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A humanidade de Ratzinger

por Regina da Cruz, em 02.01.13

Ratzinger condena, na sua mensagem de ano novo, o “capitalismo desregrado” como o grande culpado da crise económica e social em que o ocidente vive. Ratzinger aponta, portanto, o dedo à criação e não ao criador ou, dado que estas palavras podem, neste contexto, causar equívocos, quero dizer que sua santidade – a vossa santidade! – aponta o dedo às imperfeições e erros do capitalismo como culpados pelo homem e não o contrário, como julgo deveria ser. Tivesse Ratzinger dado ênfase a esta fundamental distinção – na verdade, um mero exercício lógico, nem sequer filosófico - e quase me surpreenderia pela positiva. Digo *quase* porque nunca me esqueço da lustrosa hipocrisia a que a igreja já nos habituou; estou a lembrar-me, por exemplo, da diabolização da riqueza e o elogio da pobreza que esta instituição professa não vivendo, no entanto, os seus máximos representantes de acordo. Oiço todas as declarações das instituições religiosas, especialmente da ICAR, com as maiores reservas. Todo o rigor nas palavras é pouco neste momento histórico de confusão e de perdição. Basta um pequeno mal-entendido para regressarmos à barbárie.

Concordo que o laissez faire deixou o espírito do homem ocidental correr à solta e por vezes de forma selvagem - e ainda bem, digo eu. Como dizia o mais incompreendido dos filósofos e o mais sábio: "É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela." A liberdade tem destas coisas. No entanto temos de estar preparados para as consequências dessa liberdade criativa e devemos ser responsáveis e sérios, adultos o suficiente, para encaixar os seus prejuízos, se não os pudermos, evitar. Devemos também, na medida do possível, tirar lições e transmiti-las aos mais novos, de forma clara, para que cenários semelhantes não se repitam no futuro. A culpa de estarmos à beira do colapso civilizacional não é do capitalismo, é dos seres humanos. A liberdade tem de acarretar responsabilidade e guiar-se pela ética pois só assim adquire sentido; de outro modo, facilmente se transforma em libertinagem imoral e inconsequente, causando prejuízos variados.

Veja-se, por exemplo, a criação de instrumentos financeiros, inicialmente concebidos sem pecado original (dou o benefício da dúvida) mas que foram sendo adicionados de camadas de complexidade sucessivas, transformando-se em enigmas que escapam à compreensão dos próprios criadores. A fusão entre o pensamento matemático, o engenho e criatividade humanas e a informatização permitem descobrir caminhos nunca antes trilhados no domínio da inteligência, com resultados imprevisíveis. Esta questão da *presunção do conhecimento* é muitíssimo bem apresentada por Nassim Taleb no seu extraordinário livro, O Cisne Negro, cuja leitura vivamente aconselho.

Assim vai a humanidade avançando, por tentativas e erros. E os erros humanos merecem perdão porque esse mesmo génio errante e livre consegue operar, dentro da sua imperfeição, verdadeiros milagres. Ratzinger revela, na melhor das hipóteses, falta de jeito para comunicar. Não sei se por excesso de isolamento, por falta de contacto com gente comum - meros mortais com problemas mundanos - não sei se por falta de zelo, velhice ou simplesmente por lhe faltar o dom da palavra em público – qualidade com que nem todos formos agraciados, é um facto.

O problema que hoje os ocidentais vivem não se deve ao capitalismo desregrado, nem mesmo ao corrupto, ou decadente, ou ganancioso, ou imoral – chamem-lhe os nomes que quiserem! - porque o capitalismo não vive no éter, suspenso no ar! Ele não vem de fora para dentro, ele sai de dentro para fora. O capitalismo é uma criação imperfeita de um ser humano imperfeito, ou dito de outra forma, uma criação inacabada de um ser humano em aberto, o espelho do homem no tempo. O capitalismo é naturalmente humano e por isso enferma, de forma directa, dos mesmos males dos humanos. Não é pois o capitalismo que deve ser substituído pelo que quer que seja, como Ratzinger parece insinuar, ignorando, ou fazendo por ignorar, que este sistema foi o que mais gente tirou da miséria e mais prosperidade trouxe ao mundo.

A igreja deve, mais do que nunca e se quiser cumprir a seu dever, apelar para a reabilitação de valores humanos fundamentais, dando o exemplo. O capitalismo só proporciona o máximo benefício quando comunga de ética. O erro fatal que a igreja comete, pelas palavras do seu mensageiro maior, é pactuar, por omissão intelectual, com o poder corrupto e com o facilitismo, recusando-se a apontar com firmeza e lucidez as razões que tornaram órfãos de moral os humanos que hoje pisam a face da terra, nomeadamente as terras do ocidente. Há muito que a igreja se afastou e deixou de servir de exemplo moral aos ocidentais. Walk the talk: a igreja deixou de viver, em vários momentos da história, a palavra de Cristo e foi por isso perdendo sentido e credibilidade. Hoje a igreja, nomeadamente a Católica Apostólica e Romana, sobrevive por pontas, num exercício penoso de jogos de palavras vazias e rituais anacrónicos, com o objectivo desesperado de mostrar alguma relevância.

A igreja, tal como o capitalismo, também foi traída pela imperfeição humana mas ao contrário do capitalismo, este não tem um representante institucional, vestido de branco, para lhe apontar o dedo de forma enviesada, dissimulada e injusta. Mais do que regras, o capitalismo, enquanto prolongamento do génio humano, carece de ética. Ratzinger pede a regulação do capitalismo quando deveria apelar e inspirar a regeneração espiritual do homem. Ao falar superficialmente de um problema tão grave e ao abordar de forma parcial aquela que me parece ser *a* questão crucial do nosso tempo, Ratzinger revela irresponsabilidade, algo imperdoável àquele que se assume como o representante de deus na terra, a incarnação viva da verdade e da justiça.

publicado às 21:33


5 comentários

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De Regina da Cruz a 02.01.2013 às 23:55

Caro Duarte Meira,

Agradeço o comentário e o tempo que dedicou a complementar o texto que escrevi.

"Substituíssemos no seu apontamento a palavra "capitalismo" pela palavra "socialismo" e o seu apontamento podia ser subscrito por um bloquista...". 

*Se* substituíssemos. Repare que não a substituí. Falo de uma perspectiva e não da outra. Mas é livre de o fazer se lhe aprouver porque, em boa verdade, tudo o que é "desregrado" é prejudicial, quer seja o capitalismo, o socialismo ou o consumo de álcool.

“«Mais do que regras, o capitalismo, enquanto prolongamento do génio humano, carece de ética.» É isso precisamente que a Igreja tem dito, modernamente desde 1891.”

Até pode ter sido isso que a igreja tem dito, mas não foi isso que Ratzinger disse na sua mensagem de ano novo. 

“« ... devemos ser responsáveis e sérios, adultos o suficiente ...» Regras como esta, por exemplo. São estas - as regras morais - que interessam ao Papa e de que ele tem falado e fala, como todos os Antecessores.”

Ratzinger fala e tem falado, mas não se explica muito bem – pergunto: falta de zelo? Falta do dom da palavra? Pergunto...

O seu Antecessor, neste aspecto era muitíssimo mais claro, dando muito menos espaço para mal entendidos.



“E isto porque, como diz, bem, « o capitalismo só proporciona o máximo benefício quando comunga de ética.» Se não, se tem apenas em vista o jogo da wille zur macht (para utilizar a expressão do "filósofo incompreendido", se falamos do mesmo), aliada só à potência que hoje as info-bio-nano-tecnologias lhe dão, o máximo benefício pode tornar-se no máximo pesadelo que vamos viver neste mundo.””

Falamos, justamente, do mesmo filósofo e, se bem interpreto as suas palavras, concordo. De resto não faço a apologia do will o power, muito pelo contrário. 

“«Ao falar superficialmente de um problema tão grave ...» Não podia ter falado superficialmente, nem o teólogo eminente que também é, nem o Papa. Agora, na circunstância, não podia ter dito tudo. “

Tudo com certeza não poderia ter dito; não defendo a quantidade, mas a qualidade das palavras. Não pretendia que o Papa dissesse tudo, apenas que dissesse acertado.



“Para não ficarmos nós noutra confusão estúpida (e maliciosamente explorada) como aquela do burro ou do vaca  no Presépio, e, sobretudo, para não falarmos nós "superficialmente”

Mais uma vez, somos *nós* os comuns mortais que percebemos mal o que o Papa quis dizer...Duarte, não queria entrar neste exercício penoso de relembrar os "tiros no pé" que Ratzinger tem dado. Relembro aquela mensagem a propósito do uso do preservativos para prevenir a SIDA em África – entre outros episódios infelizes. Confesso-lhe que percebi bem onde o Papa queria chegar, nomeadamente nesse "episódio do preservativo": num mundo perfeito, santo, não haveria promiscuidade nem doenças infecto contagiosas e toda a relação sexual entre um homem e uma mulher seria sagrada - ideia de que partilho. Mas a humanidade está longe de ser perfeita e mesma aquela fracção da humanidade que consegue gerar tecnologias que minimizam o impacto dessas doenças, mesmo essa fracção da humanidade mais capaz de atingir a profundidade do pensamento do papa - caso este se explicasse melhor- mesmo essa, se encontra hoje à beira do abismo moral. Curioso não? É disto que o post fala.

“Vai a sugestão també a propósito do seu «Há muito que a igreja se afastou e deixou de servir de exemplo moral aos ocidentais.»
Quanto a se deixou de "viver" ou não a "palavra de Cristo"... deixemos que seja o próprio Cristo a julgar em Final Juízo.”


Deixemos pois. Longe de mim querer julgar o que quer que seja. Não tenho por hábito fazer julgamentos. Constato e aponto uma evidência, com toda a humildade que me é possível. A Visão da semana passada lança a questão do que acharia Cristo se viesse à Terra... é uma questão bem interessante.

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