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Até sempre, pai

por Samuel de Paiva Pires, em 26.05.13

 

Não consigo precisar com exactidão há quanto tempo comecei a pensar de forma séria sobre questões existenciais e, portanto, a condição humana e a sua fragilidade. Recordo-me de pensar, quando era criança, que era eterno e, por conseguinte, as pessoas que me são queridas, os meus familiares, eternos seriam. Entretanto cresci e na idade adulta, quando me tornei mais independente e autónomo, comecei a pensar que mais cedo ou mais tarde teria de me começar a despedir de algumas pessoas.

 

A par desta consciencialização, ou talvez em virtude desta, surgiu em mim, há algum tempo, a necessidade de pensar a minha relação com Deus e a minha posição em relação à religião – entre outras coisas, também por saber do conforto que aos crentes esta possibilita em face da finitude. Entre as várias leituras que tenho feito, lembro-me de ter começado a ler, embora não tenha terminado, A Morte, da autoria de Maria Filomena Mónica. O pai da autora era natural de Águas Belas, uma aldeia pertencente ao concelho de Ferreira do Zêzere, e ali tiveram lugar as cerimónias fúnebres daquele. A Igreja sita nesta mesma aldeia está patente em algumas das minhas mais remotas memórias de infância, por ali passar obrigatoriamente com o meu pai a caminho de casa dos meus avós. Por vicissitudes várias estranhas a este propósito estive não sei bem quantos anos, mas creio que 8 ou 9, sem praticamente ali passar. Tantos quantos os anos que estive sem ver o meu pai, de seu nome Diamantino Pires. Foi já aos 18 anos de idade, pouco antes de entrar para a faculdade, que voltei a passar ali e foi inclusive ali perto, mais concretamente junto da Igreja de Ferreira do Zêzere, que me encontrei com o meu pai após aqueles anos. Procurámos, de alguma forma, recuperar o tempo perdido e foi assim que voltei a passar frequentemente pela Igreja de Águas Belas a caminho de casa dos avós.

 

Pelo meio, a minha avó havia já falecido e eu, infelizmente, não estivera presente nesse momento. Estive, mais tarde, com o meu pai, tia e prima junto da sua campa, ao lado daquela que um dia será do meu avô. A ordem natural das coisas leva-nos, claro está, a pensar que serão os mais velhos a deixar-nos primeiro. E a observação das fragilidades a que estão sujeitos, especialmente em virtude da provecta idade que vão alcançando, começa a pairar-nos cada vez mais na mente, de modo que de forma latente estamos sempre a aguardar o fatal telefonema.

 

Assim foi. Só estava longe, muito longe sequer de imaginar que seria o meu pai a ausentar-se, com apenas 58 anos, sem que nada o deixasse antever, sem que sequer tivéssemos tempo de nos despedir, sem que sequer lhe pudesse dizer que o amo. O meu pai, que tanto orgulho tinha em mim, talvez nunca tenha sabido do orgulho que eu tenho nele, de como admiro o seu percurso de vida, as coisas que fez e o seu espírito de aventura. Estando a estudar em Coimbra aquando do 25 de Abril, cansou-se das cargas policiais e decidiu enveredar pela carreira militar, tendo sido paraquedista. Após o conturbado ano de 75, acabou por deixar a tropa e decidiu andar durante uns anos a viajar pelo mundo enquanto trabalhava em navios de marinha mercante. Não sou capaz de enumerar todos os países, cidades e portos por onde passou e, infelizmente, sei poucas das milhentas histórias que certamente teria ainda para me contar e aos futuros netos. Em meados dos anos 80 casou-se com a minha mãe e estabeleceram-se na Islândia, onde eu vim a nascer. Antes de regressarmos a Portugal, tinha eu pouco menos de um ano de idade, ainda teve tempo para aprender a pilotar pequenos aviões. Entretanto fundou com o meu tio uma empresa de construção civil, onde esteve até há alguns anos, antes de retornar a Ferreira do Zêzere e ao campo, onde além de cuidar do que à nossa família pertence, ainda ajudava, amiúde, vizinhos e amigos. A minha avó sempre foi tida por todos como uma santa, e ainda é com muita frequência que oiço pessoas contarem episódios na primeira pessoa em que a minha avó teria ajudado a alimentá-los e os teria acarinhado. Da mesma maneira, o meu pai era genuinamente boa pessoa, como já há poucas, e entregava a sua generosidade a todos quanto podia e o melhor que podia.

 

Depois da paixão pelos ares e pelos mares, porém, surgiu-lhe a paixão pelas motas, que lhe valeu uns quantos acidentes graves que o levaram a retornar à primeira paixão, acabando por se tornar parapentista. Talvez tivesse preferido deixar a nossa companhia enquanto viajava pelo ar. Sei bem da sensação de paz que se sente lá em cima quando apenas se ouve o vento, e da de liberdade que nos perpassa o corpo e o espírito quando sentimos que nos podemos deslocar em qualquer direcção sem nada encontrarmos a obstar-nos o caminho. Mas foi em terra, no mesmo sítio que o viu nascer e crescer e na mesma data do falecimento da minha avó, 22 de Maio, que o meu pai deixou a existência para ascender à essência, ao princípio e ao fim de tudo. Do pó vimos e ao pó retornamos, deixando a matéria para vivermos apenas na memória dos nossos entes queridos.

 

Só gostava de ter tido mais tempo contigo, meu pai, e especialmente de me ter podido despedir de ti e dizer-te o quanto te amo ainda em vida. Obrigado por tudo. Até sempre, pai. 

publicado às 19:10


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