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Artigo publicado originalmente no sítio da Juventude Popular do Porto (Fevereiro de 2013):

 

José Clemente Orozco, As massas

 

Uma das grandes pechas da contemporaneidade democrática é a relativa falta de originalidade dos seus intérpretes. As palavras repetem-se e as ideias rareiam. Porém, de quando em vez há alguns assomos de criatividade que ajudam, de certo modo, a melhor interpretar os grandes desafios do presente e do futuro. Colin Crouch, um cientista político relativamente desconhecido pelos indígenas, é um bom exemplo dos curtos lampejos de criatividade que de quando em quando vão surgindo no mumificado panorama intelectual ocidental. Numa obra escrita em 2000, com o presciente título Coping with Post-Democracy, Crouch cunhou o famigerado termo da pós-democracia que, hoje em dia, anda na boca de muito boa gente. O cerne deste conceito gravita em torno da tese de que as democracias contemporâneas combinam um grave défice de representatividade política com um poder adulterado pela simbiose excessiva entre a mecânica do Leviatã e o voluntarismo dos grandes potentados económicos. Deixando de lado a óbvia deriva esquerdista do autor, a que não é de todo alheia a sua verve sociologista, este conceito possui múltiplas virtualidades, mais que não seja pela capacidade demonstrada de desvendar alguns dos bloqueios que perpassam os modernos regimes demoliberais.

 

A teoria de Crouch tem na abstenção um suporte empírico estruturante. É fácil compreender o porquê. Hoje, mais do que nunca, as pós-democracias ocidentais confrontam-se com graves bloqueios na relação entre representados e representantes. Os canais de confiança, que outrora permeavam o funcionamento do sistema, deixaram pura e simplesmente de fluir. Os sistemas políticos representativos perderam, em grande medida, o capital de atracção que contribuiu, ao longo dos últimos decénios, para torná-los num dos últimos redutos de civilidade política, num mundo em constante mutação. A origem do problema não é, como muitos dos hermeneutas da academia  apressam-se a fazer crer, simples e linear. O certo é que a crescente profissionalização das classes políticas, acompanhada, em simultâneo, da pauperização intelectual dos seus protagonistas mais salientes, ajudaram a exponenciar um problema latente nas democracias ocidentais.

 

A profissionalização da política trouxe a jusante um “modus operandi” assente na captura do aparelho estadual pelos profissionais do rentismo desabrido. A política deixou de ser um espaço de debate e discussão, o espaço por excelência da pólis, para ser um campo fértil em transacções de poderes e influências. A política tornou-se, de certo modo, num centro de transumâncias várias, em que os poderes jogam a sua participação no imenso palco da riqueza a redistribuir. O liberalismo social, universalizado no pós-guerra, teve aqui um papel sumamente relevante, e, simultaneamente, contraditório: o novo contrato social, crismado pelo tão adulado Estado Social, criou um catálogo extenso de novos direitos sociais, cuja contrapartida foi a expansão desmedida dos mecanismos coercivos do Estado. O desenlace deste paradigma é observável, hoje, a olho nu: de um lado, temos um Estado pantagruélico, fremente de tributos e prerrogativas, e, do outro, uma cidadania passiva e esbulhada, imersa numa luta hobbesiana pela sobrevivência, em que predomina a indiferença pela coisa pública. A abstenção é o resultado óbvio desta tendência de desresponsabilização.

 

A resposta que a grande maioria dos cidadãos encontra perante a falta de resposta do sistema aos seus anseios é um desinteresse radical, expresso na recusa em confirmar a autoridade dos que detêm as rédeas do poder. Como dizia de uma forma lapidar Arend Lijphart, a abstenção é um fenómeno disfuncional que, em boa verdade, tem efeitos assaz perniciosos na condução das políticas públicas, ao fixar quotas de influência díspares entre votantes e não-votantes. O que antes era medido pela força do voto, com a mobilização das massas ao sabor do apelo de um slogan vertebrador de sentimentos e pertenças, é, actualmente, usado em favor da passividade perante o jogo eleitoral das clientelas partidárias.

 

Portugal, um país esganado pelo rolo compressor da soberania perdida, é um bom exemplo desta doença democrática, basta observar que, nos últimos actos eleitorais, a média percentual da abstenção superou os 40%. Números que assustam e que dariam, em condições normais, que pensar. O cerne do problema encontra-se, pois, num contrato social gasto e falido, que já não oferece soluções credíveis às classes médias que, durante anos, viveram à sombra da sua imensa bonomia. Perante isto, que fazer? Apelar ao voto em branco, como fez Saramago? Aderir em massa aos slogans dos ditos indignados, zurzindo virulentamente nas elites políticas e económicas? Não, a resposta não se encontra nesses ditirambos delirantes, aliás, as respostas definitivas não fazem parte do menu, porque, em bom rigor, a ciência das certezas feitas é um exclusivo da ignorância. O único esboço de resposta possível à abstenção cívica da grande massa de cidadãos inactivos é a refundação do contrato social, contanto que o apego à lei, ao direito, ao contrato, e ao “due processo of law” estejam no cardápio de opções. Em suma, estado de direito, liberdade e autonomia, conceitos que por si só definem um conservadorismo salutar. Porque sem participação na coisa pública não há comunidade de partilha e destino que sobreviva. 

publicado às 14:34


3 comentários

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De Miguel Aguiar a 15.02.2013 às 14:25

Caro João,


Concordando com a tua análise - nomeadamente com a questão do 'clientelismo' que tomou conta dos aparelhos políticos - creio que o problema de fundo não se esgota aí. Em paralelo com a paralisação estrutural da economia e com a recomposição das estruturas sócio-económicas do país, julgo que não devemos renegar o papel da velocidade da informação. Creio mesmo que foi pena branqueares este aspecto no teu texto. É que estes mecanismos permitiram, em certa medida, um escrutínio muito mais rigoroso a certos aspectos da vida da classe política. A meu ver, esta nova realidade gerou um duplo desafio, aliás muito interessante. Em primeiro lugar, imaginar que peso é que essa velocidade da informação pode ter na própria participação activa dos cidadãos. Vejo-o de uma forma aberta e responsável: não só no plano desse escrutínio às mais altas esferas, mas também em detalhes mais comuns, da vida quotidiana das populações. Em segundo lugar, conseguir estabelecer os 'limites' desse fluxo, isto é, assegurar que eles não são usados com fins maqueavélicos ou que não tornam a relação entre a sociedade civil e as classes políticas num contexto de selvajaria e oposição insustentáveis.  Em resumo, permitindo o controlo e a participação, mas recusando a perseguição. Fui perceptível?


Uma última nota: gosto muito da tua cultura de 'clássicos'. Já detectei a tua admiração por Hobbes, como aliás fica patenteado neste texto - assim como todos os pensadores do 'contracto social'. Não é possível clamar por acção política sem coordenadas culturais e intelectuais bem vincadas.


Um abraço


Miguel Aguiar
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De João Pinto Bastos a 01.03.2013 às 13:11

Miguel,


Concordo com o teu acrescento. Por razões que se prendem com a exiguidade do espaço optei por não dar destaque à questão dos media, porém, tens razão quando apontas a velocidade dos fluxos informacionais como um pormaior no desprestígio crescente da classe política. Hoje, tudo depende do soundbyte, da palavra bem ou mal dita, do histrionismo com que se debate por vezes o nada ululante, and so on - podia estar aqui horas e horas a apontar os males que a omnipresença dessa "velocidade" tem provocado. É evidente que a interpenetração entre os novos sistemas de informação e o sistema democrático-representativo tem estimulado alguns hiatos. Que, em boa verdade, não têm tido, até hoje, a devida resposta. Quanto a Hobbes, sim, tenho uma profunda admiração pela sua obra. É um autor absolutamente indispensável. Compreender a modernidade política passa, também, pela leitura dos seus escritos.


Um abraço

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