Agora sim, depois de ter assistido à repetição e tirado algumas notas, me presto a fazer uma breve análise do que achei mais interessante neste debate.
Quanto à afirmação de
Medeiros Ferreira de que o Rei traz dentro de si o princípio da desigualdade entre os cidadãos de um país, já num
post detalhado tratei desta questão.
Em relação ao argumento da hereditariedade, o
professor Maltez deve ter assustado muita gente quando perguntou se queriam que começasse a apontar quantos no parlamento são netos, bisnetos, trisnetos de longas tradições dinásticas e hereditárias. É uma daquelas propagandas demagogas do republicanismo português, o iludir o povo com a igualdade e com o francesismo de que todos somos iguais, pelo que qualquer um pode ser chefe de estado. Acreditam mesmo nisto? É que na prática a teoria é outra, como diz o professor Maltez, já que não há coincidência entre a lei escrita e a prática da lei.
Nesta República os Presidentes da República continuarão a ser "históricos" dos dois partidos do centrão (até aposto que Durão e Guterres estarão já na calha para serem Presidentes da República), e basta circular entre os meandros do poder e da sociedade lisboeta (que concentra o poder político de Portugal), para perceber que são todos "gente de bem" e de longa tradição hereditária quanto à presença na teia relacional do poder que é o actual estadão. A meritocracia há muito que se perdeu, e os canais de acesso ao poder e de mobilidade social estão praticamente vedados e restritos a uns poucos, os das castas do regime, e bem ilustrativa disto é a afirmação de Luís Coimbra de que "estamos numa Europa sem europeus, porque já quase ninguém vota, e estamos numa democracia sem povo, porque o círculo do poder está fechado".
Assumo-me particularmente elitista realista e aristocrático idealista neste ponto. Mas antes que comecem aí a bradar aos céus, vou explicar o que quero dizer, é que tenho que necessariamente ser elitista de forma realista, pois todas as teorias das elites nos explicam que sempre houveram, há e sempre haverão elites, e quanto a isso sou extremamente realista. Não sou como os demagogos que se assumem pela igualdade entre todos, mas sabem que se mantêm no topo da "cadeia" e metem a igualdade na gaveta todos os dias, porque sabem que eles constituem a elite do regime, apesar de não gostarem de ouvir isso. E sou igualmente aristocrático na medida em que considero que só aos
aristos, isto é, os melhores, deveria ser permitido o exercício da arte e ciência da polis, o que só pode ocorrer num sistema verdadeiramente meritocrático e desprendido de caciquismos e pseudo-elitismos, como é típico em Portugal, onde as elites pudessem ser elites na verdadeira acepção da palavra, que só faz sentido se conjugada com a noção de
aristos. E quanto a isto, a questão nem se põe entre república e monarquia, põe-se que de forma realista, e como mostra a História, dificilmente este idealismo se poderá alguma vez passar em Portugal, como tive oportunidade de demonstrar, incorrendo na incorrecção, passe a expressão, de me citar a mim próprio:
É o mesmo sistema que se verificou entre 1877 e 1900 em Portugal, durante o período do Rotativismo entre Progressistas e Regeneradores (período que alguns autores consideram extensivo ao prévio período do regime de Fusão e ao posterior período da Monarquia terminal), onde já se verificava esta tendência e outras bastante actuais como o facto de os líderes dos dois partidos se alternarem na liderança do governo e do Crédito Predial, à semelhança do que acontece hoje em dia com a CGD, ou o facto de determinados indivíduos e famílias, se prolongarem indefinidamente através do património genealógico na teia relacional de influências que é o aparelho estatal, aqueles que segundo Dostoievski pertencem ao Estado Superior, esse conceito abstracto e artificial de diferenciação dos homens, que reprime a meritocracia e caracteriza o Portugal dos pequeninos com a mania das grandezas, em que reina a incompetência e a demonstração daquilo que não se é, numa permanente verificação do que Pessoa sumarizou na ideia de que “Não há nada mais provinciano do que tentar ser cosmopolita”.Mas continuando, guardo com especial relevância a eloquência de Teixeira Pinto ao proferir que contrapondo 800 a 100 anos de História "Um povo sem memória é um povo sem futuro", argumento a que Medeiros Ferreira se rendeu. Assim é de facto, o século XX, desde 1910, conseguiu apagar a nossa verdadeira memória enquanto nação. Esteve sempre ao melhor nível, compenetrado e com um olhar gelado, quase intimidador. Uma surpresa agradabilíssima, até pelo conhecimento de teoria política que demonstrou, citando inclusive Maurice Duverger, politólogo francês que afirmou que a mais pura monarquia no mundo contemporâneo é a Norte-americana.
Touché. É o único tipo de alternativa que ponho com igual seriedade e convicção quanto a opção monárquica, nisso assumo-me como presidencialista, e em certos casos, até federalista. Mais do que presidencialista, e por vezes federalista, de forma ainda mais importante, assumo-me como um bicamaralista, passe o neologismo. Se há algo que ainda se pode fazer para salvar o actual regime é instituir uma segunda câmara parlamentar com um papel essencialmente consultivo, que se dedique à fiscalização do poder e assuma os verdadeiros desígnios do superior interesse da nação, bem na senda dos checks and balances de Montesquieu, e da ideia de Popper de que em democracia não interessa saber quem manda, mas sim como controlar o poder de quem manda.
O
Daniel Oliveira que se orgulha de ter um Presidente da República filho de um gasolineiro, afirma que nascermos livres e iguais é a base da democracia electiva. Não sei se o Daniel já teve contacto com a escola norte-americana de ciência política contemporânea, nomeadamente sobre a teoria da democracia, em especial, Schumpeter, Dahl, Rustow, Larry Diamond, Huntington. É que há uns quantos pontos essenciais a ter em vista quanto ao conceito de democracia.
Para começar, temos que deixar de falar nesta democracia de "abóbadas fechadas", como diz António Reis, e de fundamentos filosóficos utópicos, pois há que concretizar no papel e na cabeça das pessoas o que é a democracia. Confundir democracia com eleições, tal como se faz por cá, leva a graves deturpações. E parece-me que também António Costa Pinto, que até dá aulas num mestrado de Política Comparada, ou não sabe bem o que anda a fazer, ou sabe perfeitamente que deturpou aquilo que muito bem conhece, ao afirmar que do ponto de vista da teoria política a república é o regime mais democrático (tal como
O Corcunda, também não dei por Costa Pinto ter sido nomeado curador da disciplina).
É que o ramo da ciência política que é a política comparada, dedica-se essencialmente ao estudo comparado da democratização, um área que teve particular utilidade durante a Guerra Fria, partindo desde logo de uma distinção fulcral entre democracias electivas e democracias liberais, contributo fundamental de Larry Diamond.
Confundir democracia essencialmente com eleições tem levado a deturpações, a mostrar que o professor Maltez está carregado de razão quando afirmou que os piores totalitarismos vieram de repúblicas. É que só para citar uns exemplos actuais, a Venezuela ou o Paquistão são efectivamente democracias, mas democracias electivas. Schumpeter e Dahl definiram um grupo de princípios mínimos para considerar uma democracia como electiva, nomeadamente consubstanciando-se numa série de características como a existência de uma sociedade civil, direitos, liberdades e garantias, liberdade de expressão, existência de oposição político-partidária e possibilidade de livre competição pelo voto. Quanto às verdadeiras democracias liberais contemporâneas, já parte da acepção de cada um do que pode ser adicionado a este ponto de partida.
Qualquer um que estude esta área sabe que não se confunde o conceito de democracia com definições de regimes, não há mais democracia numa república do que numa monarquia, e vice-versa, pelo que António Reis incorre numa tremenda demagogia de efeitos propagandísticos nefastos quando afirma que referendar a repúbica seria como referendar a democracia, a mostrar como o espírito ditatorial está bem impregnado nos homens do regime, de tão bem instalados que estão, cada vez mais autistas em relação às necessidades da nação.
António Reis foi aliás bastante profícuo em afirmações interessantíssimas, como a analogia da abóbada, para demonstrar que até países muito pluralistas têm um défice de legitimidade democrática. Mas alguém nos quer fazer crer que o Reino Unido ou Espanha são menos democratas que nós? Ou colocando a questão de outra forma, alguém acredita que este regime é mais democrático que o desses países? Talvez seja este o problema do regime actual, a carga que é colocada sobre a aparente democraticidade do sistema supostamente conferida pelo Presidente da República. O problema é que é só mesmo aparente, até porque não há uma verdadeira consciencialização e implementação da prática democrática pelos portugueses, e prova disso são as constantes demonstrações dos pequenos ditadorzinhos e salazares que vivem dentro de cada um de nós, os tais micro-autoritarismos sub-estatais de que o professor Maltez fala, e que todos sabemos bem que nos caracterizam enquanto povo de matriz política essencialmente absolutista, que começam no porteiro ou segurança de uma qualquer empresa ou ministérios, e só terminam bem lá em cima ao nível dos administradores e governantes.
António Reis seguiu ainda com a linha de que o seu racionalismo não cede perante afectividades, sentimentos e critérios estéticos, respondendo ao professor Maltez que os regimes não se podem deinir na base do amor. Bom, de facto só posso tirar uma conclusão disto, parece-me que os livros que já li sobre a maçonaria, que aparecem cheios de ideais, sentimentos e uma enorme carga simbólica e estética que impregna a ciência arquitectónica, especialmente quanto ao GOL, ressalvando a sua preocupação com a fraternidade entre a humanidade, devem ser uma falácia total. E mais não me atrevo aqui a dizer, porque falar da maçonaria é sempre um assunto delicado, como todos sabem.
Quanto a Ribeiro Telles, um verdadeiro monárquico com um elevado sentido de estado, note-se a extraordinária afirmação de que a ética republicana é simultaneamente a monárquica, simplesmente não assumindo é a república. É isto que deve deixar muita gente confusa que não entende porque é que os monárquicos são também republicanos, é que assim não pode deixar de ser, para voltar a haver monarquia terá que ser sob a forma republicana do Estado, a tal república com Rei tão falada no programa.
Só para finalizar, realço ainda as palavras de António Sousa Cardoso quanto às críticas por parte dos republicanos por os monárquicos se basearem em sentimentos, e por depois criticarem que a maioria dos países na lista dos 10 ou 20 mais desenvolvidos do mundo sejam monarquias, dizendo que são coincidências. Pois está claro, coincidências sim senhor.
Se alguns dizem que quanto a Portugal é efectivamente uma coincidência que não sejamos tão desenvolvidos, afirmando que isso se deve à mentalidade dos portugueses, então só nós dão mais um argumento. É que um Presidente da República estará sempre dentro do jogo, dificilmente se consegue colocar na situação de árbitro e de representante da nação, não tendo por isso uma legitimidade alargada para actuar no sentido da mudança de mentalidades, e um Rei sim, enquanto representante de um todo superior às partes, terá sempre um papel fulcral quanto à mudança de mentalidades.
Para concluir, deixo apenas como nota final os meus parabéns à RTP, não só pelo programa, mas por se terem descuidado (será?) com o microfone de Medeiros Ferreira. Fica para a História a sua reacção às afirmações do professor Maltez, "este gajo é um anarquista e ainda diz que é de direita". Delicioso. Só mostra como as nossas
élites (como dizem os brasileiros, de forma pejorativa), não percebem nada disto, teimosos que são na ditadura das suas demagogias.