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Ratzinger condena, na sua mensagem de ano novo, o “capitalismo desregrado” como o grande culpado da crise económica e social em que o ocidente vive. Ratzinger aponta, portanto, o dedo à criação e não ao criador ou, dado que estas palavras podem, neste contexto, causar equívocos, quero dizer que sua santidade – a vossa santidade! – aponta o dedo às imperfeições e erros do capitalismo como culpados pelo homem e não o contrário, como julgo deveria ser. Tivesse Ratzinger dado ênfase a esta fundamental distinção – na verdade, um mero exercício lógico, nem sequer filosófico - e quase me surpreenderia pela positiva. Digo *quase* porque nunca me esqueço da lustrosa hipocrisia a que a igreja já nos habituou; estou a lembrar-me, por exemplo, da diabolização da riqueza e o elogio da pobreza que esta instituição professa não vivendo, no entanto, os seus máximos representantes de acordo. Oiço todas as declarações das instituições religiosas, especialmente da ICAR, com as maiores reservas. Todo o rigor nas palavras é pouco neste momento histórico de confusão e de perdição. Basta um pequeno mal-entendido para regressarmos à barbárie.
Concordo que o laissez faire deixou o espírito do homem ocidental correr à solta e por vezes de forma selvagem - e ainda bem, digo eu. Como dizia o mais incompreendido dos filósofos e o mais sábio: "É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela." A liberdade tem destas coisas. No entanto temos de estar preparados para as consequências dessa liberdade criativa e devemos ser responsáveis e sérios, adultos o suficiente, para encaixar os seus prejuízos, se não os pudermos, evitar. Devemos também, na medida do possível, tirar lições e transmiti-las aos mais novos, de forma clara, para que cenários semelhantes não se repitam no futuro. A culpa de estarmos à beira do colapso civilizacional não é do capitalismo, é dos seres humanos. A liberdade tem de acarretar responsabilidade e guiar-se pela ética pois só assim adquire sentido; de outro modo, facilmente se transforma em libertinagem imoral e inconsequente, causando prejuízos variados.
Veja-se, por exemplo, a criação de instrumentos financeiros, inicialmente concebidos sem pecado original (dou o benefício da dúvida) mas que foram sendo adicionados de camadas de complexidade sucessivas, transformando-se em enigmas que escapam à compreensão dos próprios criadores. A fusão entre o pensamento matemático, o engenho e criatividade humanas e a informatização permitem descobrir caminhos nunca antes trilhados no domínio da inteligência, com resultados imprevisíveis. Esta questão da *presunção do conhecimento* é muitíssimo bem apresentada por Nassim Taleb no seu extraordinário livro, O Cisne Negro, cuja leitura vivamente aconselho.
Assim vai a humanidade avançando, por tentativas e erros. E os erros humanos merecem perdão porque esse mesmo génio errante e livre consegue operar, dentro da sua imperfeição, verdadeiros milagres. Ratzinger revela, na melhor das hipóteses, falta de jeito para comunicar. Não sei se por excesso de isolamento, por falta de contacto com gente comum - meros mortais com problemas mundanos - não sei se por falta de zelo, velhice ou simplesmente por lhe faltar o dom da palavra em público – qualidade com que nem todos formos agraciados, é um facto.
O problema que hoje os ocidentais vivem não se deve ao capitalismo desregrado, nem mesmo ao corrupto, ou decadente, ou ganancioso, ou imoral – chamem-lhe os nomes que quiserem! - porque o capitalismo não vive no éter, suspenso no ar! Ele não vem de fora para dentro, ele sai de dentro para fora. O capitalismo é uma criação imperfeita de um ser humano imperfeito, ou dito de outra forma, uma criação inacabada de um ser humano em aberto, o espelho do homem no tempo. O capitalismo é naturalmente humano e por isso enferma, de forma directa, dos mesmos males dos humanos. Não é pois o capitalismo que deve ser substituído pelo que quer que seja, como Ratzinger parece insinuar, ignorando, ou fazendo por ignorar, que este sistema foi o que mais gente tirou da miséria e mais prosperidade trouxe ao mundo.
A igreja deve, mais do que nunca e se quiser cumprir a seu dever, apelar para a reabilitação de valores humanos fundamentais, dando o exemplo. O capitalismo só proporciona o máximo benefício quando comunga de ética. O erro fatal que a igreja comete, pelas palavras do seu mensageiro maior, é pactuar, por omissão intelectual, com o poder corrupto e com o facilitismo, recusando-se a apontar com firmeza e lucidez as razões que tornaram órfãos de moral os humanos que hoje pisam a face da terra, nomeadamente as terras do ocidente. Há muito que a igreja se afastou e deixou de servir de exemplo moral aos ocidentais. Walk the talk: a igreja deixou de viver, em vários momentos da história, a palavra de Cristo e foi por isso perdendo sentido e credibilidade. Hoje a igreja, nomeadamente a Católica Apostólica e Romana, sobrevive por pontas, num exercício penoso de jogos de palavras vazias e rituais anacrónicos, com o objectivo desesperado de mostrar alguma relevância.
A igreja, tal como o capitalismo, também foi traída pela imperfeição humana mas ao contrário do capitalismo, este não tem um representante institucional, vestido de branco, para lhe apontar o dedo de forma enviesada, dissimulada e injusta. Mais do que regras, o capitalismo, enquanto prolongamento do génio humano, carece de ética. Ratzinger pede a regulação do capitalismo quando deveria apelar e inspirar a regeneração espiritual do homem. Ao falar superficialmente de um problema tão grave e ao abordar de forma parcial aquela que me parece ser *a* questão crucial do nosso tempo, Ratzinger revela irresponsabilidade, algo imperdoável àquele que se assume como o representante de deus na terra, a incarnação viva da verdade e da justiça.