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Moçambique: o roubo

por Nuno Castelo-Branco, em 29.05.13

 

O meu pai deixou-nos uma ainda incontável quantidade de caixas, envelopes e dossiers onde ao longo de décadas acumulou todo o tipo de papéis, aliás metodicamente organizados. Hoje encontrei um envelope com postais de "Vistas de Lourenço Marques" e foi um prazer reler alguns daqueles que nos tinham sido endereçados há muitos anos. Escritos por amigos ou familiares, são testemunhos de momentos difíceis passados num território cuja administração passou a ser exercida de uma forma totalmente arbitrária, bem diferente daquela a que as populações estavam habituadas. O exemplar que hoje é aqui postado, foi escrito por uma irmã da minha avó, de seu nome Argentina, mas para nós, a tia Mimi: 

 

"Querido sobrinho Vítor

 

Mais um ano para a conta e oxalá que assim seja por muitos e muitos anos (1). Que o dia 27 seja passado com saúde, óptima disposição e alegria na companhia dos familiares. Um grande abraço nosso de parabéns. Estão todos bem aí em casa? Esperamos que assim seja. A lista (2) da Leta (3) já saiu, mas na vistoria da Ponte de Cais confiscaram a máquina de lavar mesmo estando autorizada. Refilou forte e feio, de nada adiantou mas já reclamou por escrito. As reclamações deste género é mato. Isto tudo é um pandemónio. A lista da Emília  (4) também já saiu e, como particular, todos os eléctricos domésticos foram cortados, incluindo o fogão, máquina de costura, rádio gira-discos e uma ou outra peça de mobiliário. É aguentar e olhar em frente de cara alegre, que mais se pode fazer? Envio este postal como recordação da nossa terra. Já não há disto à venda. 

Saudoso abraço à Ana Maria e beijinhos à Angelinha. Abraços aos miúdos. Para ti mais uma vez, as nossas felicitações e um abraço amigo dos tios Mimi e António

 

Maputo, 19 de Junho de 1977"

 

Este ambiente de desbragado saque, não foi uma novidade do pós-independência. Tinha começado durante a administração conjunta daquilo a que então se denominou de Governo de Transição, nominalmente sob a tutela de um até então desconhecido camarada que Lisboa despachou para Lourenço Marques, o "comandante" Vítor Crespo, personagem que felizmente não chegou ao ponto das inenarráveis baixezas de um outro futuro "Almirante de aviário", o Rosa Coutinho. Igualmente "aviado em Almirante", o simulacro de governador-geral  rapidamente tornar-se-ia objecto de todas as conversas, mimoseado pela explícita alcunha do "Vítor Copos". De forma a tornar tudo mais óbvio, o "Copos" do Crespo, estava justa ou injustamente na mesma linha do certíssimo "Tantos" carimbado na pele de um certo advogado Almeida, nada dado a santidades. Há alegações que para sempre ficarão coladas à reputação das duvidosas celebridades.

 

Na tropa portuguesa grassava uma total indisciplina. De imediato cessou qualquer sentido de hierarquia, apresentando-se miseravelmente "uniformizada" nas avenidas da capital de Moçambique e sempre pronta para qualquer grosseria. No aeroporto Gago Coutinho, os guedelhudos militares de palito no canto da boca e ameaçadora G-3 à bandoleira, submetiam aqueles que partiam para a Metrópole a todo o tipo de vexames, esvaziando malas e carteiras, confiscando jóias pessoais, por mais insignificantes que estas fossem. Agora sim, os espoliados eram mais que nunca, portugueses de 2ª classe.

 

Nas citadas "listas" eram riscados items após items, alegando-se "duplicação". "Tens duas cadeiras destas? Só precisas de uma, esta fica cá! És viúva? Então para que precisas tu de duas alianças? Buíça (5) uma delas!" Nos já então suprapatéticos departamentos do Estado de Moçambique - era assim que há muito a antiga Província Ultramarina oficialmente se denominava -, as exigências burocráticas foram esmagadoras e impiedosamente acrescidas de custas, autenticações e reconhecimentos, atestados para isto e para aquilo, enfim, um ror de enormidades que serviam para dificultar ao máximo, a já muito precária vida dos aflitos e indefesos requerentes. A finalidade de todo o processo era o despojamento total. Há que ter em atenção a existência de uma azáfama censória  controleira dos desabafos de uma imensa mole de gente encurralada pelos seus próprios compatriotas, assim se explicando esta série de postais enviados dentro de discretos envelopes.

 

É este um triste episódio praticamente desconhecido dos portugueses europeus e convém ir divulgando estes postais - o meu pai também arquivou interessantíssimas cartas -, por mim já muito abusivamente promovidos a documentos. Classificados como impublicáveis, alguns dos testemunhos permanecerão guardados, sendo o seu conteúdo deveras embaraçoso para a reputação de muita gente que ainda bem viva, é pesadamente responsável pelo mais vergonhoso e desnecessário desastre da nossa história. 

 

 

(1) A tia Mimi (Argentina) refere-se ao dia 27 de Junho, aniversário do meu pai.

(2) A "lista" era uma estulta invenção das autoridades portuguesas, escandalosamente ansiosas por agradarem aos seus novos comparsas - tão ineptos quanto os recém-chegados de Lisboa -  que fizeram sentar no "Governo de Transição". Sob a chefia da dupla Crespo/Chissano, este executivo logo deu início a uma torrente legislativa, ousando estabelecer uns inacreditáveis "pontos prévios": consideravam estes que os bens materiais dos colonialistas - no nosso caso, cinco gerações! - tinham sido obtidos ao longo de "500 anos de exploração dos moçambicanos  e por isso mesmo deveriam em parte ficar na posse do povo de Moçambique". Em  conformidade, o "governo Crespo/Frelimo" significou a despudorada rapina dos bens móveis daqueles que então legalmente passaram a ser considerados como "residentes" (!) e que ao pretenderem sair do país, tinham de pagar pesados impostos, taxas e tarifas, ficando à total mercê dos apetites ou fúrias de quem controlava a fiscalização. Estes abusos consistiram em actos em tudo semelhantes àqueles a que as autoridades do Reich submeteram os concidadãos judeus que nos anos 30 quiseram atempadamente deixar a Alemanha. Após a independência, o absoluto à vontade das autoridades permitiu-lhes passar da usurária taxação, ao puro e simples confiscar de tudo aquilo aparentemente apetecível, por mais risíveis e grotescas que fossem as reivindicações. Tendo aprendido os complicados e copiosos meandros da burocracia portuguesa, logo inventaram uma infinidade de requerimentos a que forçosamente eram anexadas várias cópias de uma minuciosa lista dos bens a embarcar, ou seja, o normal recheio de uma casa: móveis, bibelots, tapetes, brinquedos, talheres, electrodomésticos, louças, roupas, etc. Não esqueçamos uma colossal quantidade de livros que após a consumação do saque foram rasgados, servindo as suas páginas para embrulharem por ruas e avenidas fora, o amendoim torrado, a castanha de caju e as maçarocas assadas, até servindo para o polimento de sapatos. Era esta, a "nova cidade". 

(3) A Leta é a mulher de um primo direito da minha mãe. 

(4) A Emília, a nora da tia Mimi.

(5) Buíça quer dizer "passa para cá!" 

 

Mãe e filhas, cinco luso-moçambicanas espoliadas pelo sistema das "listas". Da esq. para a dir., sentadas: Bolívia (n. LM, 1915), a minha bisavó Argentina (n. LM, 1896), a minha avó Irlanda (n. LM, 1916). Em pé, Leontina (n. LM 1920) e Argentina (n. LM, 1917), a autora deste postal. Fotos dos finais dos anos 80, em. S. João do Estoril

publicado às 15:00


2 comentários

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De José Lima a 29.05.2013 às 15:41

A sua tia, em 1977, ainda lá estava? Isso é que era coragem!
Um tio meu também cismou de ficar em Moçambique depois de 1975; teve de fugir o mais depressa que pôde, após ter apanhado o que terá sido o maior susto da sua vida: na repartição onde trabalhava, um "utente" mal disposto encostou-lhe uma metralhadora à barriga; a coisa esteve mesmo por um fio...
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De Nuno Castelo-Branco a 29.05.2013 às 17:52

José Lima, esta gente sempre viveu em Moçambique, ali tendo nascido toda a família, 4 gerações. Os meus trisavós estabeleceram-se em Lourenço Marques em 1885 e  o José pode imaginar o que seria aquele lugarejo antes da chegada da expedição de Mouzinho de Albuquerque. Como sabe, era um local inóspito, muito perigoso. 
Nos anos noventa, os trisavós vieram à Europa - estiveram na Alemanha, Áustria-Hungria e Itália - e de regresso "às Áfricas", a minha bisavó nasceu em Lisboa (1896). Uns meses depois já estava em LM e dali jamais saiu até 1977. Ela, os filhos e todas as filhas - exceptuando a minha avó que por pressão meu pai, veio antes - tentaram resistir, desejando ficar na terra que também era sua. Foi impossível, nem sequer podiam sair à rua, interpeladas minuto a minuto por patrulhas, comités de toda a ordem, vigilantes e esbirros da SNASP. A penúria da população era extrema, a carestia inacreditável, havia falta de tudo. Se a isto acrescentarmos a violenta histeria dos novos governantes, o quadro fica quase completo e para cúmulo, logo começou a guerra civil, acompanhada pelas fomes e epidemias. 
Vieram para Portugal e nunca mais voltaram a Moçambique. Há uns cinco anos, o irmão mais novo da minha avó decidiu que queria morrer e ficar enterrado na sua cidade e assim foi. Já morreram todos.

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