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As bombas de Obama e a carta de Putin

por Nuno Castelo-Branco, em 13.09.13

 

Pela primeira vez vez em muitas décadas, um texto saído da cúpula moscovita teve eco internacional. Já não se trata de uma velha tirada de retórica ideológica "aglomera-ânimos" dos tempos do estalinismo, mas sim de um magistral documento que em cheio atinge a psique do americano comum. Os argumentos são clássicos - e por isso mesmo sumamente eficazes -, indo sempre apelar a um bastante politicamente correcto appeasement que ao invés daquilo que o comum dos mortais julga, jamais se tratou de uma característica da politica norte-americana. Putin é bem claro, pois afirma  ..."I carefully studied his address to the nation on Tuesday. And I would rather disagree with a case he made on American exceptionalism, stating that the United States’ policy is “what makes America different. It’s what makes us exceptional.” It is extremely dangerous to encourage people to see themselves as exceptional, whatever the motivation. There are big countries and small countries, rich and poor, those with long democratic traditions and those still finding their way to democracy. Their policies differ, too. We are all different, but when we ask for the Lord’s blessings, we must not forget that God created us equal." Lapidar. 

 

Para não irmos demasiadamente longe na retrospectiva da história, temos de considerar a provocada guerra espano-americana, eivada de falsas informações, atentados inventados ou decorrentes de meras contingências alheias a qualquer malévola vontade. Prosseguindo, durante a I Guerra Mundial, o presidente Woodrow Wilson capciosamente indicaria aos beligerantes um programa que flagrantemente era por si mesmo uma tomada de posição de pré-beligerância, dada a situação  sobre a qual se erguiam os impérios da Áustria-Hungria e Otomano. De facto, todo o articulado dos 14 pontos poderia ser resumido àquilo que aos Aliados pareceu essencial, isto é, num novo e oportuno - sobretudo para a França - redesenhar do mapa do velho "continente", desarticulando-se toda a Mitteleuropa e impedindo sine die o alvorecer daquilo a que Coudenhove-Kalergi designaria de Paneuropa.  A autoria americana da destruição do outrora poderoso fiel da balança de poderes que era o império dos Habsburgos, de forma alguma consagrou os princípios anunciados por Wilson. A Checoslováquia, a Jugoslávia, a Roménia e a própria Polónia, foram o efervescente cadinho para novos conflitos que inevitavelmente desestabilizariam a ordem estabelecida por Versalhes. 

 

A inevitável ascensão do nacional-socialismo ao exercício do poder na Alemanha, - o Tratado de Versalhes e a política de "reparações" assim o permitiram - serviria precisamente para demonstrar o quão falaciosos eram os 14 pontos apresentados ao mundo como caboucos da paz eterna. Hitler deles se serviu para a contabilização das suas reivindicações territoriais na Europa. Ao pretender a inclusão da Áustria, dos Sudetas, de Dantzig, de áreas da Posnânia, do Tirol do Sul e de outros territórios povoados por alemães, não estaria o Fúhrer a basear o seu discurso naquilo que Wilson indicara como essência da justiça e da confiança internacional? Era, daí a política de appeasement que as democracias ocidentais cultivaram durante toda a década de trinta, presas ao sofisma por elas próprias adoptado como fonte primeira do direito. Prosseguindo na longa série de interpretações unilaterais do direito internacional, Washington, detentora de jamais assumidas possessões coloniais - as Filipinas, por exemplo -, verberou com acrimónia o cada vez mais evidente expansionismo japonês, precisamente no momento em que sugeria aos portugueses a cedência de Angola como possível solução para as nebulosas promessas de Lord Balfour.

 

Todo o caminho que conduziria a América a Pearl Harbour foi balizado  por discursos e atitudes claramente beligerantes, desde as proibições de comércio de matérias primas destinadas ao Japão, até a claros ultimatos enviados a Tóquio logo após a intervenção japonesa na Indochina. Se a isto somarmos as conversas à lareira que Roosevelt prodigalizaria como forma de justificar a intervenção que já se verificava em pleno Atlântico - comboiando a US Navy os freighters britânicos a caminho do R.U. -, temos então um quadro bastante completo do assumir da pretensão hegemónica mundial. O fim da II Guerra Mundial consagraria esta política, aliás facilitada pelo completo ocaso das antigas potências europeias destruídas pelo conflito. Na verdade, a emergência da URSS - previsível desde 1905, quando a espectacular recuperação económica prometia a hegemonia continental ao império dos czares -, porque tardia, serviu os interesses norte-americanos, evitando qualquer multilateralismo, ou melhor, um mundo multipolar que já se adivinhava com a chegada à cena internacional de novos países recentemente descolonizados. 

 

A simbólica queda do Muro de Berlim apenas confirmaria a suposição de uma provisória assunção americana da ordem internacional, pois em 1989 já eram nítidos os sinais do despertar chinês e da aproximação da Índia e de países sul-americanos - o Brasil - a um maior protagonismo nas relações internacionais. Os erros cometidos foram imensos, entre os quais avulta a apressada entrada da China na OIC e por isso mesmo caindo as vitais barreiras que durante muitas décadas garantiram a estabilidade e pujança das economias ocidentais. 

 

A liquidação do império soviético conduziu ao esperado resultado da fragmentação da massa euro-asiática, facto que os norte-americanos logo souberam aproveitar, estabelecendo fortes laços com as novas autoridades de alguns dos Estados da Ásia Central. A verdade é que tal como Roosevelt não fazia a menor ideia acerca da localização de importantes províncias alemãs como a Silésia, Pomerãnia e Prússia Oriental - entregando-as sem um piscar de olhos à limpeza étnica promovida pelo seu aliado J.V. Estaline -, as sucessivas administrações de Reagan, Bush, Clinton e Bush (filho), pareceram dar nenhuma importância à necessidade da existência de uma esfera de segurança russa. Já não se tratava da Europa central e oriental, do Afeganistão ou de Cuba, mas sim das áreas tradicionalmente ligadas aos russos durante os últimos trezentos anos. Washington não foi capaz - ou terá sido intencional ? - de prever a gravidade dos desafios que eram colocados a Moscovo, cujas autoridades foram subitamente colocadas perante factos consumados nas suas fronteiras. O radicalismo islâmico alastrou em algumas áreas ainda componentes do Estado russo e Putin ver-se-ia colocado perante a desagradável escolha entre uma contemporização que denotaria fraqueza extrema, e a acção que macularia a sua imagem de estadista pós-soviético. Washington não ajudou e pior ainda, deu carta branca a dirigentes considerados próximos, sendo o caso georgiano um entre outros exemplos. Todos conhecemos o afã quanto à intervenção no Iraque, alegando então George W. Bush com aqueles perigos que durante estes dias Obama tem escrupulosamente enunciado quanto à Síria. Ora, tendo sido comprovadamente falsas as alegações com as quais se mimoseou o sanguinolento regime de Saddam Hussein - um reconhecido antigo aliado táctico na luta contra os aiatolás - , como esperará agora a administração norte-americana, um acatar ocidental do mesmíssimo discurso agora dirigido a Assad? A verdade é que o regime de Damasco tem sido moderadamente eficiente na passagem da sua mensagem anti-Al Qaeda e na Europa, ao contrário dos loucos de Deus que parecem prevalecer nos EUA, o repúdio por mais uma aventura Yes we can, é evidente. Os aliados incondicionais - as populações do Reino Unido e de Portugal - fazem saber via sondagens, da sua total indisponibilidade por um caucionar do conflito que se prepara, enquanto outros, entranhadamente avessos a projectos de contornos muito difusos - a Alemanha -, abertamente se opõem ao toque a reunir. Em suma, os russos sabem que desta vez os americanos se encontram isolados e pior ainda, a administração não pode contar com um esmagador apoio interno. Neste sentido, a carta de Putin também é magistral.

 

O presidente russo sabe a quem se dirige. Senão, vejamos:

 

1. "Amansando a fera", o presidente russo anuncia não desconhecer as dificuldades do período da Guerra Fria, matizando-as com a fugaz aliança durante a II Guerra Mundial. Este poderá ser um argumento com mais peso que aquele aparentemente suspeitado, pois sabe-se que a política do Departamento de Estado está intimamente ligada, quando não dependente, do posicionamento do seu mais forte aliado no Médio Oriente. 

 

2. Aquando das intervenções russas na Alemanha (1953), Hungria (1956), Checoslováquia (1968) e Afeganistão (1979), os americanos fizeram enorme alarido em todos os areópagos internacionais, apelando à carta das Nações Unidas. Aliás, os seus interesses específicos naquela parte do mundo - o Médio Oriente - obrigariam os EUA a rapidamente condenar a intervenção anglo-francesa no Suez (1956), implicitamente reconhecendo uma violação da soberania por parte das outrora poderosas potências europeias. Putin escreve hoje exactamente segundo o mesmíssimo guião, indicando a ONU como o forum capaz de dirimir conflitos e até aponta o direito de veto - prodigamente utilizado pela Rússia e China - como um dos recursos capazes de manter o equilíbrio nas relações internacionais. O espectro da Sociedade das Nações está presente, pois não é por acaso que de imediato nos surge a lembrança das atitudes unilaterais daqueles que um dia foram os parceiros do Eixo que a Rússia (a então URSS) e os EUA combateram em nome do direito internacional. Este é um argumento de rápida divulgação e de esperado sucesso na Assembleia Geral da ONU. Em suma, "the United Nations’ founders understood that decisions affecting war and peace should happen only by consensus, and with America’s consent the veto by Security Council permanent members was enshrined in the United Nations Charter. The profound wisdom of this has underpinned the stability of international relations for decades.

 

3. Putin conhece perfeitamente a forma como o americano comum entende a sua própria presença terrena. O apelo a Deus - neste caso, o dos cristãos - e a menção ao actual Papa, não será por mero acaso. A evidência do alastrar da instabilidade pela consolidação de grupos terroristas - os americanos atrever-se-ão a considerar este facto como uma falsidade? -, não deixará de influir pesadamente na opinião pública americana, ela própria copiosamente alimentada de pavores, conspirações e mania de atentados sugeridos pelas suas autoridades. Putin simplesmente aproveita o caldo de cultura servido pelos sucessivos governos norte-americanos e ameaçando com o terrorismo islâmico - nisto irmanando os interesses de russos e americanos -, desfere um golpe fulminante em todo e qualquer discurso que Obama possa proferir. Pior ainda, ameaça a Europa com a subversão, pois "mercenaries from Arab countries fighting there, and hundreds of militants from Western countries and even Russia, are an issue of our deep concern. Might they not return to our countries with experience acquired in Syria? After all, after fighting in Libya, extremists moved on to Mali. This threatens us all." É mesmo verdade, não há como negar. 


4. Um aspecto nada negligenciável e que se prende com a situação actualmente vivida noutros países da região - referimo-nos ao Egipto -, faz de Putin um defensor das minorias religiosas, nomeadamente dos cristãos que mais que nunca se encontram ameaçados pelo avanço islamita. Há que considerar o papel da Turquia - ela própria a braços com a instabilidade - na região, sempre sob forte suspeita da tentativa de criação de um certo Lebensraum de claro recorte imperial e que obedece grosso modo à tradição otomana. O tácito apoio russo aos iranianos não deve ser apartado deste caso. 


5. A propaganda desmontada. São bastante fortes as suspeitas do uso de gases por parte dos chamados rebeldes e talvez esporadicamente, por Assad. Crescem os testemunhos e a lógica indica o total desinteresse de Assad em cruzar a barreira que Obama ainda não há muito estabeleceu. Todos se recordarão do Caso Saddam e a evolução iraquiana não foi de molde a deixar qualquer tipo de ilusões na opinião pública norte-americana, ainda para mais confrontando-a com a iminência de um ataque químico a Israel: "no one doubts that poison gas was used in Syria. But there is every reason to believe it was used not by the Syrian Army, but by opposition forces, to provoke intervention by their powerful foreign patrons, who would be siding with the fundamentalists. Reports that militants are preparing another attack — this time against Israel — cannot be ignored."


5. A desculpabilização do Irão e da Coreia do Norte. O  bastante previsível unilateralismo norte-americano que Putin aponta ao longo de todo o seu texto - "millions around the world increasingly see America not as a model of democracy but as relying solely on brute force, cobbling coalitions together under the slogan “you’re either with us or against us.” - conduzirá à inevitabilidade do surgimento de todo o tipo de arsenais dotados de armas de destruição maciça e entre estas, a pavorosa bomba atómica que ensombra a imaginação do Ocidente. Assim, o presidente russo parece oferecer os seus bons ofícios que tenderão a impedir este resvalar do armamento nuclear para mãos duvidosas. No fundo, está implícito o princípio da prevalência do "homem branco" que civiliza e protege o Direito. 


6. Putin estabelece os limites, indica o espaço da sua coutada. De facto, toda a Ásia Central, os Estados eslavos saídos da extinta URSS e uma mão cheia de países tradicionalmente aliados ou dependentes, são considerados como pontos vitais da segurança russa, sendo entre estes a Síria um importante contraponto aos desígnios turcos e aos conflitos latentes no Cáucaso. Em resumo, a presença americana deve ser moderada pelos ditames da realpolitik que afinal serve perfeitamente os interesses dos EUA - os do Ocidente - a longo prazo. 


7. Em conclusão, Putin será decerto benquisto pela maioria dos ocidentais, principalmente por muitos europeus temerosos da imprevisível situação interna nos seus países  - França, Bélgica, Alemanha, Suécia -, também convencidos do declínio norte-americano que implicará uma inevitável aproximação  entre os países do hemisfério norte. É claro que todos entenderão o que isto quer dizer, pois existe um receio histórico que há uma centena de anos se denominava de perigo amarelo. O medo funciona. Hoje, esta tonalidade é acompanhada por outras. Putin sabe-o e racionalmente apela ao irracional. É um mestre

 

 

publicado às 19:52







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