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A coroa imperial dos Qadjar
Durante os perto de vinte anos de amizade, o Onik foi o central protagonista de inúmeros episódios que para sempre ficarão gravados na minha memória. Um deles aconteceu na sua famosa cozinha, centro nevrálgico do seu apartamento na Rua do Salitre. Ali frequentemente se reuniam os amigos em fartas comezainas e conversas que duravam horas infindas. Existe uma lista infindável de histórias onde o burlesco, o drama e o fait-divers bastas vezes surrealista, andam demasiadas vezes numa tão improvável como normal companhia.
Já há alguns anos, o Onik telefonou-me todo entusiasmado, exigindo a minha urgente comparência em sua casa. De Nova Iorque chegara um amigo de muitas décadas, de seu nome Ali Mumtaz, persa de gema e segundo uma esperada e fidedigna garantia onikiana, ..."absolutely royalist like we are". Eu residia a uns quinhentos metros de distância e em pouco minutos lá toquei na campainha, deparando com um sorridente recém chegado, já fatalmente dedicado aos labores culinários que prenunciavam uma longuíssima conversa. Como seria de esperar, as palavras rapidamente enveredaram por aquele infalível caminho que o mútuo interesse pela História obriga e logo me apercebi da invulgar bagagem cultural que Ali carregava, centrando a Pérsia como ponto de interesse exclusivo da nossa conversa. O homem infatigavelmente ia cozinhando à medida que devorávamos o que nos servia e com esta ou aquela provocação do desde sempre sarcástico Onik, surgiam atalhos ou caminhos desavindos no decorrer das falas. O repasto, lauto como poucas vezes tive o prazer de degustar, consistia num infindável número de delícias persas, onde o arroz, o frango, queijos frescos e todo o tipo de vegetais, especiarias e frutos secos, testemunharam aquela esmagadora presença de uma cultura forte de milénios, a única que a par da China, ainda hoje prossegue o seu caminho desde a Antiguidade. Que manjares, que harmonia de sabores, um refinamento inigualável, digno dos melhores conhecedores da matéria!
Horas depois, quase estourando devido a um providencial pantagruelismo a que raramente me faço rogado, comentava-se a deposição da dinastia Qadjar e a ascensão dos Pahlavi ao Trono do Pavão. Como sinal para um breve interregno destinado à reposição de forças, deixei cair a questão:
- Ali, mas finalmente o que aconteceu a essa gente, os Qadjars?
De imediato Onik teve um daqueles frequentes lampejos em que se notava o prazer por me ter apanhado num indesejável pé em falso. Com uma sonora gargalhada entre o diabólico e o condescendente, retorquiu:
- Nuno, they are closer than you can imagine!
Era verdade. O cozinheiro e diluviano contador de histórias e mitos, era um dos bisnetos do Xá da deposta dinastia. Como estocada final, sublinhava a sua total lealdade aos Pahlavi, os sucessores dos seus avoengos.
Por umas horas fiquei prostrado, até todo o processo recomeçar. Assim foi durante três dias.