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Este é um tema sensível, um poderoso explosivo político que a maioria evitará tanto como uma purga com óleo de rícino. No entanto, é imperioso - conhecemos os riscos - discutir o assunto que o Parlamento trouxe como boa nova redentora de ignomínias de outros tempos.
Neste blog foram publicados dezenas de posts - aqui, aqui ou aqui, entre muitos outros - em que Israel surge como parte sempre bem tratada e por vezes até beneficiada por aquela compreensão que se torna inevitável por parte de um Ocidente acossado e perante os dilemas colocados por aquela velha máxima dos "inimigos dos meus inimigos meus amigos são". Também é sabido o que para centenas de milhar de portugueses significou a expulsão das suas casas, para sempre deixando as terras onde nasceram e enterraram antepassados. Estes portugueses ainda existem e já aceitaram o veredicto de uma história que lhes foi imposta. Este é um assunto tabu.
O Parlamento unanimemente votou uma moção que tenciona reparar uma infinidade de crimes e tragédias pessoais ocorridas há perto de cinco séculos. Se a República já o fez pela voz de um dos seus titulares, o sucessor dos reis de Portugal - a multisecular Monarquia Portuguesa - não deixou de colocar no altar do remorso, um sonoro pedido de perdão por uma culpa que não lhe cabe, mas que historicamente herdou. O que hoje se discute, é uma situação que terá passado despercebida a uma opinião pública hipnotizada pelas transcendentes danças de cadeiras ministeriais e pelos humores dos inefáveis agentes políticos minoritários ou do poder eleito em exercício da autoridade constitucional.
A atribuição da nacionalidade a alguém ou a um grupo mais ou menos numeroso, não se reveste de uma mera formalidade festiva, da inconsequente aprovação de um voto de congratulação por um prémio literário internacional, ou da pública manifestação de pesar pelo passamento de uma individualidade de reconhecidos méritos. Trata-se de um assunto muito diferente e tendo sido esta reparação votada por unanimidade, ficamos na dúvida quanto ao aturado estudo dos direitos e obrigações legais que ela poderá acarretar.
Conhece-se a situação política, social e militar do sempre volátil Médio Oriente. O estabelecimento do Estado de Israel, a imediata reacção dos países árabes, as vitórias militares israelitas, a nakba e o inextricável problema palestiniano, dão-nos claros sinais daquilo que está em causa. Israel é um Estado de direito, cumpre uma boa parte das aceites regras da boa convivência democrática e sem surpresa alicerça os seus fundamentos constitucionais nos mesmos princípios que consagramos na Europa ou nos países americanos. É por essas evidências que a grande maioria dos ocidentais olha para esse país como entidade a preservar, embora sobejas vezes quase todos também discordem de abusos, faltas de discernimento e jactâncias que além dos demais povos em causa, prejudicam os próprios israelitas. Conhecem-se os casos, são supérfluas mais palavras.
A atribuição da nacionalidade aos "judeus sefarditas de origem portuguesa", consiste numa intenção nebulosa, quiçá generosa e decidida com as melhores intenções. Mas há que termos a inteira consciência do que poderá isso representar num futuro ainda bastante incerto, mas que alguns dados - entre os quais os demográficos avultam de sobremaneira - nos fazem adivinhar uma multiplicidade de problemas como possibilidades nada desdenháveis.
Quantos "judeus sefarditas de origem portuguesa" existem em todo o mundo? Não nos referimos apenas aos que têm hoje a nacionalidade israelita, mas a uma dificilmente contabilizável multidão que compõe múltiplas comunidades espalhadas pelas Américas, Europa, Médio Oriente, norte de África ou em lugares tão surpreendentes como o Irão. Que critérios usará a judaica comissão portuguesa para decidir quem é ou não é descendente dos banidos no século XVI e seguintes? Sabemos o que os judeus portugueses representaram para a pujança do comércio e navegação dos Países Baixos onde obtiveram guarida. Também não nos é inteiramente desconhecida a sua acção no Ultramar onde continuaram a manter negócios, apoiando activamente as incursões holandesas que a Portugal definitivamente subtraíram o Ceilão, numerosas feitorias na costa indiana, Malaca e territórios na Insulíndia. No Atlântico, participaram activamente na conquista do nordeste brasileiro, na tomada de S. Jorge da Mina, S. Tomé e Angola. De todo o património perdido, apenas as possessões atlânticas foram reconquistadas por Portugal e após porfiados esforços dos Restauradores da independência nacional. A expulsão dos judeus foi assim pesadamente punida e vingada - não há que temer as palavras -, tendo Portugal perdido uma fundamental parte do seu poder económico, comercial, científico e político, a isto se juntando a perda de importantes parcelas da nossa soberania imperial. Devido à Guerra de África, Israel bastas vezes opôs-se a Portugal na ONU enquanto beneficiava dos serviços prestados pela base norte-americana nas Lajes, aquele essencial ponto de suporte que inegavelmente salvaria o Estado hebraico em 1973. Pois isto não é tido em conta para coisa alguma.
Há menos de duas gerações, Portugal abandonou dezenas - há quem fale em mais de duas centenas - de milhar de soldados que combateram nas fileiras do nosso Exército. Deixados à mercê das novas autoridades dos antigos territórios ultramarinos, em S. Bento ninguém mais se lembrou em honrar os compromissos assumidos pelo Estado quando incorporou aqueles mancebos negros que denodadamente e sem discutirem ordens, bem serviram a pátria. Na Guiné, por exemplo, foram fuzilados sem dó nem piedade e de Lisboa nem um protesto partiu. Para os que sobreviveram, hoje ainda vivos e com nomes retintamente portugueses - João, Pedro, Paulo, António, Joaquim, Mateus, Eugénio, Carlos, Acácio, Marcelino, Miguel, José ou Augusto -, não sobram atenções, actos reparadores, reformas que lhes garantam uma velhice minimamente digna. Foram ostensivamente esquecidos e embora pertencentes a comunidades de que Portugal desesperadamente necessita para sobreviver no concerto das nações, em S. Bento hoje não encontram quem deles se recorde ou lhes faça a devida justiça. Pior ainda, os negros foram banidos de um Parlamento onde noutro tempo se sentaram como representantes dos territórios onde nasceram. Quantos por lá discutem, discursam ou propõem leis?
Israel enfrenta enormes e indisfarçáveis problemas e a luta pela demografia vai sendo provisoriamente resolvida durante alguns anos, normalmente recorrendo-se a contingentes alegadamente judaicos que provêm dos territórios da antiga Rússia imperial e até da Abissínia. Não sabemos o que o futuro nos reserva, mas temos a certeza da facilidade, já demonstrada no Caso Macau, com que se forjam naturalizações. Quanto ao assunto em discussão, falamos timidamente de árvores genealógicas e do potencial ressurgir de pujantes famílias há muito julgadas desaparecidas ou diluídas nas comunidades que em boa hora deram abrigo aos seus maiores.
As condições expressas pelo Parlamento parecem tranquilizar os mais receosos, mas os números são uma incógnita bastante inquietante. Terá Portugal capacidade para numa fatídica década ainda oculta por um futuro distante, poder receber 700.000. 1.500.000 ou ainda mais "judeus portugueses"? Os promotores do acto de reparação poderão garantir a completa transparência e lisura quanto aos critérios de atribuição de algo tão transcendentemente sério como a nacionalidade? Se é bem certa a previsibilidade da garantia da sobreposição dos princípios morais a factos ainda por comprovar e que desde logo podem displicentemente ser reduzidos a "números residuais e sem grandes consequências práticas", há que termos em conta a simples constatação de um dado que terá passado despercebido: trata-se já de uma questão geopolítica que o futuro poderá ou não confirmar. Mesmo esta incógnita é por si mesma um caso bastante plausível e na pior das hipóteses, a certeza não é fruto de qualquer delírio ou exagero. A prudência deve ser a norma.
Gostaríamos de saber algo mais. Quem poderá informar o país?