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O último painel das Conferências do Estoril 2013, introduzido por László Cebrian, da Fundação Cascais, terá sido dos que contou com mais audiência, e não era para menos, tendo em consideração os intervenientes de peso: Viktor Orbán, o Primeiro-Ministro da Hungria que levou a cabo a revisão da Constituição que muita polémica tem alimentado, e Frederik de Klerk, antigo Presidente da África do Sul, peça essencial no processo que levou ao fim do apartheid e Prémio Nobel da Paz em 1993.
O discurso inicial de Orbán foi curto, incisivo e sistematizado, baseando-se na partilha de seis teses/ideias:
1 – A dívida de todos os países da União Europeia totaliza 11 triliões de euros. Os 17 países da zona euro geram 1,8 biliões de euros de dívida todos os dias, o que significa 400 biliões de euros de dívida por ano, e isto para poder continuar a financiar em larga medida as despesas com o chamado Estado Social. A estrutura financeira europeia é insustentável e estamos a sofrer crescentes pressões em virtude dos desafios demográficos, pelo que a Europa corre o risco de não se conseguir manter sequer biologicamente.
2 – Apesar de esforços significativos, os líderes europeus não têm sido capazes de alterar este cenário porque a sua resolução implica grandes riscos que podem levar a uma insustentável instabilidade social. O conceito de Estado Social como o conhecemos acabou. Para superar este modelo assente em dívida devemos construir um workforce state e substituir os direitos adquiridos pelo mérito. Apontando as reformas na Hungria como exemplares a este respeito, Orbán salientou a substituição de um sistema fiscal complexo e confuso por um baseado numa flat tax e a reestruturação do sistema educacional que veio dar particular relevo ao ensino vocacional, procurado adequar o ensino ao mercado de trabalho.
3 – Existe uma dicotomia entre liderança institucional e liderança pessoal. A União Europeia é baseada na primeira. Estes dois tipos de liderança devem ser equilibrados. Se houver um problema quanto à primeira, pode ocorrer instabilidade, e neste caso será necessário que existam fortes líderes pessoais, visto que as instituições não serão suficientes para superar a crise. Os problemas causados pelo desequilíbrio entre os dois tipos de liderança podem resultar em crises graves.
4 – A mudança de valores na Europa está relacionada com a crise. O mainstream na União Europeia postula que o reforço das identidades nacionais aumenta as possibilidades de conflitos. Uma das conclusões principais da crise é que este é um entendimento errado. Uma Europa forte só o pode ser com base em nações fortes. Relembrando Robert Schuman, ou a Europa é cristã ou não haverá Europa.
5 – É necessário aumentar a cooperação entre os países fora da zona euro, que devem poder implementar as políticas fiscais que desejem e harmonizar-se entre si.
6 – Depois da crise nada será como antes, mas apesar do nosso esforço, a recuperação será um procedimento muito moroso. Foi um erro histórico os países da antiga órbita não terem entrado logo na União Europeia no início dos anos 90, visto que a União teria aproveitado nessa altura o potencial de crescimento daqueles países e hoje enfrentaria a crise em melhor posição. O alargamento aos Balcãs deve ser uma prioridade para a União Europeia.
No período de debate, que foi bastante vivo e interessante, Orbán assinalou também que esta é a maior crise que viu na sua carreira política, que é preciso envolver as pessoas para a resolver, o que implica tratar os sentimentos negativos que perpassam grande parte da Europa. Salientando que a Hungria e Portugal enfrentam desafios semelhantes, o Primeiro-Ministro húngaro afirmou que ao criar-se uma moeda comum, quando a crise surge não se pode parar o processo de integração, pelo que há que enveredar por uma política fiscal comum. Isto revela o quão importante para o nosso futuro foi a decisão portuguesa de aderir ao euro, pois não podemos sair desta, não podemos desvalorizar a moeda e temos de aumentar a competitividade sem possuirmos uma série de instrumentos que muito o facilitariam, pelo que a única opção acaba por ser seguir em frente e tentar usufruir das hipóteses criadas pela zona euro. A lição a retirar das situações de Portugal e Espanha é a de que quando os países se juntam ao euro e não são suficientemente desenvolvidos, mais cedo ou mais tarde vão sofrer. Por isto mesmo, para Orbán a Hungria não deverá aderir ao euro sem ter no mínimo um PIB de 90 por cento da média europeia. Mas por ora os países que não fazem parte da zona euro devem ter mais espaço de manobra para criar as suas próprias políticas económicas e fiscais, o que tem sido constantemente negado pela Comissão Europeia.
Questionado a respeito das iniciativas que estão a ser tomadas para combater a xenofobia e o racismo na Hungria, o antigo combatente contra a hegemonia soviética respondeu que apenas conhece uma política efectiva, a tolerância zero, e que o conceito de dignidade humana é uma peça angular da Constituição e do sistema legal do seu país, embora tenham ido mais longe que os restantes países Europeus ao considerarem que para além da dignidade humana individual existe também a dignidade humana das comunidades. Isto significa que na Hungria se pode exigir legalmente a reparação em relação a uma ofensa à dignidade humana por ser pertencer a uma comunidade. Ademais, também que para evitar o extremismo à direita é necessário que exista um centro-direita cívico e cristão.
Destaque ainda para um momento que gelou a sala, mas permitiu vislumbrar a craveira de estadista convicto que muitos reconhecem a Orbán, quando alguém lhe perguntou, de forma muito pouco diplomática, qual o seu problema com homossexuais e pessoas sem-abrigo. Resposta do Primeiro-Ministro húngaro: "O meu problema com pessoas sem-abrigo é que não têm casa. A Constituição da Hungria obriga a que procurem abrigo, e em resultado disto temos um elevado número de abrigos públicos e um reduzido número de pessoas sem-abrigo. Quanto a homossexuais, não percebo a questão, mas se pensa que existe algum sentimento negativo contra estes, permita-me apenas salientar que a Constituição afirma simplesmente que o casamento é entre um homem e uma mulher, e esta é uma tradição com milénios de que nos orgulhamos e que quisemos inscrever na nossa Constituição. É algo único na Europa." Posteriormente mencionou ainda que o mainstream do pensamento político europeu vislumbra um progresso na transição da vida cristã para a secular, dos sentimentos nacionais para as comunidades internacionais e de valores familiares para algo misto e o que se fez na Hungria foi recuperar e sublinhar a importância dos valores tradicionais da família como o núcleo mais importante da sociedade e um nacionalismo saudável. "Somos uma nação orgulhosa e queremos manter a nossa identidade, mesmo fazendo parte da União Europeia", concluiu Orbán, que deixaria ainda como mensagem aos jovens presentes a necessidade de cada um definir os seus objectivos de vida e lutar por estes, pela sua visão do mundo e pela Europa em que acredita.
No que concerne à intervenção de Frederik de Klerk, em minha opinião não tão interessante como a de Orbán e mais permeada por um certo tom diplomático, consubstanciou-se numa passagem em revista da História da África do Sul e no seu testemunho sobre o fim do apartheid. O antigo Presidente da África do Sul salientou que o fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética tiveram um impacto crucial no processo de transformação do seu país, levando todas as partes envolvidas a perceber que não podia haver uma revolução ou uma solução armada para os problemas que enfrentavam, restando sentarem-se à mesa das negociações e alcançarem um entendimento.
Adepto do Consenso de Washington, não deixou de assinalar que a África do Sul nada teve a ver com os factores que conduziram à crise financeira de 2008, mas esta teve um impacto negativo na África do Sul ao sabotar a causa do mercado livre e da disciplina fiscal, reforçando os que acreditam na propriedade pública e numa grande dimensão de intervenção estatal.
Frederik de Klerk declarou também que os líderes políticos têm grandes responsabilidades por deverem ter a habilidade e a capacidade de melhorar as vidas dos cidadãos, embora frequentemente os levem por um sentido completamente errado, que há uma premente necessidade de cooperação que possa dar resposta a problemas globais, e a respeito da União Europeia afirmou que esta lhe parece "um híbrido entre uma federação e uma confederação, um híbrido que não pode ter sucesso."
A concluir, destaque ainda para a resposta do laureado com o Prémio Nobel da Paz em 1993 a respeito da possibilidade de um novo conflito racial após a morte de Nelson Mandela: "O apartheid morreu, não será revivido na África do Sul. Acredito que o maior legado de Mandela foi o seu compromisso com a reconciliação entre todos para que sejam cidadãos com os mesmos direitos. Acredito que quando ele morrer, este legado unirá todos os sul-africanos no luto por um dos maiores sul-africanos de todos os tempos."
(publicado originalmente no Cables from Estoril)