertação sexual ao erotismo como obra de arte.

publicado às 12:48







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