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Acabado de chegar a Moçambique, faz-se à foto (à esq.) após uma caçada (Zambézia, finais da década de 20)
Nasceu em 28 de Maio de 1907 em Valadares, filho do brasileiro Abel Graça, de Ouro Preto, Minas Gerais, e de uma portuguesa que dele tendo quatro filhos, enviuvaria aos vinte e quatro anos. Arlindo partiria para Moçambique nos finais da segunda década do novo século, ingressando no quadro administrativo da colónia. Colocado na Zambézia, de Portugal chamaria a noiva Alice Augusta Castelo Branco Vilaça (n. S. Miguel de Seide, 1907 - m. Lisboa, 1977), com ela se casando em Milange. Era um homem de muitos interesses, ávido leitor, filatelista, caçador e um exigente organizador dos serviços administrativos das regiões que o governo-geral lhe confiara.
O Administrador ADG resolvendo um milando familiar (pintura de Ana Maria Plácido Castelo Branco ©)
O seu arreigado patriotismo mitigara as clivagens entre as opções monárquica e republicana, logicamente secundarizadas após a acalmia decorrente dos acontecimentos de 1926. Aceitava o status quo que possibilitava uma muito almejada ordem, mais do que nunca necessária para o exercício de uma soberania até então abertamente contestada, quase teórica. A presença de importantes companhias estrangeiras no território moçambicano, prejudicava o poder português sempre ameaçado de intervenção da cada vez mais autónoma África do Sul do ainda General Jan Smuts. A dependência do hinterland britânico - a Federação das Rodésias e da Niassalândia - relativamente aos portos da Beira e de Lourenço Marques, era uma consequência directa da complexa partilha de territórios à qual Londres aquiescera, na condição de o império português, aliado dos ingleses, servir simultaneamente de tampão a outras ambições europeias com quem os britânicos forçosamente teriam de contar. No caso moçambicano, o poder rival indubitavelmente seria o da ambiciosa Alemanha do Kaiser Guilherme II. O Moçambique português era assim um mal menor, para mais também invadido por comerciantes e empresas que iam dominando importantes sectores económicos da colónia. Com imensas possibilidades agrícolas, Moçambique sempre foi o destino de ambiciosos investimentos estrangeiros.
O hastear da Bandeira (Panda, 1949, pintura de Ana Maria Plácido Castelo Branco ©)
A positiva modificação da situação interna portuguesa e nos anos trinta, o claro declínio britânico na correlação de forças na Europa e na Ásia, implicariam um novo fôlego para as autoridades de Lisboa, iniciando-se o progressivo enfraquecimento do quase livre arbítrio e tutelar presença estrangeira nas nossas possessões ultramarinas.
Fazendo o levantamento de problemas apresentados pela população (pintura de Ana Maria Plácido Castelo Branco ©)
Relevantes sectores passaram a ter uma mais forte intervenção nacional e no interior, as autoridades locais ganharam força para marcar o novo tempo, não hesitando em manifestarem de jure e de facto a proeminência da potência soberana internacionalmente conhecida. Nas circunscrições por onde o meu avô exerceu as suas funções, normalizou-se o hastear da Bandeira, um evento ao qual assistiam os negros, os portugueses locais e metropolitanos e aqueles estrangeiros - fossem eles ingleses, italianos, indianos do Raj britânico, alemães, libaneses, mauricianos, chineses ou gregos - que residissem nas imediações da sede da circunscrição. Para trás ficavam os tempos do Ultimatum e as ostensivas vassalagens que de longe vinham e se tinham prolongado mesmo após o fim da caótica 1ª República.
O casamento com Alice Augusta, em Milange, Zambézia (1932)
Claramente pró-britânico, cumpria a tradição de antanho da política de alianças portuguesa, mas sempre vincando uma autoridade e autonomia agora bem diferentes daquelas que até há pouco eram meramente ilusórias. Durante a II Guerra Mundial fez rigorosamente cumprir os requisitos ditados pela neutralidade, embora todos conhecessem a sua anglofilia. Cria firmemente na imperiosa formação de locais, com o fim de preparar o território para uma evolução que à época ainda não poderia ser outra, senão uma ainda nebulosa ideia de um Grande Portugal de autonomias, talvez um decalque daquilo que então já existia além-fronteiras, a Commonwealth. Sendo um firme crente na perenidade da presença portuguesa naquela parte do mundo, aí chamaria a mãe e os irmãos, todos eles para sempre se estabelecendo em Moçambique.
Recém-casados, na Zambézia (Moçambique, 1932)
Reuniu um valioso espólio documental do levantamento etnográfico das circunscrições que administrou, - desde cedo instou a sua filha, minha mãe, a recolher em telas hoje reunidas numa colecção de perto de duzentas pinturas, todos os aspectos da vida das populações - assim como de pareceres acerca da melhor administração, relatórios dos tempos da guerra e das actividades dos súbditos estrangeiros no território nacional. Uma grande biblioteca, a sua excelente colecção filatélica e numismática e os seus acarinhados uniformes, infelizmente para sempre se perderiam na tempestuosa voragem dos tempos da independência.
A minha avó seria em 1976 violentamente espancada por soldados da guarda presidencial de Samora Machel. Às portas do Palácio da Ponta Vermelha, alegaram ter ela proferido insultos contra Sua Excelência o presidente e agiram em conformidade com aquilo que lhes pareceu honradamente mais azado, usando-a como se um saco de pancada fosse. Quase de imediato deportada para Portugal num avião dos TAP, aqui chegou de maca, sendo hospitalizada. Dias depois, na antiga Lourenço Marques, era a sua casa alvo do mais descarado vandalismo e saque sem as peias de qualquer tipo de legalidade, espalhando-se e destruindo-se a grande biblioteca, milhares de fichas e uma incontável quantidade de dossiers pela zona da esquina da Av. António Enes com a Av. 24 de Julho. Os primos Leta e Rui Graça entrariam no apartamento devassado, onde livremente circulavam os saqueadores que carregavam tudo o que bem lhes aprouve. Avisado o Consulado de Portugal situado a escassos metros de distância, rigorosamente nada foi feito para impedir o ultraje.
Na sua proverbial modéstia, o avô não mencionou a sua espantosa colecção filatélica, criteriosamente enriquecida ao longo de mais de vinte anos, catalogada, comentada e encerrada em dezenas de grossos álbuns. Esperemos que a sua captura pelos ladrões, tenha possibilitado a sobrevivência e um destino condigno. O saque tinha sido organizado e os meliantes mais importantes sabiam ao que iam. Quase nada se salvou e às mãos dos meus pais apenas chegaria uma pequena maleta contendo umas tantas cartas, alguns textos, uma das condecorações, distintivos de posto e pouco mais. Aquele precioso arquivo onde se incluíam milhares de fotos inéditas da vida selvagem moçambicana, do dia a dia das populações e das suas actividades económicas, teria um dia como destino, o Estado português. Foi este espólio ignominiosamente destruído, atirado para a valeta.
O avô morreu inesperadamente em 10 de Agosto de 1955, aos quarenta e oito anos de idade, vitimado por uma embolia causada por uma injecção mal dada. Estes homens do mato, isolados e entregues a um microcosmos de sociedade europeia, insistiam na troca de correspondência, mesmo que esta fosse endereçada a alguém residindo a dois passos de casa. Era um escape de urbanidade, um desejo de "algo que fique". Neste 10 de Junho de 2013, aqui deixo aquele que decerto foi um dos seus últimos textos, a carta que ainda sem o poder saber, seria de despedida aos amigos e colegas de hobby. Permanecendo ainda hoje naquela terra que considerava sua, este avô está sepultado em Lourenço Marques, no cemitério onde também jazem a sua mãe e dois dos seus irmãos.
O Homem do Mato que infelizmente jamais conheci.
***
Confidências aos "Homens do Mato"
Toca a corneta, o sino ou o ferro, já não se vê a secretaria e os funcionários do mato dão por findo o trabalho do dia.
O Sol lança clarões de chama iluminando a terra num crepúsculo feérico.
Começa a noite e os homens que durante o dia em nada mais pensaram além do serviço ficam indecisos, trocando palavras sobre os trabalhos do dia seguinte, como se lhes custasse sair do ambiente da papelada e dos negros em que absorveram toda a atenção.
Para onde ir? Que fazer? As horas até ao jantar, duas ou três, custam a passar. Que fazer? Jogar? Não há parceiros para formar uma mesa de bridge. Ler? Sim. E depois? Do jantar até à chegada do sono? Horas propícias para a leitura. Ir até à cantina para dois dedos de cavaco? Vá. Mas nem sempre, porque não convém por vários motivos e porque fica caro, por vezes, o motivo da conversa. Último recurso - ir para casa pacatamente.
O whisky das cinco, na cantina (Zambézia, anos 40, pintura de Ana Maria Plácido Castelo Branco ©)
Ali novamente se impõe o problema, que fazer? Ler? Não se pode estar todo o dia a ler e a escrever e continuar a ler e a escrever em casa, ainda que a leitura seja diferente. E mais, um livro no mato lê-se num dia; cada livro custa mais de 20$00 - façam as contas e vejam a renda mensal que é necessária para gastar com o divertimento útil e agradável da leitura. A conclusão a que se chega, é esta: é necessário economizar a leitura, fazer render o prazer que nos dá deixar o livro para a cama (sala de leitura do "Homem do Mato") e não se entusiasmar, pois sofrerá o desgosto de ter numa noite, ou parte da noite, gasto o prazer de várias sem poder renovar, pois não sei se sabem - no mato não existem livrarias e os livreiros, os correios e os transportes não se condoem dos gulosos que gastam sem conta a sua distracção espiritual em menos tempo que levam as remessas de material (livros e revistas) a chegar-lhes às mãos. E neste caso, sem ter que ler, as horas mortas tornam-se mortais e o aborrecimento procede à carga das baterias da "neura", espectro do "Homem do Mato".
Sou "Homem do Mato". Tenho tantos caixotes e malas de livros que me envergonha tanta bagagem (e custa-nos os olhos da cara quando mudo de lugar e o "Homem do Mato" é uma espécie nómada, anda sempre de casa às costas, de Herodes para Pilatos, do Sul para o Norte, do Norte para o Centro e vice-versa - coisas do serviço). Os cobres, as pratas e as economias vão-se transformando em papel impresso, melhor ou pior encadernado, dando-nos conhecimento de levantados ideais, valiosas ciências e encantadoras histórias. O livro é a coluna que sustenta o espírito do "Homem do Mato", mas é também o cancro que lhe corrói as finanças.
Ora, isto tudo vem a propósito do emprego do tempo que medeia entre o fecho da repartição e a hora do jantar. É o problema que resolvi satisfatoriamente.
Um dia, em Lourenço Marques, encontrei um amigo que se confessou filatelista. Já eu o tinha sido nos velhos tempos do Liceu e francamente, não tinha achado "piada" nenhuma ao facto a não ser a que num dia de aperto, vendi o álbum e recheio por dez escudos! E lá iam alguns D. Marias. Quem mos dera agora.
Julguei na altura que o amigo, com as suas altas qualidades de inteligência e posição social tinha um fraco, como muitos outros ilustres homens. Coitado, deu-lhe para ali, como podia dar-lhe para pior - dizia aos meus botões.
Almoço em Panda (Moçambique, 1950, pintura de Ana Maria Plácido Castelo Branco ©)
Esse amigo tinha outros, também filatelistas e sem querer vi-me rodeado de pessoas que falavam em selos como se tratasse de acções de minas de diamantes. Citavam cotações, empregavam termos técnicos que não compreendia; falavam em Scott, Ivert, Gibons, Simões Ferreira e Eládio e não sei que mais, o que me obrigou a olhar os cavalheiros mais a sério e não com aquele sorriso amarelo da superioridade amável que costumava afivelar nesses cenáculos. E que trocas faziam! E um dizia: querem ver o que encontrei hoje? E mostrava, retirando do classificador de bolso, com todo o cuidado, usando pinças, como se fosse coser agrafes nalgum ferimento, um bocado de papel, sujo, com uma borradela de carimbo, apresentando uma figura desbotada que mal se via e, triunfalmente desvendava que se tratava do selo tal cujo R tinha uma falha no rabinho, como todos podiam ver: que era uma jóia - chamava-lhe erro de impressão ou cunho defeituoso - sei lá o que dizia -. Os outros, era vê-los embasbacados e dava riso ouvir de todos os lados - lindo exemplar, onde encontrou isso? Maravilhoso. O S. Ferreira não lhe fez referência, nem o Eládio, diz outro. Eu, pobre de mim, apenas via um sujo papelinho sem graça nem cor, pelo qual não daria um tostão furado.
No entanto comecei a interessar-me e quis, ó Céus, fazer coisa nova em filatelia. Quis fazer colecção científica! Quis descobrir a pólvora!
Fui e sou ainda um apaixonado pelas ciências etnográficas. Estudo com prazer as raças e costumes dos diversos povos do Globo e principalmente daqueles com quem tenho contactado. E a luminosa ideia surgiu. Vou fazer uma colecção de selos baseada na etnografia. E, se o pensei melhor o fiz. Uma razia completa aos duplicados dos companheiros que se excederam em gentilezas, fornecendo-me basto material para dar corpo à ideia e principalmente, para fazer entrar para a confraria mais um intoxicado pelo vírus filatélico.
De princípio tudo me pareceu fácil.
Adquiri catálogos, literatura e material - tudo muito à toa, graças a Deus - no qual gastei um bom par de cobres.
Os álbuns de folhas soltas foram os preferidos porque não podia deixar de o ser, tratando-se de uma especialidade tão especializada!
Depois de várias hesitações fixei como guia o tratado de Deniker e vai de começar seguindo a orientação dada por este conhecido autor ao seu trabalho.
Comecei organizando as folhas respeitantes aos caracteres domáticos do Homem, surgindo-me logo uma grande dificuldade que foi conseguir selos que mostrassem as diferenças entre o homem e o macaco. Não quis apenas colocar a par selos mostrando o bicho homem e o seu antepassado bicho macaco (no que ainda continua a sê-lo, no que faz muito bem), pois isso seria fácil; bastaria pegar num selo da Austrália e outro qualquer, da Libéria, por exemplo, e teria feita a demonstração de que o velho amigo Darwin não tinha errado a sua "piadética" ideia de fazer descender o primeiro do segundo que eu cá, como cientista etnológico de meia tigela, sou de opinião contrária, pois penso que o segundo é que descende do primeiro, tendo evoluído inteligentemente de forma a conservar a liberdade, desaprendendo a falar, cá por causa de coisas e com uma esperteza fora do vulgar conseguir viver "à borla" enquanto o bicho homem morre pela língua com as suas prosápias, trabalha como um danado para angariar o pão nosso de cada dia.
Queria mais. Gostaria de apresentar exemplos ósseos - os maxilares e a morfologia comparada dos crânios e seu recheio. Bem folheei o Ivert mas nada encontrei que servisse. Os antropologistas parece que ganham bem regendo as suas cadeiras nas Universidades ou cocando bichinhos nas expedições científicas sem precisarem do lugarzinho de Correio-Mor, ou coisa que o valha da ementa orçamental, que lhes dê oportunidades de enriquecerem a filatelia com um mostruário osteológico. Pena é que assim seja, pois mais interessante seria uma série deste jaez do que a dos manipansos com que ultimamente nos presentearam e a que, certamente por lapso, deram o nome de "Arte Sacra Missionária" - Vid. Manipansos de Moçambique de $10, 1$00 e 5$00 que nos apresentam uns missionários talados em pau, que melhor classificados seriam de Cynocephalus Semnopithecus. Eu se fosse missionário, andaria irritadíssimo com a gracinha.
Mas como ia dizendo, esbarrei com esta grande dificuldade e depois com outras que nos surgiram, como sejam, o estudo dos caracteres patológicos, a vida psíquica, etc, etc - mas não me alongo mais.
Gastei um Ivert de tanto o folhear e arranjei calos na polpa dos dedos e por fim tive de desistir, batido em toda a linha. Lá se foi a ideia luminosa, a ciência e a descoberta da pólvora.
Deste primeiro vagido restou no entanto alguma coisa: terem os amigos filatelistas alcunhado o visionário de "Homem das barbas" (não que as use, mas porque tive umas lindas páginas do álbum historiando a evolução da pilosidade capilar do homem através dos tempos); ter refrescado a memória percorrendo tratados, manuais e estudos etnológicos; ter adquirido um conhecimento apreciável - pelo menos para mim - das coisas filatélicas e, finalmente, mas em primeiro lugar para o "Homem do Mato" que sou, descobri o Hobby nº1 para preencher as nostálgicas horas do ante-jantar.
Estou grato aos amigos que, engripados pelo micróbio filatélico me transmitiram a doença, porque de então para cá, não como obrigação, mas como recurso, preencho admiravelmente aquelas horas sem pensar que existe o Continental, mulheres bonitas, matinés crepusculares, clubes civis e militares, Miradouro ou melhor, Mirabaía, Boites, etc, etc, onde os meus semelhantes citadinos - como diz o outro - refocilam gozosamente naquelas civilizações.
Pois é - meus irmãos.
Este selvático que vos escreve, partindo de uma premissa errada chegou a uma conclusão certa que se resume, como é moda hodierna, no seguinte "slogan". "A filatelia é o melhor meio para se gastarem uns patacos e preencher as horas mortas", sempre, sem dúvida, acalentando a convicção de que no fim se faz fortuna. Só não se sabe quando é o fim. Quase sempre é o fim dos fins. Deixem-se as colecções para em Moledo do Minho o Castel-Branco as vender em fascículos.
Agora a sério.
Pondo de parte os senãos, a filatelia preenche perfeitamente o anseio natural do "Homem do Mato" de encontrar motivo que absorva agradavelmente as horas de ócio forçado e os terríveis trabalhos de tarde e domingos semanais.
Experimentem, aspirantes a filatelistas.
Peguem numa centena de selos, metam-nos numa banheira e com uma pinça coloquem-nos a secar em papel absorvente (não façam como eu que estraguei muito por ter utilizado mata-borrão de cor), classifiquem-nos a seguir e depois digam-me se o tempo passou ou não veloz. É preciso a mulher e o moleque virem dizer três vezes que o jantar está na mesa, a sopa fria e o peru recheado a perder a quente frescura e sabor.
Dou-lhes a minha palavra que é verdade e até sou capaz de o atestar em papel selado.
Experimentem e depois digam-me coisas
Arlindo Dias Graça
Panda, 16 de Julho de 1955
Faz-me lembrar os acampamentos de ciganos da “Metrópole”.
De facto, nem 700 anos de convivência real e efectiva chegaram para integrar uma minoria bem menor!!!
ADN?"