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Diz um estudo recente - daquelas inutilidades pagas por alguém, disposto a desembolsar um resgate de Creso, a outro alguém que não se tolha da figura que faz ao produzir encómios etéreos - que Lisboa desceu três posições no ranking da qualidade de vida, conforme aferido por uma dessas hidras corporativas que se dedicam a evangelizar imberbes sem cheta, fazendo deles ocos títeres engravatados em tempo recorde.
Também eu andei por esses fiordes ocultos na bruma, em tempos de antanho, quando ainda fazia algum sentido (para mim e para o País) abnegar em certa medida a vida pessoal em favorecimento de uma carreira produtiva e contributiva. Comecei a desconfiar, porém, do penhasco em que o sonho da urbe iria falir, quando o grosso da coluna das velhas empresas portuguesas, edificadas a pulso e em torno de valores clássicos, foram sendo paulatina e inexoravelmente devoradas pelas mandíbulas dos imensos e intangíveis grupos internacionais, cuja quase totalidade tentaram e tentam, ainda, implementar modelos de negócio desajustados à nossa realidade com os resultados que estão à vista.
Ah, como sorrio ao recordar o dia em que entrei nos escritórios de uma grande companhia farmacêutica, que comprara outra entidade minha cliente em 2003. Nesses núcleos de novidade como a Quinta da Fonte (a quinta, que requinte) ou o Lagoas Park (meu Deus, o anglicismo é tão moderno) brotaram sucursais como amanitas, um gáudio de progresso e riqueza. Trocaram-se os escritórios desorganizados, cheios de pessoas que falavam cada uma em seu timbre, e onde imperava o primado da informalidade, por belas torres de plástico, mármore e cristal, assépticas, coesas nos motes da Companhia.
"Take the banner and empower your people!" podia ler-se por toda a sala de recepção naquele escritório. Que inspiração. Empower your people.
Mas divago. Este post é sobre a qualidade de vida. Já todos sabemos a esta hora que as bandeiras são para empunhar à balda e que um pontapé no cu é a recompensa mais frequente de quem se dedica a uma carreira. Adiante.
Não faço ideia que em espécie de critérios ou recolha de opiniões poderá basear-se o ranking ao qual aludo no início deste texto. Mas sei o que é andar em Lisboa, e mesmo viver, ou sobreviver, em Lisboa. Na minha experiência, e na dos meus amigos que ali vivem, o dia-a-dia é talvez díspar das horas displicentes e pacatas de, digamos, um cinquentão alapado na Lapa, que possa entrar ao trabalho à hora que quer, com empregada que lhe leve e traga os filhos à escola, casado com uma decoradora de interiores em sabática perene, a quem os pais e os tios suprem a aritmética quotidiana. Ou de um rapazito de vinte anos oriundo do Porto, com tudo posto no Bairro Alto ou nas Avenidas Novas pelos progenitores e que se arrasta a pé, nas horas médias do dia, entre uma tertúlia e a outra, enquanto inventa "projectos" pueris de artes e vícios que lhe permitam trocar uns cobres com outros da sua estirpe.
Pois, temos pena. Na Lisboa que eu conheço, as pessoas vêem-se à rasca para chegar a qualquer lado, porque os autocarros e o metro fazem os mesmos trajectos e não é possível ir a pé ao longo de 3 ou 4 quilómetros com os filhos pela mão até chegar à escola onde arranjaram vaga, por não havê-la perto de casa - estão cheias, as escolas básicas, com os amigos e os colaboradores e os sinalizados. Ir de carro? O edil actual anda a tentar dar cabo dessa maleita de vez, e já pouco falta. Não há onde estacionar, e percorrer mais de cem metros sem arriscar um furo ou outro dano na viatura - impune, claro, como tudo que pertença ao Poder Local e Central - é desafio para loucos furiosos.
Nessa mesma cidade, há dois tipos de cafés. As taberninhas deprimentes da bica e croquete, e os poisos das tias com a quiche e sumo de melancia. O resto (como se muito houvesse) é para quem pode, uma vez mais com os resultados que estão à vista. Vêem-se imensos carros novos, mas são de empresas ou de gente escusa que não interessa ao Menino Jesus. O ar não presta, e custa-me a crer que o ruído, os buracos e a sujidade que qualquer pessoa pode testemunhar possam ter pesado no tal ranking que os nossos heróis aturadamente mantêm.
Quando se chega a casa, é ver as ruas a perder atmosfera com a precisão de um relógio suíço. Depois das 20h, longe dos templos do hedonismo e da futilidade onde "toda a gente" gosta de ser vista, somem-se os cidadãos e surgem as excrescências, a mitragem. Ide fazer uma caminhada do Rossio a Entrecampos depois de jantar, de preferência envergando um bom casaco e com anéis nos dedos, e falai-me então de rankings e ratings, vidas e qualidades.
Esta gente goza como se fosse possível manter por insistência, até à exaustão, a farsa que deu cabo desta merda toda em pouco mais de 20 anos, arrasando o esforço dos nossos pais, e por quem antes os nossos avós, que não estenderam a mão em busca de almofadinhas quando a fome, o frio, a vergonha e o medo os acossavam, engoliam em seco, cerravam os dentes, e de cenho franzido despertavam para mais um dia.
E eu estou tão farto, tão fartinho desta infindável mentira. Enfim, de pouco me vale. Enquanto escrevo isto, o Anacoreta de Paris enfarta-se de croissants, e deste lado, entre uns pais que estoiram o RSI em imperiais e os outros a quem o Estado esbulha, os putos vão para a escola sem comer. Não come a boca, nem come a alma, porque lá também já pouco aprendem.
Se não é verdade, é pelo menos bem visto.