Tal como o ébrio que tropeça pelo caminho, não se apercebendo do seu desiquilíbrio, também aquele que está agrilhoado às paixões da alma constrói a realidade na base da projecção da sua visão distorcida, acontecendo que este que se deixa dominar pelas paixões, deixa de ver a verdade, passando a ver apenas a sua própria paixão.
O ‘amor’, conceito utilizado como argumento central na recente onda de legalizações estapafúrdias que varre o Ocidente não passa de uma construção ideológica que ganha força nas paixões que enebriam os incautos. Estas paixões, hoje mais do que nunca, são meticulosamente estudadas, exploradas e comercializadas. As sensibilidades são transpostas para uma tabela de zeros e uns para serem subsequentemente vendidas pelo menor denominador comum.
A política encontra-se submetida, antes de mais, aos partidos políticos que concretizam a sua engenharia social através destes processos mecanizados. Antes de mais estes criam artificialmente as paixões, e depois despendem os seus esforços e recursos alimentando estas mesmas paixões (traduzindo-as em votos), manipulando a generalidade do debate público e levando-o até à quase exaustão, ao mesmo tempo que o esvaziam de substância.
No entanto, este debate evita o apelo ao intelecto porque se situa numa dimensão ideológica. Ele é alimentado exclusivamente pelas paixões. Como diz Olavo de Carvalho, no seguimento do seu famoso debate com Aleksandr Dugin, “o discurso do ideólogo não prova: dá ordens, camuflando-as, para não ofender os mais sensíveis, numa imitação de juízos da realidade”.
Foi neste contexto que, por exemplo, a discussão sobre o casamento homossexual e a co-adopção saiu da órbita dos princípios para entrar numa esfera subjectiva e individualista em que da excepção se fez a norma e em que o erro foi sendo progressivamente relativizado até que fosse finalmente aceite. Desligado da razão, o debate transformou-se apenas na ridicularização de posições adversárias, arremessando-se disparates e ataques ad hominem disfarçados de argumentos, na tentativa vã de desqualificar a realidade indesmentível dos factos.
“A prova só é possível quando você desce do patamar semântico das discussões correntes, estufado de pressupostos oculltos e conotações nebulosas, desmembra tudo analiticamente em juízos explícitos e os confronta com os dados iniciais, universais e auto-evidentes, da existência humana.” (idem)
O resultado é a emergência de uma poderosa massa amorfa constituída por uma multidão encandeada pela ilusão da individualidade que mais não faz do que repetir mecanicamente aquilo que é ditado por uma pérfida elite de interesses obscuros. E é no mínimo paradoxal que esta multidão defina explicitamente a Igreja Católica como a inimiga por excelência, acusando esta de sufocar o livre arbítrio. Reparem bem no quão absurda é esta situação! Uma multidão de carneiros uniformizados exclamando num coro de indignação que os cristãos não são capazes de formular uma opinião própria!
Como referi anteriormente, trata-se de uma multidão aprisionada pelas paixões da alma que contrói uma realidade, neste caso o ‘amor’, distorcido pela sua visão corrompida da verdade. Transcrevo a este propósito um excerto de C. S. Lewis, na introdução de The Screwtape Letters, em que este aborda a questão das paixões e da individualidade, e nos apresenta uma distinção entre diferentes conceitos de amor:
"Mesmo no contexto de vida humana, vemos a paixão dominar (quase mesmo devorar) uma pessoa à outra. Isto faz com que toda a vida emocional e intelectual do outro sejam a tal ponto apagadas que se reduzam a meros complementos da própria paixão. O indivíduo passa então a odiar como se o agravo fosse sobre si mesmo, devolver ofensas como se ele tivesse sido ofendido, enfim, tem sua individualidade totalmente dissolvida, assimilando desta forma a do objecto de sua paixão. Embora na Terra chamem isto de "amor", imagino que passe longe do conceito de amor que Deus nos legou (ver I Co 13). No Inferno, identifico este tipo de sentimento com a fome; e neste Inferno, a fome é mais feroz e a satisfação desta mais viável.
Em síntese, Deus se compraz em pedir ao homem sua individualidade, mas tão logo o homem a cede, o maior prazer de Deus é devolvê-la aprimorada. Deus bate à porta, ao passo que o Diabo a arromba. O Espírito Santo enche, os diabos possuem."
A verdade só pode portanto existir em plenitude se aliada à liberdade, porque a essência da verdade é o facto de ela ser proposta e poder ser seguida; ela não pode nunca ser imposta. Mas hoje, em plena ditadura do politicamente correcto, não só se comete o erro de no erro persistir: o erro é-nos coercivamente imposto, sufocando a verdade, levando à proliferaçào das paixões desordenadas.