
Hoje sinto-me belicoso. Tal não se deve a qualquer notícia do telejornal, conta para pagar ou birra. Na verdade, ontem organizei um pequeno jantar para uma amiga de Madrid que, de férias em Lisboa, trouxe consigo dois "chicos" como acompanhantes. De
tchicos* (escreverei tal como eles pronunciam as palavras) tinham muito pouco, pois tratava-se de dois exemplares acabados do marmanjão muito senhor de si, organizado e aquilo a que eu costumo chamar "betus ibéricus", uma subespécie que abunda para cá dos Pirenéus.
O jantar estava bom, confesso, e a conversa iniciou-se de forma aprazível, como convém. Zapateristas ferrenhos, passaram longos momentos a tecer loas à transcendência da sua gubérnáción*, ao diálogo, abertura, enfim, o recorrente discurso a que por cá também nos habituámos. Estes dois espanhóis - um catalão e outro castelhano -, não são propriamente uns pobres diabos das claques do Barça ou do Real Madrid. Enquanto um é professor no liceu, o outro desempenha funções na diplomacia do país vizinho. Apresentados os currículos, a conversa parecia prometer e ajudar-me a aliviar certos preconceitos - pelo menos considerava-os como tal - que quase todos os portugueses enraizaram a respeito destes primos um tanto distantes no tempo e na história.
O verdadeiro problema teve início, quando se começaram a fazer sentir os efeitos do bom vinho. Copiosamente regados, os dois convivas - digo dois, porque só eles falaram à mesa -, iniciaram o famoso discurso de apresentação das vantagens da união ibérica. O mais curioso, é que as vantagens se resumiam apenas ao lado Êpanhol*, porque no que a Portugal diz respeito, nada de proveitoso foi dito. Colocando algumas questões, manifestei uma certa curiosidade acerca da forma como eles encarariam um tal processo de unificação e não fui surpreendido, quando se tornou evidente de que se trata de uma pura e simples anexação sem condições! A todos os argumentos colocados, encontram resposta pronta. A língua portuguesa, logicamente seria marginalizada e de forma muito simples, dada a facilidade que temos para aprender outros idiomas. As nossas leis e ordenamento territorial, submeter-se-iam ao esquema delineado pela Constituição espanhola e nem sequer Portugal existiria como entidade, pois seria dividido em quatro regiões autónomas continentais e duas insulares. A depredação do nosso património é um dado não negligenciável, uma vez que a África Lusófona, terá para eles, o mero interesse comercial que lhes dita a conveniência das suas empresas. Nada mais.
Pensei que as rivalidades entre castelhanos e catalães, pudessem de qualquer forma, mitigar ímpetos que outrora bem conhecemos. Uns copos de tinto, afogam num ápice, todas as querelas - que verifiquei serem de simples disputa tributária - e ameaças de secessão. A agressividade, o espalhafato intrínseco, a certeza absoluta de certas convicções - para as quais Cervantes bem alertou -, pairam acima dos eflúvios vinhosos, como nuvem ameaçadora. É que aqueles senhores, um dos quais é diplomata, pouco ou nada conhecem do mundo e menos ainda, do seu vizinho mais próximo. A ignorância é espantosa, roçando o achincalhamento daquilo que pensávamos ser o ensino em Êpanha*. Esgravatando ao de leve o passado de conflitos de interesses que fizeram eclodir constantes guerras entre os dois países, podemos facilmente concluir que a visão maniqueísta e desdenhosa que do nosso país têm, atinge dimensões verdadeiramente assombrosas. O simples exemplo da Guerra da Restauração, é por eles explicado como uma total ausência da presença portuguesa nos campos de batalha, infestados, isso sim, de ingleses, franceses e holandeses. E não se ficam por aqui. Com o ar mais sério deste mundo, foram grunhindo enormidades acerca do poderio do reino, desde a sua inigualável e poderosa frota, até ao verdadeiro peso que tem nos destinos mundiais. Pareciam dois russos pré-Perestroika e a verdadeira trovoada de arrotos de postas de pescada, não cessava. Tudo é por lá inacreditavelmente superior, desde a Pintura, até à Música, debitando, claro está, créditos aos senhores Gaudi, Calatrava e Bofil. A mão êpanhola*, conduz a humanidade à perfeição. Incrível, só visto! Nem as suas antigas colónias, vistas como países sem razão histórica e política de existir, são poupadas ao vendaval de desprezo avassalador: os índios da América do Sul, não passam de chinchetas (alfinetes de escritório), cujas caras achatadas denunciam de imediato a impossibilidade de organização como nações. Os mexicanos, eses gorditos , servem apenas para garantir a preponderância da língua espanhola, nuns Estados Unidos em acelerado processo de hispanización*.
E poderia continuar a descrever este pretenso jantar-comício, durante horas. Os homens não se calavam e nós, pobres portugueses mudos de espanto, ouvimos com curiosidade redobrada. Na verdade, o pior foi o entremear do discurso, com a habitual gritaria da sua musica précioça*, que finalmente nos fez render à evidência: a língua é cavernosa e roça bastante aquilo que designamos como pirosa. O ruído canoro, com os ay ay ay ay ayyyyy, acompanhado pelo infernal clapaclapaclap das palmas, nada tem de comum connosco. Aquela pose de mão na anca e queixo erguido, entre o toureiro e um goyesco retrato de Fernando VII, espelha bem o que lhes vai na alma. Ficámos todos elucidados. São incorrigíveis. Vivem convencidos da sua incomparável grandeza e entretanto, não compreenderam que o mundo mudou.
Embora a chamada classe empresarial teça os habituais e interesseiros elogios a uma tal "União Ibérica", os políticos - porventura tentados a uma saga de tamanho jaez -, poderão ir contanto com uma inevitável jacquerie lusitana. E não digo mais, porque concedo o benefício da dúvida: seriam apenas dois parvos?
* A foto foi feita ontem, pouco depois da penosa retirada dos dois toros e da bastante atónita acompanhante.