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Ontem não fui um homem bom

por Samuel de Paiva Pires, em 02.02.13

 

(Pablo Picasso, Poor People on the Seashore)


Quando era criança, sempre que passávamos pela Rotunda do Relógio perguntava aos meus pais porque viviam aquelas pessoas ali nas escadas por baixo do viaduto. Tinha para mim que “quando fosse grande” construiria uma grande casa onde poderia abrigar as pessoas que não têm um tecto. Entretanto cresci e percebi que as coisas não são assim tão simples.

 

Há dias, enquanto aguardava por uma pessoa à porta dos Armazéns do Chiado, fui abordado por um rapaz com um ar envergonhado que, começando por afirmar que não pretendia dinheiro, logo me fez saber que tinha fome, perguntando-me se lhe poderia comprar algo para comer. Repliquei que estando a aguardar uma pessoa, não o poderia acompanhar, acabando por tirar do bolso algumas moedas que lhe entreguei. Isto quando um pouco mais abaixo, sensivelmente a meio da Rua do Carmo, costuma estar um pedinte sentado no chão com uns cartões diante de si a servir de repositórios da colecta, indicando em cada um deles o destino a dar a esta – álcool, droga, tabaco, comida etc. Porventura este putativamente humorístico pedinte, que por acaso tem um ar um pouco lunático, estará em crer que a sinceridade o ajudará, e a verdade é que lhe são atiradas bastantes moedas.

 

Entre a vergonha de uns e a loucura de outros, registe-se a ideia, que é do senso comum, de que a maioria dos pedintes que encontramos nas nossas ruas destinam aquilo que conseguem essencialmente a álcool e droga. Já desprovidos de qualquer vergonha, muitos acabaram a contribuir involuntariamente para a formação de uma certa carapaça que instintivamente faz com que se tenha banalizado a resposta “não tenho nada” perante qualquer pedido que nos façam pelas ruas.

 

Mas entre os loucos e os desprovidos de qualquer vergonha, há também os que envergonhadamente se vêem na contingência de ter que pedir para sobreviver. Há cerca de um ano, estive por várias vezes numa sala de espera do Hospital de S. José. De um lado para o outro arrastava-se em passos lentos e a medo uma senhora com uma expressão tão envergonhada que se tornava incomodativa e chegava mesmo a transmitir como aquela situação a estava a destruir psicologicamente. Abordava quem por ali aguardava a sua vez, resumindo a sua situação ao facto de se encontrar desempregada, tal como o marido, que estava doente.

 

Ontem, a caminho de casa, estavam dois pedintes na carruagem do metro em que seguia. Um deles, bastante conhecido por quem anda de metro, lá ia batendo com aquele ferro na bengala e na caixa que traz ao pescoço, no seu habitual ritmo alucinante, cantando o célebre “Ora podem crer que eu continuo a agradecer a quem tiver a bondade ou a possibilidade de me auxiliar”. O outro era uma senhora, que embora até abordando as pessoas com uma expressão facial amigável, foi encontrando a habitual resposta: “não tenho nada”. Após receber esta resposta da minha parte e de mais umas pessoas que se encontravam próximo de mim, o metro parou, tendo entrado uns jovens, rapazes e raparigas, que não teriam mais que 19 ou 20 anos. Um deles ficou em frente da senhora assim que entrou, tendo por ela sido abordado. Replicou que não tinha dinheiro mas que lhe podia oferecer a sandes embrulhada que trazia na mão. Provavelmente já esperando a resposta habitual, a senhora ficou um pouco surpreendida com a oferta, e com uma expressão de genuíno agradecimento, talvez a mais genuína que alguma vez presenciei, a primeira reacção que teve foi de uma generosidade tocante: pediu ao rapaz que pelo menos dividissem a sandes, o que ele obviamente recusou. Voltando a agradecer, aproveitou ainda para dizer que infelizmente se via naquela contingência porque tem que pagar o quarto em que vive com a filha, e que tem que a alimentar e vestir como conseguir, para que pelo menos não a achincalhem na escola.

 

Alguns dizem que encontram Deus em situações de contacto com o sublime e o belo. Eu não encontrei Deus. Mas de repente a minha alma e o meu corpo pareceram ter sido rasgados não por uma revelação divina, mas por uma revelação demasiado humana que me quis mostrar como é possível manter uma generosidade indescritível e ao alcance de muito poucos, numa situação em que provavelmente já não se consegue manter qualquer réstia de dignidade própria e cujas circunstâncias tenderiam mais a levar-nos no sentido oposto.

 

Ao mesmo tempo, senti-me envergonhado. Porque respondi instintivamente e não tive a capacidade de perscrutar aquele rosto e tentar compreender o que lhe subjaz. Quando me levantei, dirigi-me à porta onde se encontrava a senhora. Antes de sair, dei-lhe umas moedas, talvez procurando redimir-me, talvez procurando egoisticamente sentir-me um pouco melhor. Não o merecendo, fui presenteado com um simpático agradecimento de uns olhos cansados e um sorriso de uns dentes que já conheceram um estado bem melhor, de alguém com uma tez que denota alguma falta de saúde, mas que foram mais comoventes e me transmitiram mais conforto que muitos dos olhares e sorrisos que já recebi na minha vida. Não o suficiente, contudo, para evitar as lágrimas que me correram pelo rosto após sair do metro. Ontem, não fui um homem bom. E ainda que a minha mente não pare de pensar naquela cena a que assisti, pelo menos fico contente por ter visto um e por ter presenciado tamanha demonstração de generosidade.

publicado às 19:57


1 comentário

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De John Wolf a 03.02.2013 às 07:55

Caro Samuel,
Magnífico texto que alude ao mais essencial da condição humana e que porventura não se encontra na intelectualidade, na razão, na civilização. Somos muito mais pequenos e indigentes do que imaginamos. A tua ode às profundezas ajuda a recalibrar, a realizar a destrinça entre o efémero e o essencial.
Bravo.
Um abraço,
John

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