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Nuno, por acaso o povo nunca foi quem mais ordenou

por Samuel de Paiva Pires, em 18.02.13

Por isso permite-me discordar do teu post, bem como, na mesma linha, deste artigo de João Pereira Coutinho. Na realidade, o argumento tantas vezes brandido, especialmente à direita, de que a Assembleia da República resulta da expressão da vontade popular, procurando-se desta forma desqualificar todo e qualquer movimento da sociedade civil, é falacioso. Em primeiro lugar, não deixa de ser irónico ver este argumento brandido pela direita que se diz liberal... Ou talvez não seja tão surpreendente, tratando-se, mais uma vez, da direita que em Portugal não se consegue organizar para nada - até para governar o país mal se consegue organizar - e por isso inveja a esquerda por estar bem organizadaEm segundo, cansa ver este argumento tantas vezes embandeirado em arco, como se o sistema eleitoral português fosse sequer representativo da nação e não o distorcido e perverso produto de partidos políticos que capturaram o estado (partidos-cartel, na acepção de Katz e Mair), que já de si padecem de graves deficiências ao nível da democraticidade interna, e que através de um sistema eleitoral muito pouco democrático e de um elevado grau de centralização no que diz respeito ao recrutamento político apenas apresentam aos eleitores factos consumados, isto é, os eleitores procedem apenas à legitimação posterior de decisões e listas feitas a priori. Cansa ver este argumento tantas vezes brandido, especialmente por quem sabe muito bem, ou deveria saber, o que acabo de mencionar. Afinal, Moisei Ostrogorski e Robert Michels há já muito tempo que observaram as características comportamentais dos partidos políticos. E estas permanecem imutáveis. 


Permite-me ainda deixar uns excertos de um breve ensaio teórico da minha lavra sobre representação política e recrutamento parlamentar:


Em primeiro lugar, o modelo mais descentralizado, que toma o nome de internas abertas ou open primaries, é o que permite ao eleitorado ter um papel preponderante quanto à escolha final dos candidatos. Embora a capacidade de iniciativa seja uma prerrogativa dos partidos, acontece que todos "os membros da comunidade política com capacidade eleitoral activa podem propor e/ou eleger os candidatos de um determinado partido político, de entre um conjunto de candidatos apresentados por este". Desta forma, os candidatos são, inicialmente "aspirantes" a candidatos, visto que a sua confirmação está dependente da vontade manifestada pelo eleitorado. Esta é uma realidade estranha aos países europeus, mas tradicional do sistema político dos Estados Unidos da América, em que os partidos "submetem as suas escolhas internas ao controlo externo, independentemente de critérios de filiação partidária". Entre as várias razões para esta estranheza por parte dos europeus, é de salientar, como o faz a autora, uma certa tendência oligárquica que torna a salvaguarda da disciplina partidária um imperativo para o funcionamento dos sistemas de governo da Europa Ocidental, o que significa, em última análise, que as principais decisões quanto ao recrutamento dos representantes parlamentares competem essencialmente aos partidos, que levam em consideração, essencialmente, a filiação e a posição que os candidatos ocupam na estrutura interna do partido. Assim, os eleitores procedem apenas à legitimação posterior de decisões e listas feitas a priori.

(...)

O terceiro modelo, caracteriza-se pelo facto de a decisão quanto à escolha dos candidatos recair sobre estruturas locais e/ou regionais dos partidos. Os militantes de base não intervêm directamente no processo, como acontece nos dois modelos anteriormente enunciados, sendo este controlado e mediado por “órgãos partidários de carácter colegial, com responsabilidades deliberativas e executivas, ao nível regional e/ou local". A viabilidade deste modelo, que se constitui como o mais generalizado na Europa Ocidental, está directamente relacionada com o sistema eleitoral adoptado, tendo ainda consequências bem distintas dos anteriores no que diz respeito à vida intrapartidária e à relação entre eleitos, partidos e eleitores. Na realidade, embora o aparente grau de descentralização que perpassa este modelo possa ser visto como uma forma de garantir uma maior democraticidade do processo de recrutamento, a verdade é que, como assinala a autora, "como já os autores clássicos faziam notar, as tendências oligárquicas, burocráticas e clientelares não constituem uma «patologia» que se manifesta exclusivamente ao nível das cúpulas nacionais, podendo assumir contornos bastante mais acentuados e difíceis de combater à medida que descemos na hierarquia partidária".

(...)

Sendo certo que não há um modelo único que se possa aplicar a todo e qualquer regime democrático, também a cultura política contribui de forma determinante para os critérios que presidem à aplicação do princípio da representação e, em decorrência destes, organizam-se processos de recrutamento político que podem ser caracterizados como mais ou menos democráticos, centralizados ou descentralizados, formais ou informais. Não será, por isso, de estranhar que na literatura comparada sobre a Teoria e Prática da Democracia, os Estados do sul da Europa surjam sempre como os menos democráticos, onde, ao nível das organizações partidárias e da democraticidade interna destas quanto aos processos de decisão, o recrutamento das elites parlamentares tende a ser centralizado e pouco formal, ou seja, com regras pouco precisas quanto ao seu funcionamento, reforçando, portanto, a personalização do poder no líder, quando não mesmo a tendência oligárquica das direcções nacionais dos partidos.

publicado às 23:43


2 comentários

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De Perplexo a 13.03.2013 às 11:54

Interessante dissertação (não vejo como chamar-lhe de outro modo), tem no entanto uma afirmação que me parece errada - a 180 graus da verdade: "a direita em Portugal não se consegue organizar para nada - até para governar o país mal se consegue organizar - e por isso inveja a esquerda por estar bem organizada". Ora bem, tirando a famosa organização interna do PCP, a esquerda não consegue organizar-se minimamente, pois logo se divide em facções  intolerantes, enquanto a direita, mais pragmática, organiza-se no exercício do Poder com alguma eficiência. Veja-se o caso presente: a direita (PSD e PP) tolera-se e está a cumprir o seu programa ultra-liberal, mesmo com as dificuldades da crise; a esquerda (PS, BE e PCP) nem consegue fazer um acordo parcial para as autárquicas. Os poucos anos em que a direita tem estado no poder (desde 1974) têm-lhe rendido muito mais transformações do que os muitos anos controlados pela esquerda.
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De Samuel de Paiva Pires a 13.03.2013 às 14:17

Bem visto, meu caro. Eu estava mais a pensar em termos de implantação social, embora também tenha aludido ao governo, claro. Tirando os partidos, a direita sociológica, se assim lhe podemos chamar, talvez por temperamento, organiza-se para muito pouco ou nada. Depois admiram-se que as manifestações são todas organizadas pela esquerda.

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