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Mario Vargas Llosa, A Civilização do Espectáculo:
«Todavia, a autoridade, no sentido romano de auctoritas, não de poder, mas sim, como define na sua terceira acepção o Diccionario da Real Academia Espanhola, de «prestígio e crédito que se reconhece a uma pessoa ou instituição pela sua legitimidade ou pela sua qualidade e competência nalguma matéria», não voltou a levantar a cabeça. Desde então, tanto na Europa como em boa parte do resto do mundo, são praticamente inexistentes as figuras políticas e culturais que exercem aquele magistério, moral e intelectual ao mesmo tempo, da «autoridade» clássica e que os professores, palavra que soava tão bem porque se associava ao saber e ao idealismo, encarnavam a nível popular. Em nenhum campo isto foi tão catastrófico para a cultura como na educação. O professor, despojado de credibilidade e autoridade, convertido em muitos casos, na perspectiva progressista, em representante do poder repressivo, isto é, no inimigo a quem, para alcançar a liberdade e a dignidade humana, era preciso resistir e, até, abater, não só perdeu a confiança e o respeito sem os quais era impossível cumprir eficazmente a sua função de educador – de transmissor tanto de valores como de conhecimentos – perante os seus alunos, como também os dos próprios pais de família e de filósofos revolucionários que, à maneira do autor de Vigiar e Punir, personificaram nele um daqueles instrumentos sinistros de que – tal como os guardas das prisões e os psiquiatras dos manicómios – o establishment se vale para refrear o espírito crítico e a sã rebeldia de crianças e adolescentes.
Muitos professores acreditaram de muito boa-fé nesta satanização de si mesmos e contribuíram, atirando baldes de azeite para a fogueira, para agravar o estrago fazendo suas algumas das mais disparatadas sequelas da ideologia do Maio de 68 relativamente à educação, como considerar aberrante reprovar os maus alunos, fazê-los repetir o ano e, até, dar classificações e estabelecer uma ordem de preferências no rendimento académico dos estudantes, pois, fazendo semelhantes distinções, propagar-se-ia a nefasta noção de hierarquias, o egoísmo, o individualismo, a negação da igualdade e o racismo. É verdade que estes extremos chegaram a afectar todos os sectores da vida escolar, mas uma das perversas consequências do triunfo das ideias – das diatribes e fantasias – do Maio de 68 foi que por esse motivo se acentuou brutalmente a divisão de classes a partir das salas de aula.
A civilização pós-moderna desarmou moral e politicamente a cultura do nosso tempo e isso explica em boa parte que alguns dos «monstros» que julgávamos extintos para sempre depois da Segunda Guerra Mundial, como o nacionalismo mais extremista e o racismo, tenham ressuscitado e vagueiem novamente no próprio coração do Ocidente, ameaçando uma vez mais os seus valores e princípios democráticos.
O ensino público foi uma das grandes conquistas da França democrática, republicana e laica. Nas suas escolas e colégios, de muito alto nível, as vagas sucessivas de alunos gozavam de uma igualdade de oportunidades que corrigia, em cada nova geração, as assimetrias e privilégios de família e classe, abrindo às crianças e jovens dos sectores mais desfavorecidos o caminho do progresso do êxito profissional e do poder político. A escola pública era um poderoso instrumento de mobilidade social.
O empobrecimento e desordem que o ensino público sofreu, tanto em França como no resto do mundo, deu ao ensino particular, ao qual por razões económicas só tem acesso um sector social minoritário de altos rendimentos, e que sofreu menos os estragos da suposta revolução libertária, um papel preponderante na forja dos dirigentes políticos, profissionais e culturais de hoje e do futuro. Nunca foi tão verdade o «ninguém sabe para quem trabalha». Julgando fazê-lo para construir um mundo verdadeiramente livre, sem repressão, nem alienação nem autoritarismo, os filósofos libertários como Michel Foucault e os seus inconscientes discípulos agiram muito acertadamente para que, graças à grande revolução educativa que propiciaram, os pobres continuassem pobres, os ricos, ricos e os inveterados donos do poder sempre com o chicote nas mãos.»
Leitura complementar: O mito do individualismo extremo do nosso tempo; A insustentável leveza da literatura do nosso tempo; A banalização da política; Da arte moderna; Do erro da equivalência entre culturas à difusão da incultura; Da proliferação de Igrejas à substituição da religião pela alta cultura e aos escapismos contemporâneos; Da libertação sexual ao erotismo como obra de arte; A ausência dos intelectuais da civilização do espectáculo