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Dá vontade de desaparecer do mundo, sim. Ignorar. Largar. Abrir mão. Deixá-los andar, deixá-los falar, deixá-los mentir, deixá-los roubar, deixá-los fazer todas as falcatruas e deixá-los reaparecer em frente às câmaras de televisão com a maior desfaçatez e cinismo. A realidade é o que é: intemporal, impassível, indiferente às nossas inquietações. Somos nada. Outros virão depois de nós e tudo seguirá como se nunca tivéssemos existido.
E eis que surge uma lembrança de manhãs frias e roupa desconfortável – camisolas de lã que picavam o pescoço, pés frios – cabelos compridos penteados com esticões de dor, amarrados num rabo de cavalo que impedia os movimentos da testa. Gritos e gargalhadas dos outros durante a hora de recreio e visitas surpresa de enfermeiras para dar vacinas – (a razão por que detesto surpresas?). Cheiro a pães com marmelada caseira atirados com toda a força para o terreno atrás da escola. De vez em quando a excitação de uma cabeça rachada e a interrupção da rotina: as aulas acabavam mais cedo ou o recreio durava duas horas, porque a professora tinha ido fazer de ambulância. Às vezes havia guinchos e reguadas – para cúmulo, quem estreou a régua nova foi o filho do marceneiro que a ofereceu. Fez 20 erros no ditado! Tão burro... E aqueles pacotinhos de leite achocolatado que sempre recusei com nojo e aquele ódio transcendente aos quinze dias de praia em Junho. Praia, os miúdos, aqueles miúdos todos, aquelas cançonetas, os lábios roxos da água gelada e as malditas merendas que desta vez não podia atirar para lado nenhum... – “Não, não quero ver a minha professora em fato de banho...” (lembro-me de pensar mas jamais verbalizar).
Parece que foi noutra vida e no entanto, constato que nada mudou. No essencial permanecemos iguais: o mesmo tipo de postura e participação na realidade. As pessoas não mudam. Somos a mesma criança de ontem e dos dias que hão-de vir, até ao fim. Há os que constroem a realidade, os que a manipulam e que dela tiram proveito e depois há os que a observam, participando nela como forma de sobrevivência apenas. Não tenho qualquer outra perspectiva que não seja a mesma de sempre. E quanto mais vivo (ou mais me desligo), mais igual a mim mesma fico. Para saborear um resquício de felicidade, não sonho com um futuro feito de beleza, de justiça, de verdade e lealdade, não. Não generalizadamente. Talvez encontremos estes valores de forma muita viva, em algumas pessoas, pontualmente. Sonhar é iludirmo-nos; idealizar é perder tempo. Em vez disso, quando me apetece experimentar a emoção da felicidade, ainda que de forma muito breve, mergulho nas memórias desses tempos autênticos e primordiais. É quanto basta para constatar a brevidade e irrelevância de todas as coisas, e sorrir.
*“Memory, Agent Starling, is what I have instead of a view” – Silence of the Lambs, 1991