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Num post oportunamente aqui deixado pelo Samuel, foi sem surpresa que li o excerto de uma crónica de Soromenho Marques. A guerrilha mediática contra a chanceler alemã está no auge e é assim compreensível o recurso a todos os argumentos susceptíveis de convencerem a sempre facilmente impressionável opinião pública.
O texto de Soromenho é fantástico, apelando à memória de Bismarck e ao seu legado na construção do Estado Social. Dentro de dias e em desespero de causa, o distinto professor bem poderá apelar à memória de Sua Majestade o Kaiser Guilherme II, o soberano das massas com quem Bismarck teve sérios dissabores e que ao chanceler imporia inéditas medidas no campo da protecção social. Aliás, logo no início do seu reinado, o Kaiser afirmaria que "o assunto mais urgente é o alargamento da lei da protecção do trabalhador", projecto que foi aprovado em 1891, através dos Actos de Protecção dos Trabalhadores que em muito melhoraram as condições de trabalho, regularam as relações laborais e protegeram as mulheres e crianças.
Esta é uma constante da Alemanha que na Europa surgiu como um Estado após a derrota da França em 1871. Os pensadores que como Soromenho apontam a idade de ouro do alvorecer do Estado Social, deviam também explicar o porquê do inabalável apoio que mais tarde, as massas prestariam ao regime de Hitler. Uma das principais razões, consistiu na manutenção das inovações que vinham dos tempos de Bismarck e de Guilherme II, tendo o regime nacional-socialista habilidosamente envolvido os grandes princípios consagrados pela lei, em roupagens tecidas por uma propaganda incessante - e pela azáfama laborista da Kraft durch Freude - que muito desagradou aos liberais e conservadores alemães. Assim sendo, Soromenho vem involuntariamente apelar à memória do II e III Reich e precisamente daquilo que a par de umas potentes forças armadas - hoje bastante diminuídas na RFA - melhor caracterizava a desaparecida Alemanha que ia do Reno ao Niémen.
O Estado Social não parece estar em risco na Alemanha, nem os alemães admitiriam tal coisa. Dizer o contrário, é não conhecê-los. De lá surgem propostas de contratação de médicos portugueses, enfermeiros, assistentes sociais e outros trabalhadores destinados a garantirem a qualidade desse privilegiado e bem cuidado sector da sociedade alemã.
O caso alemão não pode surgir isolado e como oportuno bode expiatório para erros cometidos por outros e também, é fácil reconhecê-lo, pela degradação da qualidade dos políticos que sucederam a Helmut Kohl. No combate político "pela Europa" - que afinal sempre foi uma das obsessões alemãs, inclusivamente durante a II Guerra Mundial -, recorrer-se a sugestões de revanchismo hitleriano, é uma indecência que descridibiliza quem o faz. Outro aspecto a considerar e sem o qual qualquer tipo de análise pecará por muito parcial, consiste na situação de abissal desigualdade com que a Europa se bate no plano económico. Os tratados de comércio livre - a globalização - não atendem à concorrência desleal por parte de potências onde os "pressupostos sociais Bismarck-Guilherme II", são apenas uma miragem, quando não totalmente desprezados. Há uns dias, um intelectual dizia numa entrevista que ao chegar a Nova Iorque há uns meses, teve a estranha sensação de de se encontrar num local onde "algo está a terminar". Pelo contrário, ao visitar países asiáticos, verificou que esse algo era inverso, precisamente o início de um outro mundo. Resta-nos saber se a venenosa farpa lançada por um militante das lapidações de 1968, ao indisfarçadamente exultar com o sempre anunciado fim do odiado Ocidente a que pertence, poderá contribuir para um hiper-capitalismo global à chinesa. Contra isto, nem mil Panzerdivisionen de blindados Merkel, Kohl, Schmidt, Brandt, Adenauer, Bismarck ou Guilherme II poderão fazer seja o que for.
Para alguns a Europa ideal seria um espaço onde não existisse a Alemanha, mas este é apenas um sonho que bem depressa se tornaria num pesadelo. Devido aos humores franceses que sempre foram tão expansivos como os gases que fazem saltar as rolhas das garrafas de champanhe, Bismarck unificou a Alemanha pelo ferro e pelo sangue. Há que compreender que em pleno século XIX, outra solução não existia. Soromenho esquece-se desse pequeno detalhe, ficando-se nas entrelinhas pelo mercado comum alemão - o Zollverein - e pelos progressos legislativos da Época Guilhermina. Devia então divulgar alguns factos relativos à organização do trabalho e contratação, o ensino técnico e a formação profissional, o equilíbrio das contas públicas, os benefícios da poupança e a cuidadosa ponderação das políticas de investimento estatal. É que se não o fizer, Soromenho Marques arrisca-se a ser colocado naquele regimento de combativos militantes pelos cheques em branco passados a ineptos líderes políticos portugueses - até o sr. Sócrates que quando exerceu o poder foi um bem conhecido aliado de Merkel, vem agora dizer que há que colocar um travão aos alemães! - e claro está, a essa artificiosa forma de extorsão que são estes tão cobiçados mas mal explicados eurobonds, a mutualização da dívida. Tente dizer o que pretende aos alemães, talvez lhe ofereçam um pickelhaube. Evocar Bismarck supõe a sugestão de um Estado autoritário e Soromenho não hesita em apresentar a ameaça de um "marxismo de legítima defesa", afinal o bicho-papão que a Europa já experimentou e que o filósofo talvez entenda como solução: um ansiado regresso ao passado.
A questão será sempre a mesma: onde pensam ir buscar o dinheiro? Às rotativas?